António de Almeida Silva Christo

(3-6-1904 - 16-10-1963)

Ao Eduardo Cerqueira, em obediência às suas ordens, esta

Autobiografia

ANTÓNIO CHRISTO, de seu chamadoiro António de Almeida Silva Christo (sempre com «h», como consta do assento de baptismo). Nasceu em Aveiro, em 3-6-1904. Advogado, orador, publicista, «pai da pátria» esporádico e doente crónico. Mede 1,62 m. de altura, tem olhos castanhos e não se lhe notam sinais particulares: nem picado das bexigas, nem picado do génio. Pelo que respeita ao cabelo, está como o Pedro Sem, que teve e já não tem. Nasceu-lhe recentemente a segunda dentição, por milagre do Dr. Pompeu Cardoso.

Aos 4 anos da idade, afirmou-se publicamente monárquico: no dia 27-11-1908, nas bochechas de El-Rei D. Manuel lI, desatou aos vivas ao "Rei Manuelzinho" – o que Sua Majestade muito apreciou e agradeceu, fazendo-lhe mercê de algumas carícias e pespegando-lhe dois beijos na cara. Desgostoso por não ter recebido a carta de

Conselheiro ou o título de Visconde, amortalhou todas as convicções políticas: passou a não ter preferências por sistemas de governo.

Frequentou o Liceu de Aveiro, onde foi um dos mais distintos cábulas, e a Universidade de Coimbra, onde manteve os seus créditos de estudante desleixado, conseguindo, não obstante, formar-se em Direito, no dia 3-7-1930, com a classificação invejável e honrosíssima de 10 valores. Sobre este desprezo pelos loiros académicos, o Prof. Doutor Serras e Silva deixou na revista «Estudos» uma nota generosa que lhe respeita. Horas depois de concluída a sua formatura, o Prof. Doutor Mário de Figueiredo aconselhou-o, como bom amigo, a esquecer tudo o que lhe ensinaram na Universidade – ao que respondeu dispensar esse esforço, por nada ali ter aprendido. Culpa sua, evidentemente, pois no seu tempo ainda havia na Faculdade de Direito grandes mestres, que recorda com saudade.

Assentou praça em Subdelegado do Procurador da República, mas, apercebendo-se de que a Magistratura era uma coisa muito séria (ou devia ser) e de que a Justiça era vesga, preferiu ajudá-la como moço de cego: dedicou-se à advocacia. Mas nem por isso a Justiça deixou de continuar a tropeçar muito frequentemente...

Tem perdido umas causas e ganho outras, sucedendo até que, para prestígio dos Tribunais, ganhou algumas que merecia perder e perdeu algumas que merecia ganhar. Publicou uma dúzia de trabalhos jurídicos, simples alegações, com uns títulos muito engraçados – como, por exemplo: Um caso de servidão (1941), Investigação de paternidade ilegítima (1950), Sedução com abuso de autoridade (1951), Abuso de liberdade de imprensa (1953), e Desvio de poder e violação de lei (1955). Pelas amostras se vê que, abordando questões de Direito civil, criminal e administrativo, não passa de um pobre advogado provinciano... de «clínica geral».

Em Coimbra, foi elemento activo do C.A.D.C. (Centro Académico de Democracia Cristã) e dirigiu durante alguns anos a revista «Estudos».

Já então tinha a mania de «pregar aos peixinhos» – e por isso orou em muitas cidades conhecidas e em muitas aldeias ignoradas, do que ficou memória em diversas gazetas do país e no livro da «Queima das Fitas» do seu curso.

Em Aveiro, não lhe consentindo a sua pelintrice uma fundação como a de Calouste Gulbenkian, fundou a Juventude Católica de Aveiro (9-3-1924), as Conferências de S. Vicente de Paulo (Conferência de Santa Joana Princesa, que ainda vive, e Conferência de Santo António, que feneceu), o Lactário de Santa Joana Princesa e o Núcleo de Aveiro do Corpo Nacional de Escuteiros (do qual nasceram os de Vilar, S. Bernardo, Cacia, Ílhavo, Vista-Alegre e Calvão) e o semanário católico e regionalista «CORREIO DO VOUGA», hoje gaita ou órgão da Diocese.

Fundou também e manteve em sua casa uma Escola para operários (donde saíram algumas dezenas de bons letrados), que o Governo esconde ter sido a inspiradora... da Campanha Nacional de Educação de Adultos.

Foi sacristão da igreja de Santo António e deputado na lII legislatura, tendo ajudado a centenas de missas e piado uma só vez na Assembleia Nacional.

É sócio honorário da Sociedade Recreio Artístico, sócio ordinário dos Bombeiros Voluntários e sócio ordinaríssimo de quase todas as associações locais, mas nunca foi convidado para a Academia das Ciências, a Academia Portuguesa de História e outros grupos recreativos semelhantes.

Firmados os seus créditos de orador, pregou alguns sermões – em Lisboa, Porto, Coimbra, Évora, Portalegre, Torres Novas e Aveiro –, sempre muito agradáveis... para os que tiveram a boa fortuna de o não ouvir. O antigo Ministro da Justiça, Dr. José de Almeida Eusébio, depois de escutar-lhe uma conferência sobre questões prisionais, quis... metê-lo na Penitenciária de Lisboa, como director da cadeia – mas o palerma não aceitou o convite.

Sendo «ceboleiro» de nascimento (veio ao mundo, segundo lhe contaram, numa casa, já desaparecida da antiga Rua de S. Sebastião), tornou-se autêntico «cagaréu» – e, como tal, tem procurado servir a sua terra, dentro dos limites das suas possibilidades, interessando-se pela defesa do seu património artístico e pelas suas manifestações culturais e dedicando-se ao estudo de alguns problemas e de algumas notabilidades aveirenses. Assim é que, com um olho no passado, outro no presente e outro no futuro (fala-se dos olhos da cara e do olho do entendimento), deu aos prelos, entre muitos opúsculos que o imortalizam, os intitulados: A indústria e comércio do sal (1943): Antónia Rodrigues – A heroína de Mazagão (1948); Os Governos da Nação e as obras do porto e da barra de Aveiro (1949): João Afonso de Aveiro – Introdução a um estudo sobre o famoso navegador aveirense (1951); O problema da pesca marítima em Aveiro (1952); Gustavo Ferreira Pinto Basto (1953); Cancioneiro de Santa Joana Princesa (1956) e O poeta João Afonso de Aveiro (1956).

De muitas discursatas e conferências que arengou em diversos pontos do país – como, por exemplo, as intituladas Renascimento cristão do alto pensamento contemporâneo; «Teresinha»; A Assembleia Nacional; Porto de Aveiro; Novos magistrados administrativos; Acção Cultural das Fábricas Aleluia; Os tribunais e as demandas; Salazar – «Cidadão Honorário de Aveiro»; Saudação à Virgem; Centenário do Liceu Aveiro; Palmira Bastos; A Festa de Amar; José Estêvão; O apostolado vicentino nas cadeias; Uma carta de namoro; O espírito eucarístico da Igreja; e Maravilhas de Lourdes – apenas deu à estampa, em opúsculo, a palestra As profissões, em particular a advocacia e a santidade (1929), o Discurso (1941) e a conferência Pio XII, Arauto do Mundo Melhor (1956). E fez muito bem em não publicar os restantes, salvo alguns pedacitos que andam pelos jornais e que bem melhor seria terem ficado numa gaveta!

Tem concluídos alguns trabalhos e em vias de conclusão alguns outros, dos quais vários excertos «viram a luz» em diversas gazetas e revistas – como os intitulados Doutor Mateus Castanho de Figueiredo (Um escritor do século XVII); Padre Francisco da Paula de Figueiredo (Notável poeta e orador do século XVIII); Dom Frei Miguel Rangel; Capelas de Aveiro; Frei Francisco da Paz; O Convento de Jesus de Aveiro e os Senhores Reis e Príncipes de Portugal; Doutor D. Vasco de Sousa; Mil Anos de História (Efemérides aveirenses); e Iconografia da Infanta Santa Joana.   

Há que perdoar-se-lhe generosamente esta brotoeja, pois bem certo é que cada tolo tem a sua mania! Já o seu colega nas letras, Augusto Casimiro, sacristão da igreja da Misericórdia, não conseguiu resistir à tentação de escrever e publicar A vida do «À Rasca», escrita por ele mesmo!

Desde os tempos longínquos de estudante, deu-lhe para colaborar em jornais e revistas – e assim é que estampou um sem número de artiguelhos nos jornais «Alma Académica», «O Debate», «O Ilhavense», «Correio de Coimbra», «Novidades», «Correio da Manhã», «Correio do Vouga» e «Litoral» e nas revistas «Estudos», «Arquivo do Distrito de Aveiro», «AIleluia» e «Revista Portuguesa», subscrevendo-os ora com o seu nome de pia, ora com os pseudónimos de Afonso de Teive, Frei Luís do Vouga e Dr. João Fernandes. Andam também por aí em letra redonda uns trabalhos seus com o nome de outrem, mas isto é uma história muito complicada que não deve esclarecer-se. De resto, para castigo de quem os apresentou como coisa própria, basta... tê-los subscrito!

Católico, apostólico, romano, parece que prestou alguns serviços úteis à Santa Madre Igreja. Afirmava-se em Coimbra – e está estampado em letra de forma – que o Papa... o nomearia cardeal, por distinção! E um egrégio Prelado declarou publicamente que só havia uma forma de agradecer os seus préstimos: levantar-lhe... uma estátua! Mas o processo canónico de Santa Joana Princesa fê-lo cair em desgraça. E vai daí... nem lhe deram o chapéu cardinalício, nem o colocaram, em corpo inteiro ou em simples busto, em cima de qualquer pedestal. Mimosearam-no, porém, com algumas ingratidões e injustiças e até com alguns fidalguíssimos... «coices eclesiásticos». Seja tudo em desconto dos meus muitos pecados!

Filho de pais honradíssimos, mas muito pobres, ficou sempre fiel à modesta condição da sua origem. Não tem depósitos bancários nem automóvel: continua pelintra e... peão. Espera que lhe saia a sorte grande, em qualquer lotaria da Santa Casa da Misericórdia, para abandonar a secura dos papeis selados e poder dedicar-se a actividades do seu agrado e espalhar algum bem.

Gosta das loiras. Não de todas: só das bonitas. Mas casou com uma morena, e não está arrependido. Ela é que teria boas razões para lamentar-se! Tem seis filhos, e isto é coisa muito séria: sempre são... doze sapatos! A sua ambição é educá-los por forma a poder dizer-se que saem... à mãe.

E porque não cabem num apontamento todas as tolices de uma vida iniciada há mais de um século... é melhor pôr ponto final nesta tolice.

Aveiro, 1958.

António Christo

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NOTA - António Christo morreu na madrugada do dia 16 de Outubro de 1963, após «sofrimento cruciante que o torturava, razão pela qual, como escreveu João Afonso Cristo, «fez da cama onde a doença o prostou durante anos, quase permanentemente, o seu escritório». Aqui atendia a profissão, a História e a família, os amigos... e o "Litoral", de que foi um dos principais obreiros enquanto pôde, intervindo nas áreas da cultura e da educação.

O enterro, conforme relata o "CORREIO DO VOUGA" de 18/10/1963, foi uma profunda manifestação de pesar (a ele acorrendo o sr. Governador do Bispado e estiveram presentes mais de 10 sacerdotes (...)

Incorporaram-se também delegações das duas corporações de bombeiros da cidade e do Corpo Nacional de Escutas, estudantes do Liceu e um representante do C.A.D.C. de Coimbra, o Presidente do Município, outras autoridades e individualidades de relevo na cidade, etc..

A chave da urna foi conduzida pelo sr. Dr. José Pereira Tavares.

Se vimos figuras de representação social, vimos também pessoas simples do povo, «que todos somos, afinal, operários e marnotos, até os pobrezinhos».

Ver, no índice geral do espaço «Aveiro e Cultura», uma breve relação dos trabalhos que dele foram publicados.