Páscoa de 1963, em Muxima

H. Carmona da Mota

 
 

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Muxima, Páscoa de 1963


Médico duma Companhia indígena nesta aldeia à beira do Quanza. Todos os soldados e quase todos os furriéis eram africanos.

De manhãzinha fazia as consultas e visitava os doentes do "hospital", acompanhado pelo experiente enfermeiro do Serviço de Saúde oficial; a partir das cinco e meia da tarde, a temperatura tornava suportável o volley, mas só até às seis e um quarto, que a noite caía rapidamente, quase sem crepúsculo. Mas não era a falta de luz que nos obrigava a suspender o jogo — poderíamos continuá-lo à luz de milhares de relâmpagos de centenas de trovoadas, que se desencadeavam todos os dias, sempre a essa hora. O que nos impedia era a chuva grossa que caía em catadupas, seguida pela invasão dos mosquitos...

Os colonos brancos que restavam continuavam com a vida que sempre haviam tido. Não apreciavam que o médico só os atendesse depois de terminado o serviço oficial. Nunca perguntavam o preço da consulta nem a agradeciam; a "tropa" estava lá para os defender — às suas propriedades, vidas e saúde. De qualquer modo não privei muito com eles.

Os furriéis eram angolanos com o curso liceal. Angola não tinha Universidade, o que os impediu de continuar. Procurando saber a razão desta guerra que não sentia minha, eram eles os interlocutores privilegiados.

Muxima era conhecida pelo seu santuário, procurado por mulheres estéreis. O padre, negro, ali vivia com a mãe. Convidou-me para o almoço de domingo de Páscoa; ali estavam também dois dos "meus" furriéis. A mãe do padre, à cabeceira da mesa.

Velha (da idade que eu tenho agora), negra, vestida com os panos tradicionais, presidia ao almoço com uma atitude de discreta e inesperada fidalguia; usava os dedos para levar o funje à boca, com a elegância com que comeria cerejas. Todos os gestos eram delicados, quase solenes. O almoço era frugal, mas muito agradável — funje de mandioca e peixe do rio (bagre?) frito em óleo de palma.

A conversa começou com evocações familiares, mas rapidamente evoluiu para a guerra; eu era o único branco, médico e "português". Cada um evocou outras Páscoas com a família. Os pais dos meus amigos eram comerciantes e percorriam Angola no seu negócio; durante as férias, os filhos acompanhavam-nos. Nas "cantinas" da estrada era frequente só serem admitidos pela porta de trás e servidos em zonas separadas.

Durante o almoço, foram-me contando as inúmeras formas de discriminação a que eram sujeitos, umas mais brandas que outras. Tudo num tom coloquial, tranquilo e sem rancor, como se se tivesse passado há muito tempo ou com outros.

Por fim não pude deixar de perguntar porque estavam do "nosso" lado. — Tinham visto os massacres da UPA no Norte de Angola, em 1961; assim não...

H. Carmona da Mota

 

h.carmona da mota"
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