Pois que
se assim não fosse, como se atreveriam a materializar esta
sua deletéria poluição cultural? Quando leio em caracteres
de caixa alta e a quatro ou mais colunas que a nacionalidade
tal, ou tal, conta, impante, com mais um submarino atómico,
eu não posso deixar de pensar que se gastou, ingloriamente,
o equivalente ao que custaria hoje uma cidade de 50000
habitantes. Isto significa uma Aveiro-cidade ao serviço
surdo da matança ainda por determinar. Quando se despenha um
bombardeiro, ou simplesmente se deixa ao abandono, por
obsoleto, já sei que foi queimada a quantia equivalente ao
salário de 250.000 professores durante o ano de ensino, ou o
equivalente a trinta faculdades de ciências para 1.000
estudantes cada uma, ou o equivalente a setenta e cinco
hospitais de cem camas completamente equipados. Sabemos que
os americanos calculam ter de gastar, por ano, a soma
astronómica de 3.000 milhões de dólares para poderem
respirar novamente ar puro. E não desconhecemos que 8 por
cento da receita nacional francesa vai acabar no automóvel
enquanto – espantem-se amigos! – apenas 4 por cento dessa
receita é gasta em alojamentos (informação de
Michel Ragon,
in "Cidades do Futuro").
Sociedade, pois, desumanizada pelo contributo brutal,
maciço, ou simplesmente subterrâneo dos "mass-media".
Sociedade robotizada submergindo-se de alienação em
alienação. A praxis social vivendo mais um partidarismo
clubista e menos, mesmo muito menos, uma salutar e
desejável, urgentemente desejável, abertura capaz de
congregar todos os esforços no sentido de reconstruir o
nosso país em bases socialmente justas. Mas nós,
portugueses, e como vimos, não temos o exclusivo da
estupidez consumista.
Se o que
já escrevi parece destinar-se a qualquer artigo de cariz
flagrantemente político é apenas porque, nesta vida, nada há
de político...
/ p. 48 /
Quando, noite alta, a sereia geme no negrume clamando pela
acção rápida, decidida e eficiente do bombeiro que, muito
justamente, descansa os seus ossos dor idos pelas suas
obrigações de sobrevivência, tantas vezes difícil e
exaustiva, nós apenas vociferamos contra o corte do nosso
sono, ou do nosso sonho que serão retomados sem a
preocupação mínima de saber quem, nesse momento, engrossa a
voz da cidade com os seus lamentos.
– Onde
seria o fogo?
Perguntamos displicentemente (se perguntamos) enquanto
bebemos o café da manhã. Interiormente, esse sossego tépido,
essa calma, ou até alguma dor epidérmica (que por ser
epidérmica, não chega a ser dor) pela verificação de que nós
e os que nos são próximos continuamos muitas milhas a leste
da ocorrência. Todos os dias, todas as noites, a repetição
do som magoando o espaço, ir rompendo pelas avenidas, ruas,
largos e vielas, num frenesim de chamamento que só encontra
eco e resposta necessária naqueles voluntários que
representam, para mim, o exacto oposto dos tais manda-chuva
responsáveis pelo desvio do erário público das verbas
colossais para engenhos geradores de matanças cegas e
maciças. Estes homens não são chamados para matar porque não
respondem a apelos de fanfarras, nem a tambores de guerra,
nem à dinâmica de discursos habilmente inflamantes. Para
eles as madrugadas de frio encanado pelas ruelas da
beira-mar, madrugadas de descanso interrompido pela
inquietação das sereias. O ímpeto de generosidade vence de
imediato o langor trazido do mundo quente do sonho. É
preciso. E tanto basta para vencer todos os atritos, às
vezes, fortes imposições de carácter físico derivadas de
trabalhos esgotantes. Camionetas, ambulâncias, carros, tudo
vermelho e veloz atravessando as ruas desertas ou abrindo
caminho na cidade já viva e ondulante. De facto, ser
bombeiro voluntário é possuir uma riqueza imensa e rara de
abnegação e que o povo – esse povo bombeiro – guarda natural
e avaramente no mais discreto anonimato.
Tudo está
organizado para resposta pronta e eficiente. E esta
eficiência pressupõe, necessariamente, prodígios de vontade
e de sacrifício, tudo isto perdido também na penumbra e que,
por isso mesmo, raras vezes chega ao conhecimento de quantos
dela beneficiam. E somos nós todos os beneficiados. E somos
nós todos os protegidos. Todos. Ninguém, que assim nos serve
tão devotadamente, pergunta quanto valem as vidas que
protegem. Suponho que este total desinteresse tem aqui a sua
mais alta expressão de inteira, pura e universal humanidade.
Por isso não podemos deixar de sentir o mais profundo
respeito por estes homens. Por isso não podemos deixar de
admirar sentidamente /
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permitem, com tanto ou maior sacrifício ainda, a garantia de
que os olhos ensonados, de que o corpo ofegante de quem
corre, tenha a tal resposta pronta e adequada às
necessidades. Tudo a postos para a saída. Começa aqui o
gesto do homem-dador. Mas imparável, também, o trabalho
extenuante, persistente, perdido na sombra do mesmo
anonimato, o que significa, afinal, aquilo a que chamarei
espírito de bombeiro, ave rara, que só poucos terão o
privilégio de o sentir em toda a sua verdadeira dimensão, em
toda a sua plenitude. Conheço alguns, mas nutro por todos
eles uma ternura, onde o respeito se alçaprema a cada
momento.
Alienados, robotizados, enterrados até ao pescoço nesta
sociedade negociante (no dizer de
Camus) nem reparámos que o
nosso conterrâneo e amigo David Cristo – e aqui a grandeza
do seu trabalho apaga qualquer título académico – foi
distinguido com a mais alta e honrosa distinção que se pode
atingir adentro de um grupo eleito, não por sufrágio
antecedido por campanhas sobrecarregadas de promessas
mirabolantes, mas e apenas pelos serviços ímpares prestados
ao verdadeiro partido de salvação nacional a que,
modestamente, chamamos de bombeiros voluntários. Não houve
alardes, como os não há quando se salvam vidas e haveres,
quando se protegem as nossas florestas, as nossas obras
únicas e insubstituíveis. O bombeiro David Cristo apenas
cumpriu. E isso foi tudo, afinal, quanto se esperava de um
verdadeiro bombeiro voluntário. Artista de gosto finíssimo,
de variadíssimas aptidões, não regateia o tempo precioso que
consome ao serviço da colectividade. E isto é tanto mais de
encarecer e de admirar, quanto sabemos o que as letras e as
artes têm perdido pela sua falta de disponibilidade. De
qualquer maneira, eu não posso deixar de desejar ao amigo e,
sobretudo, ao bombeiro David Cristo, uma muito, muito longa
actividade.
Como
acabámos de verificar, não se tratava de um artigo
deliberadamente político, mas, a despeito desta verdade, não
deixarei de insistir na loucura, ou melhor, no desplante dos
autênticos roubos feitos à humanidade mal informada, ou
malevolamente orientada, e que assim permite o gasto anual
de somas astronómicas em bombardeiros progressivamente mais
sofisticados, em porta-aviões, em submarinos atómicos, em
ogivas termo nucleares, loucuras estas que impedem
directamente, ou à tabela, que os nossos bombeiros sejam
pagos condignamente, impedem que os nossos bombeiros
necessitem de oferecer à cooperação que servem um corpo
cansado pelas vicissitudes ligadas à sobrevivência. E,
finalmente, impedem que o nosso David Cristo possa dar-se de
corpo inteiro aos seus escritos, à sua arte, à sua própria
família. |