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O dr. Melo Freitas é um espirito de
extraordinaria vivacidade, de uma cultura rara, conversador de raça,
escritor e orador pitoresco e elegante, de extraordinarios recursos
e de singular ilustração.
Antigo batalhador de acesas campanhas liberais, o
Seu temperamento é o de um português de outros tempos, de rija
tempera, verdadeira reliquia do Passado em que corre a seiva juvenil
do Futuro.
Pensador doublé de sportman, entrou nas
lides das arenas e esgrimiu nos jornais e na tribuna nos tempos em
que a mocidade cravava ferros em toiros nas tardes de verão,
dansando depois finamente nas soirées e liquidando a murro as
questões das gazetas.
Foi desses, ainda, Mello Freitas. Hoje é ainda o
português que não cede um palmo da sua razão, nem esquece nunca
coisa alguma de bom que tem a terra em que nasceu que se honra em o
ter por filho e que ele ama com entranhado fervor. Eis algumas das
suas impressões e das suas palavras, cheias de bizarro e colorido,
expressamente escritas para esta publicação:
Os velhos vivem de saudades e a saudade
é uma dôce paIavra da lingua portuguêsa e tão genuina como o vinho
do Porto e alem disso com o raro previlegio de ser expressão, que
não tem eguaI em nenhuma lingua estrangeira.
Neste ponto entra Garret, erguendo-se do
pó que o envolve e em que descança, e dirá na florida eloquencia da
sua poesia que a saudade é delicioso pungir de acerbo espinho e logo
na prosa das notas do seu Camões acrescenta:
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«A ideia, o sentimento
por este termo representado, certo que em todos os paizes o sentem(1);
mas que haja vocabulo especial para o designar, não sei de outra
linguagem se não a portuguesa.»
Assim de raiz indigena temos só a
Saudade, o fado, Vasco da Gama, Albuquerque terribil,
Camões, Gil Vicente, Fernão Mendes Pinto, Alvares Cabral, Pedro
Nunes, Garcia de Orta e Bocage – onze glorias nacionais.
Os velhos olham sempre enternecidos e
embaciados para o passado. O presente afigura-se-lhes sempre
inferior ao tempo decorrido e alegre da sua mocidade. E’ uma falsa
impressão, semelhante á que por vezes se sente no comboio;
parecendo-nos que não é a carruagem que se desloca, mas sim os
pinheirais e a paisagem quo se movem com rapidez vertiginosa.
Infelizmente os velhos nem sequer ficam
estacionarios.
Declinam e descem pela colina oposta á
robustez, perseguidos pelo isolamento sucessivo, e pela tristeza
avassaladora. Deixem-nos viver na graciosa ilusão, que os acalenta!
E’ um daltonismo barato, que lhes faz
supor negro tudo quanto agora os cérca, e cor de rosa o que se
precipitou sem retorno, na voragem do preterito.
Um velho capitão do porto, desta cidade,
encarecendo a sua carreira de longos anos de stagio no Tejo, cortada
de temporais no oceano indico – dizia cheio de orgulho, perante os
incrédulos – Suestes, os senhores sabem lá o que são suestes?!
Suestes como havia no meu tempo!!...
Mas que destroço, que devastação não
produzem os anos! Tamanho é o estrago que uma dama já velhinha,
muito encarquilhada, baça e sumida, dando a ler a Rui Couceiro da
Costa (pai do atual Governador Geral da India) um madrigal galante,
da boa epoca da Arcadia, sublinhava vaidosa, com um certo
desvanecimento serodio: Aí, onde se fala em Vénus sou eu, e
sorria satisfeita, revelando dois dentes decrepitos, que
provavelmente tinham sido do mais legitimo marfim.
Refrangendo a vista por o prisma deste
amor ao ultimo quartel do seculo passado, eu vou, a traços largos,
contar o que foi a romaria da Senhora da Saude na Costa Nova, e
lagrimejar umas frases comovidas ácerca da róda com quem convivi no
tempo áureo (deixem passar a hyperbole, da minha mocidade.)
_________________
(1) –
Sentir um sentimento é forte mas é do mestre.
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Aquele arraial foi o mais interessante,
intenso, concorrido e jovial de todos os que em volta de Aveiro se
realisavam.
Principiava ao sabado quando a barca de
passagem despejava foguetes como o galeão Bota-fogo, na empreza de
Tunis, arançando magestosa, apinhada de gente, estrugindo os ares
com uma filarmonica de Uhavo a tocar um passo-doble obrigado aos
rugidos ferozes dos metais assanhados.
Na ponte era esperada pelos mordomos de
barrete, camisola e facha e pelos romeiros e rapazío endiabrado da
praia numa vozearia complicada de guinchos e assobios. Das varandas
dos palheiros repletos de mirones e banhistas, sob velarios claros
de algodão, partiam, por vezes, foguetes, gritos e gargalhadas, numa
mistura potento de desenvoltura e gaudio.
Entretanto, da Murtoza, dos lados da
barra, da Gafanha, da Vagueira e de Mira vinham singrando pela ria
os barcos moliceiros e saleiros, alterosos, a regorgitarem de
romeiros. Nos topes das velas, e pela estaca tremulavam bandeiras,
em quanto sobre as proas dançavam magotes de rapazes e raparigas ao
som do clarinetes, pifaros, tambores e harmoniuns, num batuque
ardente, impavido e regalado. Enchia-se a praia com aquela aluvião
de visitantes e forasteiros. Cada aldeia tinha então o seu trajo
carateristico.
Tudo isso se eclipsou, para não mais
voltar! A facilidade de comunicações estabeleceu a uniformidade.
Dantes não era assim. As mulheres de
Ilhavo traziam os seus capotes orlados de galões vistosos; as de
Sarrazola usavam lenços amarelos garridos, corpetes vermelhos ele
veludilho com largos botões de prata; as varinas da Murtoza, fortes
e cheias, de seios salientes, ensaiavam, com fachas de cor, as saias
muito pregadas, mostrando pernas roliças e excessivamente atrativas
e picantes; as tricanas de Aveiro assentavam nas espaduas, com a sua
elegancia tradicional, a graciosissima mantilha, donde pendia um
molho luxuoso de fitas de seda preta.
Os rapazes, afinados pelo desejo de
brilharem, apresentavam-se em trajos domingueiros, consoante a sua
origem, com gravatas de fausto e aparatosas jaquetas, quinzenas e
chales-mantas de cores vivas, encostados a varapaus de lódo, de
marmeleiro ou bambu, emponteirados.
Armavam-se rodas e danças em toda a riba,
indo largos magotes até ao mar patinhar, o que significava o derrube
frequente das raparigas e respectivos apalpões, na escalada e
travessias das…
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