PEQUENAS HISTÓRIAS DA
GUERRA
A Capela do Quixico
Pelo Coronel
ALEXANDRE DE MORAIS
O título poderá sugerir que o
tema destes apontamentos se refira ao relato de acções de
combate. Assim não acontece. O conjunto de história, que
iremos narrar ao longo de alguns números são casos reais,
que surgiram no quotidiano da vida de campanha, mas que,
pela riqueza dos ensinamentos humanos que encerram, ou até
do seu humor, perduraram através dos anos. Todos os que
fizeram a guerra guardam, no íntimo, histórias semelhantes
de que foram protagonistas ou testemunhas. Contudo,
quantas ficarão por contar. Sei que muitos dos que me
lerem terão, neste momento. um aceno de concordância e,
num relance, recordarão várias das que consigo se
passaram. Pena é que as não lancem ao papel, apesar do
invariável argumento da inabilidade para a escrita.
São essas cenas, subjacentes às ocorridas no calor do
combate e donde, por vezes, ressaltam inesquecíveis actos
de coragem e audácia, a razão de ser do espírito de união
e camaradagem que caracterizam e diferenciam a Instituição
Militar. É todo este conjunto de acontecimentos, da
vivência compartilhada nos maus e bons momentos, à
justificação das inúmeras confraternizações que ocorrem,
ano após ano, entre militares e ex-milltares que, juntos,
combateram na guerra ou, simplesmente, para recordar o
período da recruta em tempo de paz. Bem significativo é
ainda o facto de tais iniciativas partirem, habitualmente,
de homens de escalões hierárquicos mais baixos e, em
princípio, os mais sacrificados na dureza da campanha.
1. A CAPELA DO QUlXICO
A
Companhia* estava aquartelada no Quixico, no norte de
Angola, a cerca de trinta e cinco quilómetros de
Nambuangongo. A pequena localidade, com pouco mais de meia
dúzia de casas, situa-se numa baixa, dominada por várias
elevações e densa zona arborizada. Algumas dessas casas
eram ocupadas pela Fazenda «Maria Celeste», sendo as
restantes destinadas à Companhia. Integrada nesse
conjunto, existia uma sanzala de africanos nas plantações
de café da periferia.
Pouco tempo depois da nossa chegada, os militares
católicos passaram a reunir-se, todas as noites, para
rezar o «terço». As instalações, muito rudimentares,
deixavam passar o ruído das conversas e gracejos dos que
não participavam na cerimónia, impedindo que esta se
realizasse com a devida dignidade. Muitas vezes tive que
intervir, apelando ao silêncio, mas a irreprimível
exuberância da juventude depressa fazia esquecer as
solicitações.
Foi este quadro, várias vezes repetido, e a certeza do que
em situações de campanha, porque a guerra não é só os
tiros, é fundamental manter as tropas ocupadas, que me
veio à ideia a construção de uma pequena capela. Numa das
reuniões periódicas abordei o assunto e certifiquei-me da
adesão geral e do verdadeiro interesse com que a referida
ideia foi recebida. Curiosamente, dum grande número
daqueles que não participavam nas orações da noite. Apenas
impus uma condição: que a empresa não podia afectar,
minimamente, a actividade operacional, razão da nossa
presença naquelas paragens. Foi ponto assente. A partir
daí, nasceu enorme entusiasmo e depressa se organizaram
equipas orientadas por soldados ligados à construção
civil. O nome da capela foi problema que, logo de início,
fizeram questão em definir. Por unanimidade ficou a
designar-se Capela de Nossa Senhora de Fátima.
E aonde ir buscar os materiais
necessários à construção? O cimento foi requisitado a
Luanda e os tijolos, madeiras e todo o resto foram
trazidos de uma fazenda, situada na nossa zona de acção,
que havia sido totalmente arrasada pela vaga de
terrorismo, no início de 1961. A deslocação até lá
tornava-se difícil e perigosa, por ser área batida pelo
inimigo, o que, aliás, vinha ao encontro da nossa missão
de detectar e neutralizar as suas linhas de
reabastecimento. Foi necessário remover vários obstáculos
colocados nos trilhos de acesso e, por vezes, suportar o
tiroteio com que brindavam as nossas incursões.
Com a aquisição de uma imagem de N.ª S.ª de Fátima, obtida
através dos Serviços Religiosos da Região Militar, e a
oferta de um sino feito pelo proprietário da Fazenda Maria
Celeste, o trabalho prosseguiu em excelente ritmo e, em
breve, a obra estava concluída. Como tudo o que é feito
com entusiasmo, não foi esquecido o mais ligeiro pormenor.
Das garrafas de refrigerantes improvisaram-se jarras para
o altar, foi aberto um acesso condigno à capela, uma placa
de mármore assinalava a data da sua inauguração e a
Companhia que realizara a obra, e, junto a esta, foi
erguido um mastro onde, no dia festivo, se içou a Bandeira
Nacional.
Com a presença do Brigadeiro Comandante do Sector e seu
Chefe do Estado-Maior, do Comandante do Batalhão,
representantes das outras Companhias, pessoal da Fazenda e
africanos da sanzala, foi rezada missa, a 20 de Outubro de
1964.
Foi um dia alegre, diferente, em que cada militar viu
materializada naquela obra o esforço e o empenhamento de
todos. Para além da finalidade para que fora erguida,
havia a consciência de que a actividade desenvolvida à
volta da sua construção ajudara a amenizar as preocupações
do dia-a-dia, a saudade dos familiares, os riscos que
espreitavam em cada operação e o peso dos meses de
isolamento. A partir de então, as orações passaram a
efectuar-se no silêncio da Capela de N.ª S.ª de Fátima, da
minúscula povoação do Quixico.
Contudo, mal sabia eu que a ideia iria ter maior projecção
e dela viriam a usufruir outros que bem mereciam o apoio
pela sua fé religiosa.
Alguns dias passados sobre a inauguração, compareceu no
meu gabinete um pequeno grupo de africanos da sanzala,
solicitando autorização para que, todos eles, pudessem ir
rezar as suas orações à nova capela. Claro que a resposta
só podia ser afirmativa. Todavia, não deixei de dar
instruções quanto ao respeito e ordem que exigia, sempre
que a utilizassem. A tal se comprometeram. Logo no domingo
seguinte, manhã muito cedo, encontrava-me eu a contas com
a papelada burocrática, quando fui surpreendido pelo som
de um forte coro. Curioso, procurei ver o que se estava a
passar. Verifiquei que, no interior da capela e em seu
redor, enorme aglomeração de africanos, homens, mulheres e
crianças, entoava cânticos religiosos intercalados por
orações rezadas em voz alta. Ainda hoje estou para saber
onde e quando aquela gente ensaiou tão apurados cânticos.
A iniciativa pertencia-lhes, pois os meus militares
permaneciam tão perplexos como eu. Não foi sem emoção que
me desloquei, lentamente, até junto da capela e ali
permaneci até ao final da cerimónia, olhando com admiração
a fisionomia de cada um e a atitude de recolhimento que
evidenciavam.
Quando começaram a dispersar, pedi a todos que se
mantivessem no local. Tanto quanto a minha voz deu para
ser escutada por aquele numeroso grupo, dirigi-lhes
palavras de felicitação, não apenas pela harmonia do coro,
como pelo irrepreensível comportamento. Não sei mais o que
lhes terei dito mas, nesses momentos, as palavras não
faltam, repassadas que são pela sinceridade.
Mandei um dos meus soldados buscar uma caixa contendo
terços de diversas cores, que me havia sido enviada de
Luanda, e eu próprio tive o grato prazer de os distribuir
por aquela boa gente. E lá foram alegres, simples, com
risos e gratos tão a seu jeito, e eu emocionado por aquela
tão espontânea manifestação de espiritualidade que partira
de indivíduos que viviam tão perto de mim mas de quem,
afinal, pouco ou nada conhecia. Para todos nós, aquela
cena constituiu uma lição que veio renovar forças para
prosseguirmos a espinhosa caminhada da guerra.
Passados vinte e seis anos sobre a realização desta
iniciativa, estou tão perto dela e do estado de alma que a
inspirou que, ainda hoje a sinto com a mesma intensidade e
a defendo com o mesmo calor.
(In "Jornal do Exército")
Texto obtido a partir da
publicação «Combatente», ano 21, n.º 227 de Janeiro de
1991
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