Aida Viegas, No Rodar dos Tempos, 1ª ed., Câmara Municipal de Oliveira do Bairro, 2005, 186 pp., ISBN ISBN 72-8675-04-6

O melro astuto

       Minha filha mais nova resolveu casar. Sabendo como eu sempre estivera e continuava ligada à casa onde nascera e gostando, também ela, muito daquele espaço onde brincara com os irmãos sob o olhar ternurento da avó, resolveu que aí iria receber os convidados e teria lugar a boda no dia de suas núpcias.

       A minha alegria foi grande pela escolha mas, os gastos e o trabalho não foram menores. Foi necessário fazer obras; restaurar e pintar, cuidar do jardim e do quintal enfim, um sem número de tarefas que ocuparam muita gente durante muito tempo.

       Tudo tinha de ficar a brilhar para em tão célebre data acolher tão distinta festa.

       Num certo dia, ao procedermos a trabalhos de recuperação e restauro, tivemos de remover uma enorme trepadeira que crescia sobre uma velha trave do telheiro da eira, para podermos reparar o telhado e caiar as paredes.

       Quando o meu marido procedia à retirada da planta com todos os cuidados para a repor de novo no lugar após concluídos os trabalhos, encontrou entre a folhagem um artístico ninho de melro que já tinha servido de lar. Pegando-lhe retirou-o do emaranhado de raminhos atirou-o para a eira seguindo o seu trajecto com o olhar. Quando ele caiu viu qualquer coisa a brilhar. Interessado e curioso, desceu do telhado, pegou no ninho e resolveu desmanchá-lo e observá-lo para ver de onde provinha aquele brilho. Todos os seus sentidos foram alertados e a sua curiosidade espicaçada quando vislumbrou no meio daquela artística amálgama de terra e palha mais uns brilhantes raiozinhos de luz. Mais cuidadosamente e com curiosidade redobrada desfez entre os dedos, a pasta que compunha o ninho e qual não foi o seu espanto ao verificar que o que ali reluzia era ouro, ouro de lei; nada mais nada menos que uma pulseirinha de criança.

       Nascido na aldeia, amigo como sempre foi de observar a vida de qualquer ser vivo no seu habitat natural, e conhecedor atento do voar, do canto, da forma e dos ninhos de todos os pássaros da zona, os seus olhos brilhavam de alegria e curiosidade perante tal achado nunca antes visto.

       Cheio de admiração, não se conteve e correu para casa a mostrar-mo.

       – Não queres saber que os ladrões dos melros além de escolherem a melhor fruta do quintal para se banquetearem ainda querem ter os filhos em berço de oiro?

       Fiquei, também eu, deveras admirada, deslumbrada mesmo. Lembro-me sempre dos passeios que dava ainda criança na companhia de meu pai, pelos campos e pelos pinhais e do modo carinhoso como me ensinava a distinguir as aves voando. Gosto muito dos melros; de os ver no seu fato preto parecendo adornados de ouro no rebrilhar do seu bico amarelo, gosto ainda mais de os ouvir cantar. Já não lhes acho tanta graça quando ao ir colher a fruta, deparo com eles empoleirados nas árvores, gulosos, tão gulosos que, por vezes nem deixam nada. Não esperaria nunca é que, além de gulosos, fossem também tão briosos, a ponto de quererem que seus filhos nascessem em berço de ouro!

       Rimo-nos com o inédito, contei aos vizinhos e aos amigos, guardei a pulseira, mas o facto esqueceu no meio da azáfama.

       Nas vésperas do casamento os noivos vieram ali ver os preparativos da festa; só então tive a oportunidade de lhes contar o sucedido e mostrar a pulseirinha. Ao vê-la, minha filha admirada sorri feliz e diz-me:

       – Não te lembras, Mamã? Quando eu fiz oito anos qual foi o presente de aniversário que me ofereceste?

       – Claro que não, já lá vai tanto tempo! Como me haveria de lembrar?

       – Pensa, pensa um pouco, até tivemos uma grande arrelia...

       Parando uns momentos, veio-me à ideia aquela tarde de festa e brincadeira. Tanta brincadeira, com os irmãos, os primos e os amigos, tanta correria pelos pátios e pelo quintal que tive de intervir e por cobro à euforia infantil não fosse terminar a festa com algum deles magoado.

       Abrandaram um pouco mas, passados uns minutos apareceu-me a aniversariante a chorar, lavada em lágrimas.

       Que aconteceu, minha filha? Caíste ou magoaram-te? Perguntei-lhe aflita, abraçando-a.   

       Não Mamã, não foi nada disso, foi pior.

       Pior? O que pode ser pior? quase gritei.

       Perdi a pulseirinha de ouro com a medalhinha que hoje me deste e já procurámos tudo e ela não aparece.

       Acalmei-a e fomos todos procurar, revolver a casa, o pátio e o quintal. Tudo em vão.

       Nem queria acreditar mas, minha filha com a pulseira na mão afirmava:

       – Era, esta Mamã!... Vê bem, ainda tem a medalhinha!

       Não fora ela e dificilmente me teria recordado do acontecido e reconhecido a pulseira.

       Toda a família achou deveras curioso o insólito presente de casamento que o acaso proporcionara.

       Como porém a pulseirinha já nem servia à dona e se encontrava suja, não havendo tempo de a limpar para o dia seguinte, fiquei eu como fiel depositária do tesouro.

       Passada a festa quando a vida retomou o ritmo normal, num dia à noite, fomos visitados pelo jovem casal que resplandecia de felicidade. Vinham anunciar-nos que dentro de alguns meses iríamos ser avós. A alegria foi grande como é natural. Abraçámo-nos, brindámos ao novo membro da família e após a sua retirada tive uma ideia brilhante. Brilhante porque tinha a ver com brilho; o brilho do ouro.

       No dia seguinte corri à ourivesaria e mandei limpar a pulseirinha e a medalha que estavam esquecidas desde a véspera do casamento.

       Em Dezembro baptizava-se o primeiro filho do jovem casal. Entre os presentes do Neófito, coloquei a pulseirinha da Mamã brilhando como nova.

       Hoje o rapaz já é crescidinho, é um tanto mais irrequieto que a mãe e não gosta menos de correr e brincar no quintal da nossa antiga e querida casa.

       Faço votos que, se o traquinas do meu netinho, por sua vez, perder a pulseira, tenha por perto, de serviço, um dos melros que moram no meu quintal.


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