Beleza do antigo faz com que Aveiro lute pelas tradições.

Olhar o passado para não esquecer o futuro.(1)

João dos Reis - In: "C. M." de 09-07-1987
 

«O mais moderno é o mais velho, não há dúvida; mas o antigo que dura ainda, é porque tem achado na experiência a confirmação que o moderno não tem.»

Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra
 

   
 

Moliceiro à entrada do Canal das Pirâmides, numa época em que a Lota de Aveiro ainda funcionava neste local. imagem de um postal ilustrado circulado em 1969 (vide original).

 

Escrever sobre Aveiro não é fácil, muito menos se nos debruçarmos sobre a sua história, com muitos séculos de usos e costumes, que tiveram praticamente o seu início no ano de 959, quando a cidade moderna de hoje foi uma povoação da beira-mar e se chamava Alavario.

Baseando-se em velhos alfarrábios e outros documentos que a equipa de reportagem do “CM” consultou quando permaneceu na também chamada Veneza de Portugal, sabe-se que Aveiro deve a sua categoria oficial de cidade a D. José, por alvará de 11 de Abril de 1759.

Razões de ordem política, ligadas aos acontecimentos da época, a situação natural e a população foram os motivos daquela distinção, aos quais Aveiro deveu anteriormente a categoria de vila notável com que a provisão de Filipe I de Portugal em 13 de Maio de 1581 a dotara já, e a situação de cabeça de concelho, que desde o meado do séc. XIII havia assumido.

As condições geográficas do litoral justificaram desde muito cedo a fixação aí de populações de pescadores. Segundo referem vários documentos por nós consultados num arquivo aveirense, um desses núcleos terá dado origem a Aveiro.

Os mais antigos documentos conhecidos que a Aveiro se referem designam a povoação por Alavario. Assim, o testamento de Mumadona, abastada proprietária de 959, reza que ela deixa ao mosteiro que instituiu em Guimarães as marinhas de sal que havia comprado em AIavario. Este topónimo revela uma nítida composição latina. O primeiro étimo, todavia, desconhece-se.

Tem-se querido identificar Aveiro com o oppidum luso-romano TaIabriga. «Se de positivo alguma coisa se pode afirmar, é justamente que Aveiro não se sobrepôs à antiga TaIábriga, cidade da via militar Eminium-Cale, localizada junto do rio Vouga, recenseada no itinerário de Antonino Pio, e necessariamente afastada das terras baixas do Litoral, que o traçado das vias romanas evitava – refere um desses documentos.

Entrando propriamente nos tempos históricos portugueses, começamos por encontrar Aveiro ligada às indústrias do sal e da pesca e à navegação, assim tendo vindo até ao presente século, embora afirmando, em abono da verdade, que de marinhas de sal vimos pouco quando permanecemos nesta região de lindas paisagens, onde o turismo está a ensaiar os primeiros passos.

Aveiro aparece-nos, desde muito cedo, integrada no sistema administrativo nacional de donatários, costumes municipais, e não conseguimos averiguar mesmo se com o seu foral também. Parece averiguado, isso sim, que D. Sancho I a doou a sua irmã D. Urraca Afonso, em 1177.

O Mosteiro de S. João de Tarouca veio depois a receber duas terças partes que D. Urraca deixara a suas filhas, D. Aldara e D. Abril. O terço de sua irmã Sancha foi vendido à infanta de igual nome, filha de Sancho I, que o doou ao Mosteiro de Celas, de Coimbra.

   
 

Edifício da Câmara Municipal de Aveiro, construído em 1797. A fotografia mostra-o ainda com o terraço fronteiriço, actualmente inexistente. (Imagem «027_Aveiro» do espólio F. M. Sarmento).

 

Parece que D. Dinis conseguiu, por meio de permutas, incorporar de novo na Coroa as rendas de Aveiro. A partir daqui e ainda segundo os mesmos documentos por nós consultados, Aveiro teve várias doações, entre as quais D. Fernando que doou a vila a D. Leonor TeIes, «transacção» que foi feita na vizinha Eixo e em cujo documento aquele soberano torna público o seu casamento com aquela dama, com data de 5 de Janeiro de 1372.

Depois de Alfarrobeira, D. Afonso V doou Aveiro ao conde de Odemira, D. Sancho de Noronha, em sua vida, por diploma firmado em Lisboa em 13 de Junho de 1449, doação depois ampliada a outras vilas. A casa do 2.º conde de Odemira foi confiscada por ele se haver envolvido na conspiração contra D. João II, que fez então mercê de Aveiro a sua irmã, a infanta Dona Joana, recolhida no Mosteiro de Jesus, daquela cidade, monumento que a nossa equipa de reportagem chegou a visitar.

Com D. José de Mascarenhas, sentenciado como principal implicado na conspiração de 1758 contra o Rei D. José, terminou a série dos donatários de Aveiro, voltando a vila à posse da Coroa, para dela nunca mais sair.

Um outro documento refere que o factor que mais condicionava a vida política, social e económica de Aveiro era o seu foral, afirmando-se que a vila não o possuía antes da reforma geral ordenada por D. Manuel I.

   
 

Aspecto da Ponte de Carcavelos e antiga zona de salinas, no local onde actualmente passa a auto-estrada Aveiro-Vilar Formoso. Foto da colecção Carvalhinho.

 

António de Oliveira Freire, na sua Descrição Corográfica do Reino de Portugal, de 1755, escreve: «Deu-lhe foral el-rei D. Manuel em 1515, reformando o que já tinha por el-rei D. Afonso IV», mas o padre Carvalho dá-nos conta que esse foral é apenas uma «colecção de costumes», nunca se chegando a saber que tipo de costumes eram esses de então, pois sabe-se que a documentação de Aveiro nunca foi metodicamente reunida. O próprio foral manuelino, conhecido apenas por cópias e, para acréscimo das dificuldades, o registo do diploma no livro da Leitura Nova, da Torre do Tombo, apresenta redacção tal, que constitui um enigma, pois não condiz com as cópias de várias épocas existentes, e não resiste, mesmo, à análise comparativa com outros forais manuelinos de vilas do termo de Aveiro» – afirma-se num outro documento.

 

Homens-livres na sua profissão

«Ao longo da história de Aveiro, surge-nos uma população constituída por marnotos experientes, pescadores taciturnos, mareantes arrojados, construtores navais, artífices de diversos ofícios subsidiários da actividade marítima, profissionais de mesteres indispensáveis à vida urbana, pequenos comerciantes intermediários mercadejando sobretudo com ingleses e flamengos, agricultores de terras circunvizinhas, nobres e clérigos vivendo dentro das muralhas, oleiros laborando à ilharga da antiga vila, alguns judeus num desvio interior para os lados da porta de Vagos... Enfim, todos os elementos que compõem um aglomerado humano intensamente laborioso» – refere-nos o escritor João Gaspar Simões na sua recente obra Aveiro – Notas Históricas, que a edilidade aveirense, através dos serviços de cultura, teve a amabilidade de oferecer como ajuda ao nosso trabalho.

Nesta obra, João Gaspar Simões relata um pouco a vida dos marnotos, que não vimos a trabalhar nas famosas marinhas de sal, cujo produto era então exportado (não sabemos bem se agora continua ou não...) para Inglaterra, França e Flandres. Os marnotos eram o seu sustentáculo, felizes, como nos diria João Gaspar Simões, por «fazer o sal». Uma produção que praticamente também já não vimos quando aqui estivemos recentemente. Um sal que era (ainda é...) o «ex libris» de Aveiro. Nem moliceiros também descortinámos.

   
 

Aspecto da Praça da República, antes dos edifícios por detrás da estátua de José Estêvão terem sido demolidos em 1964. Imagem obtida a partir de um postal ilustrado circulado em 1917. À esquerda, o Liceu José Estêvão, actualmente Escola Secundária Homem Cristo.

 

Por outro lado, as numerosas olarias, então existentes nos limítrofes de Aveiro, muito especialmente na vizinha Aradas, também já desapareceram. Aradas foi o Império das olarias artesanais, império esse derrubado com o decorrer dos anos. Já nem sequer se dança a «Dança dos Oleiros» numa região que foi muito famosa pelas suas faianças, pelos mais diversos tipos de cerâmicas, e que hoje sobrevive através da não menos famosa porcelana da Vista Alegre, mundialmente conhecida.

«Em coisas cerâmicas – malgas para o caldo, pratos para o conduto, tigelas para o vinho, púcaros para a água, bilhas para variados fins... – Aveiro bastava-se e até consta que exportava para a província do Minho, pois eram numerosos os navios que daqui levavam olarias para os portos de Viana do Castelo e Caminha» – refere ainda João Gaspar Simões.

Muita coisa se tem perdido na região de Aveiro quanto ao aspecto etnográfico, mas as tradições culturais têm estado a ser preservadas pelos Serviços de Cultura municipais, que têm trabalhado para que nem tudo desapareça de uma vez para sempre, como barcos moliceiros, os usos e costumes, a arquitectura regional, todo um património de elevado teor Cultural, humano e paisagístico.

Ainda recentemente aqueles serviços editaram um livro sobre Aveiro Antigo com fotografias que António Campos Graça expôs no Salão Cultural do Município, «produto de meio século de trabalho». A colecção exibida mereceu a admiração e os mais elevados encómios do público aveirense que se mostrou muito interessado em conhecer e reviver imagens de antanho, cujos elementos   característicos referenciam a Identidade da cidade» – como nos referiu o vereador Custódio Ramos.

Desta maravilhosa obra de António Graça, popularmente conhecido por «o fotógrafo de Aveiro», retirámos uma série de fotografias para ilustrar o presente trabalho que, como nos diria Custódio Ramos, oferece a possibilidade de se conhecer a evolução da cidade de Aveiro e do seu meio, «autêntica crónica do passado, história do presente, reflexão no futuro».

Um futuro que vem já do antigamente. Do antigamente que foi a povoação de ontem quando se chamava AIavario. Da cidade moderna que é hoje, próspera e que tende a progredir cada vez mais, mesmo que o mar, a navegação, a pesca, a ria e a sua indústria de sal deixem de existir

João dos Reis, In: “CM” de 9/7/1987.

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(1) - As imagens utilizadas não são as mesmas do artigo publicado em 1987. Na falta dos originais, utilizámos outras idênticas existentes no espaço «Aveiro e Cultura».

Colaboração de
José Lopes

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Data de inserção
26-09-2008