Manuel
Ramalho vivia acabrunhado já que o rendimento do seu trabalho
na agricultura, que levava a cabo de sol a sol, nunca lhe
chegava para pagar os gastos.
Desesperado
resolveu emigrar.
No Canadá,
conseguiu ao fim de seis anos amealhar um pequeno pecúlio que
lhe pareceu bastante para poder regressar a Portugal e levar
uma vida pacata na sua aldeia. Os filhos entretanto ficaram
por lá. Ele e a mulher, Deolinda, regressaram e recomeçaram a
cuidar das leiras, agora já não com a finalidade do sustento,
mas sim como complemento da reforma e ocupação do tempo. Além
disso, Ramalho intervalava o trabalho no campo, com uns
biscatos de canalizador e pedreiro, artes que tinha aprendido
no estrangeiro, e agora lhe rendiam algum dinheiro. Entretanto
podia dar-se ao luxo de ter algumas horas de lazer, tempo que
ocupava caçando, actividade que sempre o atraíra, e à qual se
podia agora dedicar, após comprar uma arma e tirar a
respectiva licença.
Foi em
Novembro. O tempo estava mau, ameaçava chuva, trovoada e
vento. Porém o Ramalho andava impaciente, e contra tudo o que
era aconselhável, planeou ir à caça no dia seguinte.
Acordou bem cedo, vestiu-se, tomou o café, e depois de apertar
à cinta a cartucheira, que prepara de véspera, pegou na
espingarda, abriu a porta e saiu. Eram umas sete da manhã e
estava muito frio. Uma rabanada de vento entrou-lhe pelo
casaco, ainda por apertar, mal pôs o pé na rua. O céu estava
carregado de nuvens ameaçadoras, mas nada deteve o nosso
homem, que soltou os cães e se pôs em marcha, pelos campos
fora, sozinho com os dois rafeiros no seu encalço.
Logo um
chuvisco miúdo começou a cair, mas nem mesmo assim ele
desistiu dos seus intentos. Foi andando, calcorreou uma grande
área. Os cães farejando aqui, acolá, correndo, ladrando,
iam-se embrenhando pelos campos contíguos à aldeia.
Ramalho andou, andou, até que chegou às ruínas de uma casa
abandonada, com adobos antigos e telhas amontoadas pelo chão.
Um ruído esquisito chamou a sua atenção. Ficou por ali parado
a examinar os escombros, até que, para melhor pesquisar,
pousou a arma no chão. Esta, já velha e meio avariada, devido
a um movimento descuidado do caçador, disparou-se contra si,
deixando-o cravado de chumbos e sem poder movimentar-se.
Manuel
Ramalho, vendo-se ferido, prostrado por terra e a esvair-se em
sangue, cheio de aflição, bem gritou por socorro, mas ninguém
o ouviu. Os seus apelos, à medida que o tempo passava e as
forças lhe faltavam, foram-se tornando cada vez mais débeis,
acabando por se extinguir.
Um dos seus
cães, depois de muito farejar o dono e ver que ele não reagia,
partiu em flecha correndo na direcção de uma casa situada a
cerca de duzentos metros do local.
Ao chegar
ladrou, ladrou, esgatanhou na porta, voltou a ladrar, e nunca
parou, até que, o dono da casa, que se encontrava nesse
momento a tomar o pequeno-almoço, vendo a sua refeição
interrompida por aquele cão atrevido, abriu a porta e tentou
afugentá-lo. Tentou, digo bem, porque não conseguiu; o cão,
continuando a ladrar, afastava-se uns dez, vinte metros,
sempre a olhar para trás, e voltava novamente junto do homem,
sem deixar de ladrar. Repetiu isto, vezes sem conta até que o
homem, já chateado, o ameaçou atirando-lhe pedras, mas o cão
não desistiu, continuou a fugir e a voltar, sempre ladrando. O
cavalheiro achou o comportamento do cão de tal modo esquisito
e fora do normal, que desconfiou que algo de estranho se
passava, pois parecia que o animal o chamava dando a entender
que queria que o seguissem. Avançava e recuava, como que
puxando o sujeito, para o acompanhar; o que o homem acabou por
fazer.
Lá foi
atrás do cão desconfiado mas atento, e qual não foi o seu
espanto quando chegou ao local do acidente e encontrou o seu
vizinho Manuel Ramalho a esvair-se em sangue, com o outro cão
encostado a ele, a ganir de tristeza.
Foi assim,
através do comportamento exemplar destes dois animais,
demonstrando uma dedicação que os humanos muitas vezes não têm
nem compreendem, que o Manuel Ramalho se salvou, pois de
imediato, o seu vizinho chamou socorros, e o ferido foi
transportado para o hospital mais próximo. |