Ao
Eduardo Cerqueira, em obediência às suas ordens, esta
Autobiografia
ANTÓNIO
CHRISTO, de seu chamadoiro António de Almeida Silva Christo
(sempre com «h», como consta do assento de baptismo). Nasceu em Aveiro,
em 3-6-1904. Advogado, orador, publicista, «pai da pátria» esporádico e
doente crónico. Mede 1,62 m. de altura, tem olhos castanhos e não se lhe
notam sinais particulares: nem picado das bexigas, nem picado do génio.
Pelo que respeita ao cabelo, está como o Pedro Sem, que teve e já não
tem. Nasceu-lhe recentemente a segunda dentição, por milagre do Dr.
Pompeu Cardoso.
Aos 4
anos da idade, afirmou-se publicamente monárquico: no dia 27-11-1908,
nas bochechas de El-Rei D. Manuel lI, desatou aos vivas ao "Rei
Manuelzinho" – o que Sua Majestade muito apreciou e agradeceu,
fazendo-lhe mercê de algumas carícias e pespegando-lhe dois beijos na
cara. Desgostoso por não ter recebido a carta de
Conselheiro ou o título de Visconde, amortalhou todas as convicções
políticas: passou a não ter preferências por sistemas de governo.
Frequentou o Liceu de Aveiro, onde foi um dos mais distintos cábulas, e
a Universidade de Coimbra, onde manteve os seus créditos de estudante
desleixado, conseguindo, não obstante, formar-se em Direito, no dia
3-7-1930, com a classificação invejável e honrosíssima de 10 valores.
Sobre este desprezo pelos loiros académicos, o Prof. Doutor Serras e
Silva deixou na revista «Estudos» uma nota generosa que lhe respeita.
Horas depois de concluída a sua formatura, o Prof. Doutor Mário de
Figueiredo aconselhou-o, como bom amigo, a esquecer tudo o que lhe
ensinaram na Universidade – ao que respondeu dispensar esse esforço, por
nada ali ter aprendido. Culpa sua, evidentemente, pois no seu tempo
ainda havia na Faculdade de Direito grandes mestres, que recorda com
saudade.
Assentou
praça em Subdelegado do Procurador da República, mas, apercebendo-se de
que a Magistratura era uma coisa muito séria (ou devia ser) e de que a
Justiça era vesga, preferiu ajudá-la como moço de cego: dedicou-se à
advocacia. Mas nem por isso a Justiça deixou de continuar a tropeçar
muito frequentemente...
Tem
perdido umas causas e ganho outras, sucedendo até que, para prestígio
dos Tribunais, ganhou algumas que merecia perder e perdeu algumas que
merecia ganhar. Publicou uma dúzia de trabalhos jurídicos, simples
alegações, com uns títulos muito engraçados – como, por exemplo:
Um caso de servidão (1941), Investigação de
paternidade ilegítima (1950), Sedução com abuso de
autoridade (1951), Abuso de liberdade de imprensa
(1953), e Desvio de poder e violação de lei (1955). Pelas
amostras se vê que, abordando questões de Direito civil, criminal e
administrativo, não passa de um pobre advogado provinciano... de
«clínica geral».
Em
Coimbra, foi elemento activo do C.A.D.C. (Centro Académico de Democracia
Cristã) e dirigiu durante alguns anos a revista «Estudos».
Já então
tinha a mania de «pregar aos peixinhos» – e por isso orou em muitas
cidades conhecidas e em muitas aldeias ignoradas, do que ficou memória
em diversas gazetas do país e no livro da «Queima das Fitas» do seu
curso.
Em
Aveiro, não lhe consentindo a sua pelintrice uma fundação como a de
Calouste Gulbenkian, fundou a Juventude Católica de Aveiro
(9-3-1924), as Conferências de S. Vicente de Paulo (Conferência
de Santa Joana Princesa, que ainda vive, e Conferência de Santo António,
que feneceu), o Lactário de Santa Joana Princesa e o Núcleo de
Aveiro do Corpo Nacional de Escuteiros (do qual nasceram os de
Vilar, S. Bernardo, Cacia, Ílhavo, Vista-Alegre e Calvão) e o semanário
católico e regionalista «CORREIO DO VOUGA», hoje gaita ou órgão da
Diocese.
Fundou
também e manteve em sua casa uma Escola para operários (donde
saíram algumas dezenas de bons letrados), que o Governo esconde ter sido
a inspiradora... da Campanha Nacional de Educação de Adultos.
Foi
sacristão da igreja de Santo António e deputado na lII legislatura,
tendo ajudado a centenas de missas e piado uma só vez na Assembleia
Nacional.
É sócio
honorário da Sociedade Recreio Artístico, sócio ordinário dos Bombeiros
Voluntários e sócio ordinaríssimo de quase todas as associações locais,
mas nunca foi convidado para a Academia das Ciências, a Academia
Portuguesa de História e outros grupos recreativos semelhantes.
Firmados
os seus créditos de orador, pregou alguns sermões – em Lisboa, Porto,
Coimbra, Évora, Portalegre, Torres Novas e Aveiro –, sempre muito
agradáveis... para os que tiveram a boa fortuna de o não ouvir. O antigo
Ministro da Justiça, Dr. José de Almeida Eusébio, depois de escutar-lhe
uma conferência sobre questões prisionais, quis... metê-lo na
Penitenciária de Lisboa, como director da cadeia – mas o palerma não
aceitou o convite.
Sendo
«ceboleiro» de nascimento (veio ao mundo, segundo lhe contaram, numa
casa, já desaparecida da antiga Rua de S. Sebastião), tornou-se
autêntico «cagaréu» – e, como tal, tem procurado servir a sua terra,
dentro dos limites das suas possibilidades, interessando-se pela defesa
do seu património artístico e pelas suas manifestações culturais e
dedicando-se ao estudo de alguns problemas e de algumas notabilidades
aveirenses. Assim é que, com um olho no passado, outro no presente e
outro no futuro (fala-se dos olhos da cara e do olho do entendimento),
deu aos prelos, entre muitos opúsculos que o imortalizam, os
intitulados: A indústria e comércio do sal (1943):
Antónia Rodrigues – A heroína de Mazagão (1948); Os
Governos da Nação e as obras do porto e da barra de Aveiro
(1949): João Afonso de Aveiro – Introdução a um estudo sobre o
famoso navegador aveirense (1951); O problema da pesca
marítima em Aveiro (1952); Gustavo Ferreira Pinto Basto
(1953); Cancioneiro de Santa Joana Princesa (1956) e
O poeta João Afonso de Aveiro (1956).
De muitas
discursatas e conferências que arengou em diversos pontos do país –
como, por exemplo, as intituladas Renascimento cristão do alto
pensamento contemporâneo; «Teresinha»; A
Assembleia Nacional; Porto de Aveiro; Novos
magistrados administrativos; Acção Cultural das Fábricas
Aleluia; Os tribunais e as demandas; Salazar
– «Cidadão Honorário de Aveiro»; Saudação à Virgem;
Centenário do Liceu Aveiro; Palmira Bastos;
A Festa de Amar; José Estêvão; O
apostolado vicentino nas cadeias; Uma carta de namoro;
O espírito eucarístico da Igreja; e Maravilhas de
Lourdes – apenas deu à estampa, em opúsculo, a palestra As
profissões, em particular a advocacia e a santidade (1929), o
Discurso (1941) e a conferência Pio XII, Arauto do
Mundo Melhor (1956). E fez muito bem em não publicar os
restantes, salvo alguns pedacitos que andam pelos jornais e que bem
melhor seria terem ficado numa gaveta!
Tem
concluídos alguns trabalhos e em vias de conclusão alguns outros, dos
quais vários excertos «viram a luz» em diversas gazetas e revistas –
como os intitulados Doutor Mateus Castanho de Figueiredo (Um
escritor do século XVII); Padre Francisco da Paula de
Figueiredo (Notável poeta e orador do século XVIII); Dom
Frei Miguel Rangel; Capelas de Aveiro; Frei
Francisco da Paz; O Convento de Jesus de Aveiro e os
Senhores Reis e Príncipes de Portugal; Doutor D. Vasco de
Sousa; Mil Anos de História (Efemérides aveirenses);
e Iconografia da Infanta Santa Joana.
Há que
perdoar-se-lhe generosamente esta brotoeja, pois bem certo é que cada
tolo tem a sua mania! Já o seu colega nas letras, Augusto Casimiro,
sacristão da igreja da Misericórdia, não conseguiu resistir à tentação
de escrever e publicar A vida do «À Rasca», escrita por
ele mesmo!
Desde os
tempos longínquos de estudante, deu-lhe para colaborar em jornais e
revistas – e assim é que estampou um sem número de artiguelhos nos
jornais «Alma Académica», «O Debate», «O Ilhavense», «Correio de
Coimbra», «Novidades», «Correio da Manhã», «Correio do Vouga» e
«Litoral» e nas revistas «Estudos», «Arquivo do Distrito de Aveiro»,
«AIleluia» e «Revista Portuguesa», subscrevendo-os ora com o seu nome de
pia, ora com os pseudónimos de Afonso de Teive, Frei Luís do Vouga e Dr.
João Fernandes. Andam também por aí em letra redonda uns trabalhos seus
com o nome de outrem, mas isto é uma história muito complicada que não
deve esclarecer-se. De resto, para castigo de quem os apresentou como
coisa própria, basta... tê-los subscrito!
Católico,
apostólico, romano, parece que prestou alguns serviços úteis à Santa
Madre Igreja. Afirmava-se em Coimbra – e está estampado em letra de
forma – que o Papa... o nomearia cardeal, por distinção! E um egrégio
Prelado declarou publicamente que só havia uma forma de agradecer os
seus préstimos: levantar-lhe... uma estátua! Mas o processo canónico de
Santa Joana Princesa fê-lo cair em desgraça. E vai daí... nem lhe deram
o chapéu cardinalício, nem o colocaram, em corpo inteiro ou em simples
busto, em cima de qualquer pedestal. Mimosearam-no, porém, com algumas
ingratidões e injustiças e até com alguns fidalguíssimos... «coices
eclesiásticos». Seja tudo em desconto dos meus muitos pecados!
Filho de
pais honradíssimos, mas muito pobres, ficou sempre fiel à modesta
condição da sua origem. Não tem depósitos bancários nem automóvel:
continua pelintra e... peão. Espera que lhe saia a sorte grande, em
qualquer lotaria da Santa Casa da Misericórdia, para abandonar a secura
dos papeis selados e poder dedicar-se a actividades do seu agrado e
espalhar algum bem.
Gosta das
loiras. Não de todas: só das bonitas. Mas casou com uma morena, e não
está arrependido. Ela é que teria boas razões para lamentar-se! Tem seis
filhos, e isto é coisa muito séria: sempre são... doze sapatos! A sua
ambição é educá-los por forma a poder dizer-se que saem... à mãe.
E porque
não cabem num apontamento todas as tolices de uma vida iniciada há mais
de um século... é melhor pôr ponto final nesta tolice.
Aveiro,
1958.
António
Christo
◄
– ►
NOTA -
António Christo morreu na madrugada do dia 16 de Outubro de 1963, após
«sofrimento cruciante que o torturava, razão pela qual, como escreveu
João Afonso Cristo, «fez da cama onde a doença o prostou durante anos,
quase permanentemente, o seu escritório». Aqui atendia a profissão, a
História e a família, os amigos... e o "Litoral", de que foi um dos
principais obreiros enquanto pôde, intervindo nas áreas da cultura e da
educação.
O
enterro, conforme relata o "CORREIO DO VOUGA" de 18/10/1963, foi uma
profunda manifestação de pesar (a ele acorrendo o sr. Governador do
Bispado e estiveram presentes mais de 10 sacerdotes (...)
Incorporaram-se também delegações das duas corporações de bombeiros da
cidade e do Corpo Nacional de Escutas, estudantes do Liceu e um
representante do C.A.D.C. de Coimbra, o Presidente do Município, outras
autoridades e individualidades de relevo na cidade, etc..
A chave
da urna foi conduzida pelo sr. Dr. José Pereira Tavares.
Se vimos
figuras de representação social, vimos também pessoas simples do povo,
«que todos somos, afinal, operários e marnotos, até os pobrezinhos».
Ver, no índice geral do
espaço «Aveiro e Cultura», uma breve relação dos trabalhos que dele
foram publicados. |