O VENTURINHA, O MAIS
TÍPICO DOS ORATES DE CACIA

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Errante
por índole, passava a vida atrás das filarmónicas, «tocando» flauta no seu
inseparável pau.
Caminheiro
vagamundo, calcorreando estradas e montes, não faltava nunca às festas e
romarias que metessem musicatas. Algumas vezes até fora visto em festividades
bem longe da sua terra natal, lá para as serras de Sever e de Águeda.
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Bem
recebido por onde andava, o seu aparecimento nas povoações era, só por si, o
mais alegre anúncio das festividades que se avizinhavam. Atrás dos rebanhos
das chibas que percorriam o povoado como carne em bruto para as caçoiladas de
chanfana, ele era o arauto inconsciente da pândega festiva.
Munido
do seu pau — da sua flauta! —, que nunca abandonou, descalço, sujo e mal
barbeado, calças com remendos alacres, perna abaixo perna acima, era um
pobre-de-Cristo, olhos mansos como os dos cordeiros, uma alma pura em mente
atrasada. Mas para que o seu ar de pateta ganhasse em comicidade o que em
humildade tinha abonde, os «benfeitores» vestiam-lhe um velho smoking, peça
de roupa que, por caída em desuso, só servia para espantalho de favais. E para
que a figura se tornasse mais burlesca, nunca lhe faltou, a cobrir a cabeça, um
velho boné de pala oferecido por um qualquer músico reformado...
Tinha,
assim vestido, um ar misto de pateta, de santo e de Charlot, mais acentuado pela
inclinação da cabeça na humildade de quem não é nada no mundo dos outros.
Talvez
por essa persistente humildade de mendigo, ou ainda pelo seu olhar sem outra
ambição que não fosse um bocado de pão ou um cigarrito, ao Venturinha ninguém
negava um mínimo da ternura e da misericórdia que todos os almas-de-Deus
merecem da sociedade.
É
certo que deste santo vagamundo o povoléu tirava a sua contra-partida: ele
servia de gozo ao rapazio que se entretinha a puxar-lhe o pau e as abas do paletó,
quando não mesmo o ameaçava de «quem leva o bombo é o preto!»
Então
era ver o Venturinha (ou o Ventura Castelhano), dementado pela ameaça de
perder lugar na hipotética filarmónica dos seus loucos sonhos, correr atrás
da garotada, agarra-que-agarra, agressivo e malcriado: «fi de p’ta, menino,
mato já» — e atirava pedras com a canhota ou mesmo o pau, atrás dos
tornozelos da canalhada.
Mas
nem só a garotada se comprazia nesta espécie de diversão. Os próprios
adultos se juntavam à volta do Venturinha para o desfrutar.
—
«Um p’a cada um!» Assim pedia o pobre um cigarrito, puxando repetidamente,
com uma das mãos, o botão do paletó.
O
gozador antes de lhe dar o paivante, proporcionava o espectáculo: com uma das
mãos estendia-lhe o cigarro e com a outra, à sorrelfa, tirava-lhe o pau!
O
Venturinha, entristecido de todo, sem o seu pau, perdia a personalidade e era vê-lo
lamurioso, infeliz, mendigar a sua «flauta». Exasperado por sucessivas negaças,
ameaçava o usurpador: «eu mato já! fi de p’ta!»
No
largo da estação de Cacia, nas tardes de domingo de há cinquenta anos, o «espectáculo»
tinha muitos assistentes e participantes. Mas não se deva entender mal aqueles
divertimentos à custa dos orates. É que naquele tempo, em que não havia ainda
nas aldeias futebol, nem ainda se sonhava com a T.V. nem com as casas de diversões,
as horas de lazer aos domingos e dias santos (que feriados não se respeitavam),
eram preenchidas com espectáculos deste género, já que era raro a passagem de
saltimbancos e de fantoches, únicos regalos de então! Os orates, nesses
tempos, eram uma necessidade e o povo deles se aproveitava como passatempo cómodo
e barato.
O
Ventura Castelhano foi o mais notável maluquinho desta região. Morreu há
quase 30 anos e com ele o último dos orates-espectáculo. Os que existem
actualmente, com o aparecimento da T.V. e doutras diversões, vivem em modesta
paz, ou estão simplesmente postos de lado. Sem querer, a T.V. contribuiu para a
moralização de certos costumes!
Contrastando
com aquela crueldade sem crueza, gente havia que tratava bem o pobre Castelhano:
bastava que ele pedisse «chiba-malaia» e de imediato lhe davam comida, algumas
vezes seguida de um cigarrito que ele chupava até queimar os dedos.
Com
estes que assim o tratavam, ele sabia provocar ingénuas brincadeiras, fazendo
negaças de quem dá um tiro: do pau fazia espingarda, levantava um pé e... «—
pum, já matê!» E ria-se muito alvarmente.
Nesses
momentos, o Venturinha era de todo feliz, e então dizia por gestos o que tinha
feito à serrana, numa mímica teatral perfeita e elucidativa. Se lhe pediam
para imitar o «Padre reque-reque», ele, em voz de cantochão, e num latinório
próprio dele, lá cantava uma confusa lengalenga: «nhó, rennhanhá, renhenhé...»
e a risota era geral. Ele próprio atirava sonoras gargalhadas e, todo curvado,
mãos entre as coxas, dava uns passos a manquejar: «esta é que num passa! esta
é que num passa!»
Alguns,
com mais brejeirice, faziam-lhe convites obscenos, que ele sabia entender como
brincadeira. Então alinhava com eles e a mancar fugia com as mãos atrás das
costas «chiça, chiça, que ele pode mandar!»
Nem
tudo nele era anormal: a sua patética ternura pelas crianças e o seu amor pela
mãe...
—
«Bô p’á mãe!» — dizia ele, na sua linguagem quase monossilábica, nos
raros dias que pernoitava em casa.
A
sua morte deixou um vazio no povo. Não mais um mendigo tão humilde e tão
manso como ele.
Se
nada fez para retribuir à sociedade as esmolas, os cigarritos e os paletós que
esta lhe deu, bem pode a sociedade sentir-se recompensada por ter feito de um
louco um actor burlesco e barato, que dava tiros com um pau para pagar as
migalhas que comia...
Maio - 1984
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