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                       Maquela do Zombo 
                      
                      Resgate de 
                      restos mortais de um antigo combatente 
                      
                       
                      Revendo o álbum de memórias dos mais de quarenta anos ao 
                      serviço das Forças Armadas no desempenho das mais variadas 
                      missões, encontro páginas que sabe bem reviver. 
                      
                      Uma delas é, seguramente, a autêntica 
                      saga constituída pelos muitos trabalhos, diligências e 
                      canseiras que me viriam a permitir resgatar, em 1995/96, 
                      os restos mortais do Sarg. Justino T. Mota, caído em 
                      Angola na Guerra do Ultramar e enterrado em Maquela do 
                      Zombo em 1962. 
                      
                      Insere-se este episódio na segunda 
                      passagem por Angola, aquando da minha nomeação para Chefe 
                      do Estado-Maior da Missão de Paz da ONU em apoio daquele 
                      país (UNAVEM – United Nations Angola Verification Mission).
                       
                      
                      Estávamos em fins de Janeiro de 1995 e, 
                      nessa altura, participei, com civis e oficiais superiores 
                      de vários países, num curso sobre Missões de Paz, que 
                      decorreu na Dinamarca sob a égide da ONU. Durante esse 
                      encontro, o Coronel representante da Bulgária, tendo-me 
                      identificado através da “Lista de Participantes/Funções” 
                      como próximo responsável pela Chefia do Estado-Maior da 
                      Missão de Paz em Angola (UNAVEM), veio confidenciar-me 
                      que, ele próprio, se havia candidatado ao cargo de 
                      Observador Militar naquela Missão, mas que o pedido de 
                      cooperação aberto à Bulgária não incluía o posto de 
                      Coronel. Referiu-me, inclusivamente, ter-se 
                      disponibilizado para aceitar um “down-grading” da sua 
                      patente por um ano, mas o Governo do seu país não aceitara 
                      a sugestão e nomeara efectivamente um Major. Era para esse 
                      oficial seu conhecido, que reputou de excelente militar, 
                      que o Coronel búlgaro vinha pedir a minha “protecção”. Não 
                      obstante a natureza circunstancial do pedido, 
                      solicitei-lhe uma nota identificativa do recomendado. De 
                      pronto me entregou um cartão-de-visita, por ele 
                      previamente preparado, que guardei. 
                      
                      No final do curso, a organização 
                      providenciou transportes diversificados para o aeroporto a 
                      grupos de oficiais de acordo com os seus voos. Deu-se 
                      novamente a coincidência, de me ter deslocado na viatura 
                      onde ia também e apenas o referido Coronel búlgaro. Lá 
                      retomámos a conversa sobre o seu “protegido” – Major 
                      Alexander Alexandrov -, de sua graça. 
                      
                      De regresso a Lisboa, pouco antes do 
                      embarque e já embrenhado nos últimos preparativos, a dois 
                      ou três dias da partida, recebo um telefonema do meu 
                      querido amigo Coronel Ramiro Correia de Oliveira. Dizia 
                      precisar de um grande favor da minha parte. Resumidamente, 
                      tratava-se de tentar diligenciar em Angola a trasladação 
                      dos restos mortais de um militar então pertencente à 
                      Companhia de Caçadores Especiais nº 266sob seu comando em 
                      Maquela do Zombo, que ficara sepultado no cemitério 
                      daquela localidade em 1961! 
                      
                      Embora apercebendo-me da dificuldade, 
                      ou mesmo impossibilidade, do teor de um tal pedido, senti 
                      uma forte emoção interior. É que uma outra missão similar, 
                      também do foro sagrado, me tinha cometido a mim próprio: 
                      localizar e trazer um punhado de terra da campa do Tenente 
                      Francisco Pires Bento, meu avô materno, caído no Norte de 
                      Angola ao serviço da Pátria “combatendo o gentio rebelde” 
                      a 4 de Julho de 1918, na plenitude da vida, com apenas 43 
                      anos de idade. Comandava, na altura, o Posto Militar do 
                      Cauale pertencente à Capitania-Mor do Pombo. Esse distinto 
                      e valoroso oficial tinha já perdido a jovem esposa e 
                      deixara na aldeia natal - Meimoa -, ao cuidado de uma avó, 
                      duas crianças de tenra idade: minha mãe Alda e seu irmão 
                      Mário, os quais ficando tão prematuramente órfãos de pai e 
                      mãe viriam a estudar, com pensão de sangue, no Instituto 
                      de Odivelas e no Instituto dos Pupilos do Exército, 
                      respectivamente. 
                      
                      O telefonema do meu Amigo tinha assim 
                      para mim, neste contexto, uma ressonância muito profunda, 
                      mas simultaneamente vislumbrava no meu espírito 
                      dificuldades, quiçá insuperáveis, de qualquer das missões. 
                      
                      Mas voltando ao tema inicial que aqui 
                      nos traz, uma coisa, porém, era certa: haveria de esgotar 
                      todos os meios ao meu alcance para atender o Coronel 
                      Correia de Oliveira, por quem já então nutria verdadeira 
                      estima e enorme consideração. 
                      
                      Sem o tempo mínimo para juntos 
                      analisarmos o problema, pedi-lhe que me fizesse chegar às 
                      mãos toda a documentação útil sobre o assunto. Ele assim 
                      fez. 
                       
                       
                      Em 17 de Março de 1995 chego à cidade de S. Paulo da 
                      Assunção de Luanda e tomo posse do espinhoso cargo que me 
                      aguardava. As múltiplas tarefas da minha responsabilidade 
                      exigiram-me um trabalho diário de 16 a 18 horas ao longo 
                      de todo o ano que a comissão durou. 
                      
                      Só decorrido mais de um mês sobre a 
                      posse, consegui um mínimo de disponibilidade para me 
                      debruçar sobre a referida documentação. Analisei 
                      pormenorizadamente todos os elementos. Pareceu-me que a 
                      tarefa iria, eventualmente, além das minhas capacidades, 
                      mas deitei mãos à obra. 
                      
                      Gizei o plano com base numa seriação de 
                      tarefas que viriam a traduzir-se naquilo que denominei 
                      “Operação Maquela do Zombo”. 
                      
                      Do dispositivo operacional a meu cargo 
                      fazia parte, além das unidades dos vários países, um 
                      conjunto de Destacamentos de Observação (ditos “Team 
                      Sites”) a implantar por todo o território angolano e a 
                      implementar progressivamente de acordo com as prioridades 
                      operacionais. Para Maquela do Zombo estava prevista a 
                      instalação de um desses Destacamentos dentro de cerca de 
                      duas semanas, decorrendo nesse preciso momento o processo 
                      de nomeação da sua guarnição, a constituir com 4 ou 5 
                      Observadores Militares (estes iam chegando à Missão vindos 
                      dos vários países e de acordo com os planeamentos 
                      recebidos da ONU em Nova Iorque). 
                      
                      Alterando pontualmente o procedimento de rotina, chamei o 
                      oficial do meu Estado-Maior responsável pela área de 
                      pessoal (um simpático tenente Coronel romeno) e disse-lhe 
                      para, entre os Observadores a nomear para o Destacamento 
                      de Maquela, incluir um português ou um brasileiro. Isto 
                      facilitaria futuras conversações com as autoridades 
                      administrativas locais, além de que este tipo de nomeações 
                      não obedecia a normas rígidas. Quando o Chefe do Pessoal 
                      veio a despacho no dia seguinte, informou-me não ter 
                      conseguido nenhum Observador nomeável para Maquela que 
                      falasse a Língua Portuguesa. Como o que não tem remédio 
                      remediado está, ordenei que procedesse com urgência à 
                      nomeação da guarnição de Maquela e que, feito isso, mandasse 
                      apresentar no meu gabinete o respectivo Comandante. 
                      
                      A “Operação Maquela do Zombo” era 
                      trabalhada no meu quarto. Logo nessa noite, perante a 
                      contrariedade do idioma, refiz várias peças do plano, 
                      passando-as para Inglês. 
                      
                      Na manhã do dia seguinte, apresenta-se para falar comigo o 
                      indigitado Comandante de Maquela, a quem, para além das 
                      habituais recomendações sobre o cumprimento da sua missão, 
                      iria pedir a execução de algumas diligências, que importava 
                      explicar com o necessário detalhe. 
                      
                      Neste primeiro contacto com o oficial, 
                      eu diria (para utilizar uma gíria castrense) que logo me 
                      pareceu de “excelente aspecto militar”. À data, ainda não 
                      me era possível identificar todas as fardas, já que a 
                      Missão integrava várias dezenas de países dos cinco 
                      continentes. Por isso, indaguei, antes de mais, a sua 
                      nacionalidade: 
                      
                      “Sou da Bulgária”, disse prontamente… 
                      
                      Era, curiosamente, o Major Alexander 
                      Alexandrov, o meu “protegido”. Extraordinária 
                      coincidência! 
                      
                      Após inúmeras diligências e com a sua 
                      ajuda e das autoridades locais da Unita, foi-me autorizada 
                      a exumação dos restos mortais para os quais, posteriormente, com o 
                      apoio do Senhor Embaixador em Angola, se conseguiu 
                      transporte para Portugal na mala diplomática. 
                      
                      Não escondo a enorme satisfação que me 
                      deu ver cumprida a obrigação que assumira com um Amigo e 
                      ver realizado o desígnio sagrado de uma família a que se 
                      juntava também a dívida não saldada do meu país (com 
                      efeito os restos mortais não haviam sido oportunamente 
                      reclamados pela família devido a dificuldades 
                      financeiras). 
                      
                      Na sequência do complicado processo vim 
                      a conhecer o filho do Sarg. Mota, o Eng.º. António Mota 
                      que enquanto filho de antigo combatente fora aluno no 
                      Instituto Militar Pupilos do Exército (IMPE), ou seja, um 
                      ilustre “Pilão”, o 21 do seu ano! Ora quis o destino que, 
                      com a minha promoção a Oficial General, ali fosse colocado 
                      como Director em 1997. Tive então oportunidade de convidar 
                      o Eng.º Mota a visitar a sua antiga Casa na companhia do 
                      Cor. Ramiro de Oliveira, antigo comandante de seu pai na 
                      fatídica comissão em Angola. 
                      
                      O mais importante é, no entanto, que a 
                      família Mota já não está agora privada da consolação 
                      humana de poder chorar o seu ente querido junto à campa, 
                      na sua terra natal. É essa consolação humana que refulgirá 
                      perenemente na memória da família. 
                       
                      No fim de todo este longo processo, e dentro das minhas 
                      fracas qualidades poéticas, escrevi os seguintes dizeres 
                      em memória de um combatente caído na GU em Angola, o 
                      Sargento Justino Teixeira da Mota: 
                      
                      Último adeus a Maquela do 
                      Zombo 
                      
                        
                          
                          
                            | 
                          
                           
                          (Homenagem ao camarada, Sarg. 
                          Justino Teixeira Mota,  
                          falecido em 18 de Outubro de 1962, pertencente à 
                          Companhia de Caçadores Especiais 266 / Batalhão 262)  | 
                         
                       
                      
                        
                          |   | 
                           
                          Foste um soldado e grande companheiro, 
                          Que em Maquela cumpriu sua missão. 
                          Tanto a ela te deste por inteiro, 
                          Que te apagaste nesse ex-luso chão. 
                           
                           
                          Trinta e quatro anos são volvidos, 
                          E os entes queridos te reclamam... 
                          Quanta saudade e dor em ais sentidos 
                          Guarda a memória dos que por ti chamam. 
                           
                           
                          Fui buscar tuas cinzas com respeito, 
                          Para honrar a mensagem recebida 
                          Dos teus e do Ramiro, Capitão. 
                           
                           
                          E se à história presto humilde preito 
                          Por te levar à última guarida... 
                          Justino, eu te saúdo como irmão. 
                           
                           
                          (S. Paulo da Assunção de Luanda, 9 de Março de 
                          1996)João 
                          Afonso Bento Soares 
                          Major General  | 
                         
                       
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