ACHEGAS PARA A HISTÓRIA DA EPA

Paráfrases de artigos já publicados de João Laruncho São Marcos

 

Falar dos capitães que comandaram os navios da Empresa de Pesca de Aveiro é, sem dúvida, não só historiar a vida desta empresa como também fazer a história dos últimos 60 anos da pesca do bacalhau em Portugal.

Resultante da cisão numa anterior sociedade proprietária e armadora de lugres bacalhoeiros, a EPA também largamente conhecida pela «EMPRESA DO EGAS» e até ainda no burgo, entre os pescadores e pessoal das secas por «O EGAS», foi fundada em 26 de Maio de 1928 por, entre outros, Egas da Silva Salgueiro, Alfredo Ferreira Esteves e Augusto Fernandes Bagão, aonde este entrou com o velho lugre chamado «Fernando» que na nova sociedade passou a chamar-se «Santa Joana».

Com um plano de actividades bem definido, a nova sociedade propôs-se logo de entrada, mandar ainda em 1928 este navio à Terra Nova, o que de facto aconteceu, sob o comando do capitão Luís Carriço, da Figueira da Foz, e a firmar contrato com os Estaleiros Manuel Maria Bolais Mónica, da Gafanha, para construção dos lugres «Santa Mafalda» e «Santa Isabel», que viriam a efectuar a sua viagem inaugural já na safra de 1929 sob o comando dos capitães João Simões Chuva Redondo e Manuel dos Santos Labrincha.

Mas quer porque estes navios zarparam para os pesqueiros já muito tarde ou porque não encontraram peixe com abundância para comporem os seus porões, esta sua primeira campanha foi um fracasso especialmente para o «Santa Mafalda», pelo que o capitão Redondo foi logo despedido à sua chegada.

/ 10 / Entretanto, aconteceu Egas Salgueiro ter encontrado casualmente o capitão João Pereira Cajeira marinheiro rude e destemido que lhe contou em conversa amena, ser do seu conhecimento que nos bancos da costa Oeste da Gronelândia, nos meses de Julho e Agosto, os navios de pesca dinamarqueses e faroés faziam muito boas pescas.

Então, logo ali, este capitão foi contratado para chefiar o lugre «Santa Mafalda» com a condição de ir, mas sigilosamente, nesse ano pescar à Gronelândia.

Assim, em meados de Abril, como era prática, uso e costume, sem quaisquer preparativos especiais para nova expedição, lá foi o «Caveira» alcunha por que era conhecido o Cajeira, que tinha tanto de esforçado e destemido como de pouco jeito para as ciências da navegação-rumo ao Grande Banco donde, em finais de Junho, navegaria para a Gronelândia, se ali a pescaria fosse pobre e não lhe garantisse o carregamento.

Mas nesse ano a abundância era de miséria pois desde o banco George ribeirinho de Boston aos lajos do Virgem Rocos e Nainefadas das Pedras do Leste, estendendo-se pelo Platier e espalcos do Grande banco, no Sapato, no Pé e no Camandro, seguindo pelo Banco Verde, St. Pierre, Ilha das Burras, Miligrão e Esmeralda só raias e algum sanapaio.

No Manolejo colados no visgo os ferros criavam carepa, as amarras tingiam-se de limos e as bóias juntavam pampos enquanto as luas iam passando, na esperança de alguma trazer águas menos luzas e mais piscarentas.

Assim ia a pesca na Terra Nova quando os vinte e tais de Junho chegaram e o «Santa Mafalda», colhida a amarra e suspenso o ferro, começou a navegar rumo nor-nordeste da agulha, sem a bordo ter qualquer outra carta da Gronelândia além do quarteirão oeste do Atlântico Norte.

Entregue apenas aos parcos conhecimentos do Cajeira e à sua preocupação em cumprir ao que se tinha comprometido lá foi rumo ao Parwell no extremo sul da Grande Ilha, a meter-se nos terríveis e medonhos campos de gelo de água doce vindos dos glaciares com a corrente do leste gronelandez, onde obviamente se viu perdido e terrivelmente amedrontado pela situação.

Gorada a tentativa porque até o fogão nem o pão cozia segundo os tripulantes, regressou o «Mafalda» de novo à Terra Nova onde continuou a pescar e regressou a Aveiro em finais de Outubro.

Mas naqueles anos trinta de profunda depressão e crise económica tudo corria mal, pois que até os bacalhaus nas profundezas dos bancos pareciam ter-se mancomunado para tornar ainda mais negros os dias de quem tinha dinheiro investido na indústria de que eles são matéria-prima.

A situação tornara-se extremamente difícil, face à posição económica da EPA como afinal de todo o armamento bacalhoeiro nacional que atingia quase a insolvência, incapaz de, por si, conseguir créditos de campanha para fazer seguir os seus navios à pesca nesse longínquo ano de 1931.

Nesta conjuntura reuniram-se os três principais sócios e responsáveis da Empresa, Egas Salgueiro, Alfredo Esteves. e Augusto Bagão, com os três capitães Manuel Labrincha do «Santa Isabel», João Cajeiro do «Santa Mafalda» e João Ventura / 11 / da Cruz do «Santa Joana», a quem relataram a verdade nua e crua da situação financeira da EPA, face ao que estes garantiram, sob palavra de honra de cada um deles de, nesse ano, irem pescar à Gronelândia se para tanto fosse conseguido o dinheiro indispensável para pôr os navios no mar.

É então que aparece Dona Laura Justina Estrela, esposa do marchante Alfredo Ferreira Esteves, senhora de bens e créditos pessoais apreciáveis a dar o seu apoio à expedição e com o seu aval pessoal a viabilizar os créditos que iriam assim prolongar por mais quase cinco décadas a pesca nacional de bacalhau.

Mas quase poderíamos garantir que no audacioso cálculo de probabilidades da intemerata investidora deve ter surgido como pedra angular a confiança que os vizinhos ílhavos lhe ofereciam de, ela tinha a certeza, serem capazes de levar a bom termo o seu intento sem nada mais exigirem do que os magros e usuais proventos de trabalho rotineiro.

Assim lá foram, mas sigilosamente por imposição do Egas cujo lema era ser o segredo a alma do negócio, os três sem nada combinarem entre si nem uns dos outros saber, com rumo à Terra Nova, mas todos com a certeza de se no regresso, os navios não viessem carregados de bacalhau, o seu inevitável destino seria acabarem por apodrecer na amarração.

Só o Cajeira, porém, pouco confiante dos seus próprios recursos e escaldado da sua gorada tentativa do ano anterior, logo que se ofereceu oportunidade, em pleno Grande Banco, procurou o seu velho amigo Aquiles Bilelo a convidá-lo para o acompanhar na viagem, mas ao que este se escusou por o seu velho gamelão «Santa Luzia» ter, como veleiro, tanto de abatimento como de seguimento e por isso ser incapaz de, a partir daquelas paragens, navegar a Norte, com os ventos habituais predominantemente Ponteiros rumo ao Estreito de Davis.

Mas logo tudo ali se arrumou pois que o Cajeira com o seu espada e andarilho «Santa Mafalda» se comprometeu a passar-lhe um cabo de reboque para, enfiando-o no vento, ganhar assim mais barlavento.

Deste modo ligados, navegaram para Norte durante quatro dias até que, numa noite de tormenta, com vento do Sueste frescalhudo, o cabo partiu para não mais se avistarem senão em Portugal.

I I

/ 12 / Naquele tempo, na Vila Maruja por costumeira, mulheria aí rente ao meio-dia, assumia vezes sem conta à porta da rua, a saber do carteiro sempre tardio. Mas mal ia, quando passava lesto e antes da hora. Aliás a impaciência logo aumentava se no ar corria o sussurro longínquo da vozearia que anunciasse: Vieram cartas do Banco! Cartas do Banco!

Era tão correntio, alguns navios partirem e desaparecerem sem rasto deixar que carta chegada era em voz alta lida a toda a gente interessada, pois sempre
contava, era da norma, quais os navios que passaram à fala ou os que só, ao longe, tinham sido avistados, sinal certo e seguro de que, a essa hora, ainda havia vida nesses pequenos mundos do Oceano.

Desta maneira a campanha foi avançando para o seu termo e Setembro ia já quase todo fora quando da Costa Nova, mas mais cedo do que o habitual, voa o rebate alvissareiro... Navio à vista! Navio à Barra...!

Na borda do mar e na Meia Laranja a discussão é acesa. É... Não é... teimavam uns e outros até que o veleiro que vagarosamente vem avançando, ao sondar as dez braças mete à orça, enfia no vento e camba a bombordo.

Era mesmo um dos do Egas, o «Santa Mafalda» pesado e com a missão cumprida.

Mas pairava ainda este chape-xuga frente à Barra, perdidas já duas luas em mortificante espera de águas para entrar quando viu surgir ao longe na linha do horizonte a silhueta elegante dum outro veleiro mas emarado que o vento fora soprava baixo e já fresco, convés corrido, limpo e desempachado, sem botes, sem gaiúta e sem albôis, sem borda, apenas destacada pelos cabeços esgalhados que a bordo do «Mafalda» fundeado nas 7 braças pensaram ser navio de viagem seguindo o seu destino.

Mas aqueles olhos de marinheiros habituados a perscrutar o horizonte, quer sob a reverberação solar ou nas sombras e negrumes da noite e da cerração, notaram naquela mastreação e aparelho um ar familiar.

Era o Isabel...! Metido, ajoujado em sobrecarga brutal na ânsia de trazer riquezas para outros nanja para os que o tripulavam felizes e ufanos da missão cumprida vergado ao peso e aos maltratos, ferido mostrando no seu convés a marca do algoz, mas digno e firme como uma rocha sob a mão hábil e vigorosa do Labrincha incontestavelmente o maior marinheiro do seu tempo.

Quatro navios e quatro capitães. Nomes que já ninguém lembra e quase ninguém fixou. Gente modesta e simples nas maneiras, bondosos e afáveis no trato.

No seu porte nada havia de brutal nem de heróico; e o que em terra tinham de tímidos e contrafeitos, no mar eram gigantes que tratavam a Deus por Tu, que no Céu manda, como eles mandavam a bordo dos seus navios.

Face a tal abundância, em 1933, a EPA compra um velho lugre, o «Encarnação», a que dá o nome de «S. Jacinto» e cujo comando é entregue ao capitão João Fernandes Matias, o Britaldo.

Contudo, em 1935, num rasgo de progresso e grande alcance e evolução socioeconómica, a EPA, ao perder em plena Gronelândia, o lugre «Santa Joana» que sob o comando de Francisco dos Santos Calão se afundou, abalroado por uma motora de pesca faroé, vende o lugre «São Jacinto» à Empresa de Pesca de S. Jacinto de Coimbra, altera o seu pacto social com a entrada de Carlos Roeder e de D. Diogo Passanha, representado pelos seus três filhos, e dá o maior / 14 / salto registado na pesca longínqua nacional, mandando construir, na Dinamarca, o primeiro grande navio de arrasto português, especialmente equipado e munido com todos os pertences para a pesca nos mares frios do bacalhau a que deu o nome de «Santa Joana».

Comandado por João Ventura da Cruz, este navio inicia a sua actividade em 1936 levando a bordo além dos 60 tripulantes portugueses da lotação, mais nove pescadores franceses e um maquinista alemão como monitores.

Estes pescadores eram cedidos por uma das maiores empresas de pesca de França, a Morue Française a quem a EPA contratualmente pagava 25% do pescado do «Santa Joana» depois de pagar as respectivas soldadas directamente aos monitores. Em contrapartida, a Morue Française obrigava-se a vender à EPA todos os materiais de pesca e outros necessários aos arrastões, assim como a fornecer todas as informações de pesca semanais sobre pesqueiros e quantidades de bacalhau pescado pelos navios franceses.

Só em 1938 é que o «Santa Joana» arranca para o noroeste Atlântico levando a bordo só tripulantes portugueses, comandado por Francisco dos Santos Calão, como «capitão dos papéis» e Manuel Pereira da Bela de capitão pescador.

Ainda por intermédio da Morue Française em 1939 a EPA adquire o arrastão francês «Spitzberg», navio incendiado  e afundado em St. Pierre e Miquellon e que, trazido de França a reboque para Aveiro, onde foi recuperado, veio a retomar a actividade sob pavilhão português com o nome de «Santa Princesa», em 1940, comandado por António Trindade da Silva Paião.

Foi a partir destes dois navios que coercivamente sem o mínimo de ousadia nem de incertezas pelos resultados futuros, foram copiados os seis arrastões bacalhoeiros que se lhes seguiram, sob a égide da Organização Corporativa, entre 1939 e 1946, data em que os armadores privados foram autorizados, condicionadamente a mais alvarás, cabendo nestes à EPA apenas três que deram lugar ao «São Gonçalinho», «Santa Mafalda» e «Santo André», comandados por Francisco Calão, Trindade Paião e José Pereira da Bela respectivamente, enquanto o «Santa Joana» e o «Santa Princesa» por João São Marcos e Manuel Gaio.

I I I

Durante mais de cinquenta anos, os bancos da Costa Oeste da Gronelândia para os portugueses, desentranharam-se em riquezas e tragédias.

No surto desta abundância, tudo aumentou e cresceu: em terra o Armamento criou vulto e a bordo... mais perigos, mais sustos e mais canseiras. Aos olhos do mundo, tudo parecia riqueza quando havia muito mais
de fortuna.

Imolados à terrível faina; dezenas de pescadores portugueses nos seus dories dormem o sono eterno na cripta monumental do Mar de Bafin e muitos deles disseram adeus à vida ao som do ribombo dos foguetões, do badalar dos sinos e do silvar das sirenes que os chamavam... não já para bordo, depois dum dia de pesca no mar, mas à presença de Deus.

SÃO MARCOS

 

 

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