AVEIRO, que foi das
primeiras cidades da Península a interessar-se, tão entusiástica como
conscientemente pelo Desporto, inaugurou o seu primeiro velódromo
localizado no Rossio — em 1 de Junho de 1895. O segundo, que seria,
afinal, o último, construiu-se uma novena de anos mais tarde, no
transfigurado Cojo, por iniciativa do Clube dos Galitos, donzel ainda,
mas já pletórico de seiva, empreendedor e ousado.
Depois de um período
rico de competições, corolário assaz lógico da paixão desencadeada no
meio citadino pela velocipedia, sobreveio o esmorecimento. Foi então
que, tomando em suas mãos a bandeira do ciclismo, abandonada pelos
antigos prosélitos, a levou a flutuar de novo nos luminosos céus
aveirenses. Paralelamente, um fenómeno, aliás comum a todo o mundo, se
verificava — a democratização do Desporto. E, assim, o gosto pelo
ciclismo, que irrompera nas classes privilegiadas, nos meios da chamada
mocidade de bom-tom, transplantou-se para o seio da burguesia,
popularizando-se rapidamente.
A inauguração do
Velódromo do Clube dos Galitos despertou na cidade vincadíssimo
entusiasmo. O «Campeão das Províncias», bissemanário de grande formato e
larga audiência regional e até nacional, dava fé desse calor ao inserir,
em 30 de Julho de 1904, a notícia, que vale a pena transcrever, do
histórico evento desportivo. Vejamo-Ia...
«Vai grande animação
para a corrida de bicicletas que o Clube dos Galitos tenciona
realizar amanhã, no Ilhote. Eis o programa, que é, como se vê, deveras
atraente:
1.ª corrida,
«Pintainhos» — 3 voltas (1.500 metros) — 1.º prémio, medalha de vermeil;
2.º, medalha de prata; 2.ª corrida,
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«Franguitos» — 6 voltas (3.000 metros) 1.º prémio, medalha de vermeil;
2.º, medalha de prata; 3.ª corrida, «Frangos» — 8 voltas (4.000 metros)
— 1.º prémio, medalha artística, oferecida pelo Sr.
Domingos Martins Vilaça; 2.º, medalha de prata; 4.ª corrida, «Galitos» —
10 voltas (5.000 metros) — 1.º prémio, medalha artística oferecida pelo
Sr. Manuel Fernandes Lopes; 2.º,
medalha artística oferecida pelos Srs. Souto Ratola & Irmão; 3.º,
medalha de prata; 5.ª corrida, «Tandens» — 10 Voltas (5.000 metros) —
Prémio único, dois objectos de arte, iguais; 6.ª corrida, «Consolação» —
3 voltas (1.500 metros) — Para todos os corredores não premiados nas
corridas antecedentes; prémio único, objecto de arte. A distribuição dos
prémios é feita no próprio local.
Júri:
presidente, José Prat; vogais,
António Maria Ferreira e
Manuel Lopes da Silva Guimarães; juiz de partida,
Francisco Freire; juiz de chegada, José de Pinho; contador de voltas,
Manuel G. Moreira; cronometrista,
Eugénio Costa; fiscais de pista, todos os
sócios do clube.»
A actividade do Clube
dos Galitos não se quedou pela inauguração do velódromo. De um periódico
local, datado de 22 de Outubro do mesmo ano, respigamos todo um relato
de outra jornada ciclista, relato assaz curioso, pois que nos dá a
ambiência do recinto:
«As corridas de
bicicleta promovidas pelo Clube dos Galitos e realizadas, no domingo
passado, no Cojo, atraíram ali numerosa concorrência. No recinto, que
estava vedado com as «empenadas» da Feira de Março, via-se um coreto
onde tocou a Filarmónica Amizade, o pavilhão destinado à Direcção e aos
membros do Júri, e, ao longo da pista, uma longa fila de cadeiras onde
tomaram lugar reservado muitos espectadores, vendo-se os outros de pé
para melhor seguirem o torneio dos lidadores.
Feita a chamada,
entraram no desfile geral os corredores.
A 1.ª corrida foi
disputada por Eduardo Trindade,
José dos Santos Alexandre e
Alfredo da Silva Gouveia. Ganhou
o 1.º prémio Eduardo Trindade e o 2.º Santos Alexandre.
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Aspecto da inauguração
do Velódromo do Cojo. |
Para a 2.ª corrida,
apresentaram-se oito corredores. Procedendo-se a duas corridas
eliminatórias, ficaram em campo
António da Cruz Bento, Francisco
Pereira de Melo, Manuel Ferreira
Canha e João da Cruz Pericão. Correu
também o Sr. Raul Pinheiro, do Porto,
chegando em 1.º lugar o Sr. Canha, em 2.º o Sr. Pinheiro, sendo a
corrida protestada por este senhor.
Na 3.ª corrida,
tamdens, chegou em 1.º lugar o Sr. António da Cruz Bento, que tinha
por companheiro o Sr. António
Rodrigues Jerónimo.
Na 4.ª corrida ganhou
o 1.º prémio o Sr. Canha, e o 2.º o Sr. Pereira de Melo.
Na 5.ª corrida,
campeonato, ganhou o 1.º prémio o Sr. António da Cruz Bento,
seguindo-se-lhe o Sr. Pericão.
Na 6.ª corrida venceu
o Sr. António Capela, seguindo-se-lhe o Sr.
Pompílio Ratola.
As corridas foram
muito interessantes, despertando geral entusiasmo. Afirmaram-se
excelentes corredores António da
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Manuel Ferreira Canha Júnior, João da Cruz Pericão e Francisco Pereira
de Melo.
Parabéns aos
promotores das corridas.»
A rivalidade entre
Manuel Ferreira Canha, que se revelaria sobretudo um bom estradista, e
António da Cruz Bento, a impor-se como excelente «pistard», começava a
amanhecer, galvanizando multidões que, pressurosas, acorriam à beira das
estradas ou a bordar o anel do velódromo.
Na imediata temporada
de ciclismo, o entusiasmo em Aveiro pelo desporto do pedal aqueceu ao
rubro... Num jornal, de 5 de Julho de 1905, podem ler-se, entre outras,
as seguintes linhas, que transcrevemos também sem a menor alteração, a
fim de conservarem todo o seu sabor...
«As corridas de
bicicleta efectuadas no domingo último, no Velódromo dos Galitos,
despertaram, como havíamos previsto, verdadeiro interesse. O «match»
entre António da Cruz, (o Balão) e Manuel Canha, os dois
primeiros actuais corredores de Aveiro, levou ali, tomadas de
curiosidade, centenares de pessoas, e foi, de facto, a corrida que maior
entusiasmo despertou. O percurso, de 16 voltas, foi feito rapidamente,
seguindo um na esteira do outro, até que, à 14.ª, o Balão, numa «embalage»
feliz, se colocou na dianteira, não mais sendo atingido. À penúltima
volta, a roda da frente do Sr. Canha tocou no pedal esquerdo do seu
competidor, que se aguentou no balanço, e partiu, como era natural,
alguns raios a essa roda, prosseguindo na sua marcha vencedora. Foi
aclamado pela multidão e levado depois em triunfo pelos seus amigos.
Mais tarde, no final
das corridas, foram a banda dos «Voluntários» e numerosas pessoas
felicitar seu pai, O nosso velho amigo Sr. António Cruz, à porta de quem
se queimaram dezenas de foguetes, como numa entrega de ramo.»
E o autor da local
não se exime a comentar, ele também com uma pontinha de mal escondido
entusiasmo: «Foi uma tarde cheia para os espectadores.»
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A fundação do Clube dos Galitos, que veio insuflar sangue novo à vida
associativa aveirense, arrancando inclusivamente o burgo ao marasmo em
que caíra, contribuiu deveras para que o ciclismo atravessasse uma hora
doirada e, com ele, o desporto português.
As corridas de
bicicletas, com os seus ídolos, inocularam-se na alma popular, e o
próprio cancioneiro aveirense, como prova provada dessa verdade, regista
alusivas trovas:
O Balão foi a Lisboa,
teve a sorte de ganhar;
Ganhou o primeiro prémio,
mas não lho quiseram dar.
O Balão foi às corridas
com sapatos de pelica;
quem perdeu foi o Capela,
quem ganhou foi o Bailica.
António da Cruz
Bento, o Balão, Francisco Pereira de Melo, o Bailica,
José dos Santos Capela já hoje não
são mais do que acerbas saudades. Eles e tantos outros, talvez todos os
que com eles competiram nas memoráveis tardes do velódromo do Cojo, do
velho e desaparecido IIhote. Mas as suas façanhas perduram na fria
História e na florida Lenda.
Por seu turno, a
Colectividade subsiste, garbosa e dada a iniciativas, eternamente
enraizada nas margens da laguna, castiça sala de visitas de Aveiro. Lá
diz efectivamente a cantiga, preciosa gema do cancioneiro regional:
O Clube dos Galitos
tem janelas para a Ria,
p’ra ver passar as tricanas
a toda a hora do dia.
João Sarabando |