Bartolomeu Conde, Escritos, Cacia, ed. da Portucel, 1985, 94 pp.

O VENTURINHA, O MAIS TÍPICO DOS ORATES DE CACIA

 

Errante por índole, passava a vida atrás das filarmónicas, «tocando» flauta no seu inseparável pau.

Caminheiro vagamundo, calcorreando estradas e montes, não faltava nunca às festas e romarias que metessem musicatas. Algumas vezes até fora visto em festividades bem longe da sua terra natal, lá para as serras de Sever e de Águeda.  

Bem recebido por onde andava, o seu aparecimento nas povoações era, só por si, o mais alegre anúncio das festividades que se avizinha­vam. Atrás dos rebanhos das chibas que percorriam o povoado como carne em bruto para as caçoiladas de chanfana, ele era o arauto inconsciente da pândega festiva.

Munido do seu pau — da sua flauta! —, que nunca abandonou, descalço, sujo e mal barbeado, calças com remendos alacres, perna abaixo perna acima, era um pobre-de-Cristo, olhos mansos como os dos cordeiros, uma alma pura em mente atrasada. Mas para que o seu ar de pateta ganhasse em comicidade o que em humildade tinha abonde, os «benfeitores» vestiam-lhe um velho smoking, peça de roupa que, por caída em desuso, só servia para espantalho de favais. E para que a figura se tornasse mais burlesca, nunca lhe faltou, a cobrir a cabeça, um velho boné de pala oferecido por um qualquer músico reformado...

Tinha, assim vestido, um ar misto de pateta, de santo e de Charlot, mais acentuado pela inclinação da cabeça na humildade de quem não é nada no mundo dos outros.

Talvez por essa persistente humildade de mendigo, ou ainda pelo seu olhar sem outra ambição que não fosse um bocado de pão ou um cigarrito, ao Venturinha ninguém negava um mínimo da ternura e da misericórdia que todos os almas-de-Deus merecem da sociedade.

É certo que deste santo vagamundo o povoléu tirava a sua contra-partida: ele servia de gozo ao rapazio que se entretinha a puxar-lhe o pau e as abas do paletó, quando não mesmo o ameaçava de «quem leva o bombo é o preto!»

Então era ver o Venturinha (ou o Ventura Castelhano), dementado pela ameaça de perder lugar na hipotética filarmónica dos seus loucos sonhos, correr atrás da garotada, agarra-que-agarra, agressivo e malcriado: «fi de p’ta, menino, mato já» — e atirava pedras com a canhota ou mesmo o pau, atrás dos tornozelos da canalhada.

Mas nem só a garotada se comprazia nesta espécie de diversão. Os próprios adultos se juntavam à volta do Venturinha para o desfrutar.

— «Um p’a cada um!» Assim pedia o pobre um cigarrito, puxando repetidamente, com uma das mãos, o botão do paletó.

O gozador antes de lhe dar o paivante, proporcionava o espec­táculo: com uma das mãos estendia-lhe o cigarro e com a outra, à sorrelfa, tirava-lhe o pau!

O Venturinha, entristecido de todo, sem o seu pau, perdia a personalidade e era vê-lo lamurioso, infeliz, mendigar a sua «flauta». Exasperado por sucessivas negaças, ameaçava o usurpador: «eu mato já! fi de p’ta!»

No largo da estação de Cacia, nas tardes de domingo de há cinquenta anos, o «espectáculo» tinha muitos assistentes e participantes. Mas não se deva entender mal aqueles divertimentos à custa dos orates. É que naquele tempo, em que não havia ainda nas aldeias futebol, nem ainda se sonhava com a T.V. nem com as casas de diversões, as horas de lazer aos domingos e dias santos (que feriados não se respei­tavam), eram preenchidas com espectáculos deste género, já que era raro a passagem de saltimbancos e de fantoches, únicos regalos de então! Os orates, nesses tempos, eram uma necessidade e o povo deles se aproveitava como passatempo cómodo e barato.

O Ventura Castelhano foi o mais notável maluquinho desta região. Morreu há quase 30 anos e com ele o último dos orates-espectáculo. Os que existem actualmente, com o aparecimento da T.V. e doutras diversões, vivem em modesta paz, ou estão simplesmente postos de lado. Sem querer, a T.V. contribuiu para a moralização de certos costumes!

Contrastando com aquela crueldade sem crueza, gente havia que tratava bem o pobre Castelhano: bastava que ele pedisse «chiba-malaia» e de imediato lhe davam comida, algumas vezes seguida de um cigarrito que ele chupava até queimar os dedos.

Com estes que assim o tratavam, ele sabia provocar ingénuas brincadeiras, fazendo negaças de quem dá um tiro: do pau fazia espingarda, levantava um pé e... «— pum, já matê!» E ria-se muito alvarmente.

Nesses momentos, o Venturinha era de todo feliz, e então dizia por gestos o que tinha feito à serrana, numa mímica teatral perfeita e elucidativa. Se lhe pediam para imitar o «Padre reque-reque», ele, em voz de cantochão, e num latinório próprio dele, lá cantava uma confusa lenga­lenga: «nhó, rennhanhá, renhenhé...» e a risota era geral. Ele próprio atirava sonoras gargalhadas e, todo curvado, mãos entre as coxas, dava uns passos a manquejar: «esta é que num passa! esta é que num passa!»

Alguns, com mais brejeirice, faziam-lhe convites obscenos, que ele sabia entender como brincadeira. Então alinhava com eles e a mancar fugia com as mãos atrás das costas «chiça, chiça, que ele pode mandar!»

Nem tudo nele era anormal: a sua patética ternura pelas crianças e o seu amor pela mãe...

— «Bô p’á mãe!» — dizia ele, na sua linguagem quase monossilábica, nos raros dias que pernoitava em casa.

A sua morte deixou um vazio no povo. Não mais um mendigo tão humilde e tão manso como ele.

Se nada fez para retribuir à sociedade as esmolas, os cigarritos e os paletós que esta lhe deu, bem pode a sociedade sentir-se recom­pensada por ter feito de um louco um actor burlesco e barato, que dava tiros com um pau para pagar as migalhas que comia...

Maio - 1984

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