Hoje,
porém, esqueço-me desse significativo capítulo da história
aveirense, para me curvar diante de homens que, em tantas
horas de perigo, se demonstram como autênticos heróis. Não
lhes correrá pelas veias o sangue da cavalaria medieval ou
da fidalguia aristocrática, mas – o que é mais valioso –
continuam nos seus cometimentos a gesta singular dos filhos
anónimos de um povo vocacionado para a aventura, marcado
pelo sacrifício e impregnado de Evangelho.
Não
precisamos de relembrar o consabido acto legendário de S.
Marçal, patrono dos Bombeiros cristãos. Ele, se com o báculo
milagrosamente extinguiu um incêndio, não expôs a sua vida;
mostrou, sim, um poder taumaturgo que lhe não era próprio
porque extraordinariamente recebido por Deus.
Também
não temos necessidade de evocar Santa Mafalda, eleita pelos
Bombeiros do Distrito de Aveiro como sua padroeira. Ela,
outrossim – se é verdade o que se afirma – realizou idêntico
prodígio ao deflagrar-se um incêndio no Mosteiro de Arouca;
o seu mérito advém-lhe apenas de ser intermediária de um dom
superior.
Para os
nossos bombeiros voluntários, correndo apressadamente ao
toque da sereia, esquecidos de si e de familiares, de
cabelos encrespados ao vento, enegrecidos pelo fumo e
queimados pelo fogo, esfomeados por escassez de tempo...
para os nossos bombeiros o bispo gaulês S. Marçal ou a
rainha portuguesa Santa Mafalda não serão exemplos de
heroísmo, mas quiçá modelos de fé e intercessores no perigo.
Todavia,
se pretendermos encontrar um homem que seja o protótipo do
bombeiro voluntário, escusamos sair das páginas da nossa
história. Aí encontramos João Cidade, filho de uma família
pobre de Montemor-o-Novo, que, mercê de circunstâncias
adversas, viveu fora do país, afastado do ambiente familiar
e longe da terra natal, sofrendo na alma e no corpo
dificuldades e angústias, fomes e privações. Evocá-lo anima
na coragem aqueles homens que se dão ao irmão-homem.
Certo
dia, num dos últimos anos da primeira metade do século XVI,
os sinos das igrejas de Granada, ao sul de Espanha,
anunciavam uma pavorosa desgraça: o Hospital Real era pasto
de chamas alterosas. O povo acorria, tumultuosamente mas
ansioso por combater o sinistro.
De
súbito, ecoou um grito, soltado
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por centenas de vozes. Viam-se figuras humanas, na secção
dos doentes mentais, que, lancinantes, pediam socorro.
Mas... Como ir até lá, se as salas e os corredores eram
envolvidos por rolos de fumo e atravessados por línguas de
fogo?!... As mortes previam-se eminentes, entre aflitivos
horrores.
É neste
momento que surge um português, correndo para o grande
edifício, a arder por todos os lados. Arranca um balde das
mãos de alguém, despeja a água sobre si mesmo e desaparece
no meio do infernal cenário. O homem, que toda a cidade bem
conhecia como protector carinhoso de marginais e
desamparados, consegue libertar os doentes e conduzi-los
para fora do braseiro, amparando uns, erguendo outros,
empurrando os duvidosos e levando às costas quem não pode
andar. Salvou-os a todos.
Quando
ele, denegrido e queimado, chegou à praça, foi o delírio em
aplausos; mas não estava satisfeito. Humedeceu novamente a
roupa, respirou fundo e correu mais uma vez para o interior
do hospital; a todos pareceu que o salvador de tantas vidas
iria agora morrer queimado. Tal não aconteceu, porém. Daí a
pouco, aparecia à multidão, agora numa das varandas,
atirando colchões, travesseiros, peças de roupa, móveis,
utensílios e tudo o que podia alcançar.
O heróico
benfeitor, cumprida a tarefa a que se lançara, desceu
finalmente para o meio da multidão, aplaudido por uns,
venerado por outros e elogiado por todos.
João
Cidade – a quem o povo já apelidava de João de Deus – morreu
em 1550 e foi canonizado pela Igreja em 1691. Se
merecidamente é considerado como patrono dos enfermeiros e
dos doentes, nem por isso ele deixa de ser o precursor e o
protótipo dos Bombeiros Voluntários. E não conhecemos nós
tantos homens, mesmo vivendo connosco, que – como o
"Português de Granada" – são exemplo de heroísmo na salvação
de vidas e de haveres?...
Aveiro,
10 de Fevereiro de 1983 |