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                  «Quando em 
                  23 de Fevereiro de 1916 o governo português requisitou os 
                  navios alemães, encontrava-se no porto do Funchal o grande 
                  vapor «Hochfeld», construído em 1895 nos estaleiros de 
                  Flensburg, de 3.689 toneladas brutas e 6.693 m3 de capacidade 
                  de carga, com 112,47 m. de comprimento, 12,75 m. de largura e 
                  7,84 m. de calado, duas caldeiras de dupla frente e uma 
                  máquina de tríplice expansão da potencia de 1.300 cavalos. 
                  Como a sua tripulação lhe tivesse causado avarias, foram estas 
                  reparadas sob a direcção do maquinista da marinha mercante 
                  William Lloyd e veio para o nosso porto, onde lhe foi dado o 
                  nome de «Desertas» e completou essas reparações, sendo então 
                  entregue à casa Torlades, como representante da Furness, no 
                  dia 9 de Novembro desse ano. 
                   
                  No dia 15 saiu de Lisboa em lastro para Leixões, onde 
                  carregaria toros de pinheiro para Inglaterra, com bom tempo e 
                  mar chão, até às 6 horas do dia 16, em que avistou o farol da 
                  Luz. Pairou essa noite fora do porto, mas como depois das 16 
                  horas o vento começasse a refrescar pelo S. W., carregando-se 
                  a atmosfera, às 19 horas virou para fora e correu para o mar 
                  com rumo S. W. para se afastar da costa. Às 18 horas do dia, 
                  seguinte, com muito mar e vento fortíssimo, de W. S. W., o 
                  navio começou a não obedecer ao leme, «por a pressão nas 
                  caldeiras ser pouca» -- diz o comandante -- «e o pessoal de 
                  fogo estar quase todo enjoado». Içaram uma vela triangular, 
                  mas de nada serviu, tendo de virar para o sul, visto que era 
                  grande o caimento para a costa e o navio continuava a não 
                  obedecer ao leme. 
                   
                  Às 10,15 o 1.º maquinista comunicou que o condensador fazia má 
                  circulação, parando-se a máquina até às 10,30. Mas o navio não 
                  obedecia. Às 14 avistaram o farol de Aveiro ao S. 4 S. E. 
                  magnético, a 14 milhas, continuando o barco a cair para terra. 
                  Vendo que não montava a costa, fizeram sinais de socorro, com 
                  foguetões, fogachos e apitos constantes. Às 18,30 içaram os 
                  sinais de socorro imediato. 
                   
                  Às 19 horas reunida toda a tripulação, foi-lhe comunicado que 
                  o navio não montava a costa, deliberando-se por acordo total, 
                  aproar o navio onde fosse mais conveniente, para salvar as 
                  vidas, pois ele estava perdido. 
                  
                  
                     
                  
                  Eram 20 horas quando se produziu o encalhe, 20 metros ao norte 
                  de Vagueira e a 4 milhas ao sul do farol de Aveiro. 
                   
                  Comunicado o caso para Inglaterra, vieram a Portugal primeiro 
                  o capitão Douglas e depois o capitão Shotten, os quais 
                  manifestaram a opinião de que o salvamento do navio devia 
                  fazer-se pelo lado do mar, através do banco de areia que 
                  existe ao longo da costa. 
                   
                  A vinda desses delegados levou, porém, tempo, tendo-se deixado 
                  o navio abandonado à mercê do mar e dos habitantes das 
                  proximidades, que o saquearam. Os primeiros trabalhos foram 
                  morosos, aguardando-se a remessa de aparelhos de Inglaterra e 
                  pondo-se ao seu serviço o rebocador «Patrão Lopes". 
                   
                  Em Junho de 1917 surge um conflito entre a capitão Shotten, o 
                  comandante e o maquinista do navio, prolongando-se até que 
                  estes últimos foram substituídos pelos Srs. José Casimira 
                  Rosário e António Mendes Barata, que no seu relatório 
                  verificaram nada se ter feito para salvar o "Desertas". 
                   
                  As tentativas de salvamento sofreram uma nova demora, apesar 
                  de todas as instâncias em contrário, vindo em Novembro o Sr. 
                  Portugal Durão dar-lhes um novo impulso, no intuito de 
                  salvá-lo pelo mar, segundo a opinião dos delegados britânicos. 
                   
                  Mas foi sol de pouca dura. A revolução de Dezembro inutilizou 
                  esses bons desejos, ninguém pensando mais em salvar o navio. 
                   
                  Em 22 de Janeiro de 1918 um telegrama comunicava que o porão 
                  fora arrombado da 3ª coberta para baixo, mas isso em nada 
                  alarmou as entidades oficiais. No dia seguinte, sendo 
                  comandante do navio o Sr. Jorge Camacho e maquinista o Sr. 
                  Ernesto Santiago, foram abordados pelo delegado inglês 
                  Douglas, que queria que o navio fosse entregue à «Salvage 
                  Assotiation of London», visto que estava perdido por completo 
                  e devia, por isso, começar a desmanchar-se. Aqueles distintos 
                  oficiais recusaram-se, porém, a entregá-lo, aguardando a 
                  chegada do delegado dos Transportes do Estado, Sr. Barata. 
                   
                  Em princípios de Fevereiro, sendo ministro do trabalho o 
                  capitão Sr. Feliciano da Costa, foi ali com os Srs. Mendes 
                  Barata e Brito do Rio, repetindo os ingleses que o "Desertas" 
                  estava perdido. O ministro consultou o Sr. Barata, que foi de 
                  opinião que o navio se salvava, desde que se quisesse gastar 
                  dinheiro, concordando aquele e pondo à sua disposição todos os 
                  elementos de que carecesse para esse efeito e autorizando a 
                  cedência da draga «Mondego", de Viana do Castelo. 
                   
                  Começa aqui a grande, formidável odisseia. A burocracia, o 
                  péssimo serviço de transportes, a papelada, as greves, as 
                  revoluções, tudo se conluiou para cansar a paciência e esgotar 
                  a boa vontade dos ilustres marinheiros que meteram ombros à 
                  rude tarefa do salvamento. 
                   
                  O que o Sr. Barata nos contou é de estarrecer. Não vale a pena 
                  repeti-lo aqui, bastando que se diga que as ferramentas 
                  enviadas para Aveiro raro chegavam ao seu destino e que a 
                  cedência da draga «Mondego» foi uma tragédia superior a 
                  quantas se conhecem, a tal ponto que, podendo o navio ter 
                  saído para o mar em Agosto de 1918, só daqui a dois meses o 
                  fará. 
                   
                  Todos os dias, a todas as horas surgiam contratempos e 
                  contrariedades, sofrendo-se dissabores de toda a espécie. 
                   
                  Apesar de tudo, a faina iniciou-se em seguida à autorização 
                  ministerial, começando homens e mulheres a retirar a areia de 
                  volta do navio e a colocar estacaria, para melhorar a sua 
                  situação. 
                   
                  Só, porém, em 1 de Junho de 1918 pôde iniciar-se a abertura do 
                  canal, que ligaria o navio com a ria, pois o Sr. Barata foi de 
                  opinião de que o salvamento não podia fazer-se pelo mar, 
                  devendo meter-se o «Desertas» pela terra dentro até alcançar a 
                  ria, ao longo da qual ganharia depois a barra de Aveiro. 
                   
                  A tentativa era arrojada, mas confiava-se no seu êxito. O 
                  valor do navio orçava então por 1.200 contos. Valia a pena 
                  salvá-lo. 
                   
                  Orçada a despesa provável dos trabalhos a realizar, 
                  verificou-se que ela não iria além de 300 contos, dando assim 
                  o salvamento um saldo positivo e imediato de 900 contos. 
                   
                  Mãos à obra, pois. Com boa vontade da parte de todos, o 
                  «Desertas» continuaria a navegar, contribuindo para a vitória 
                  dos aliados. 
                   
                  A despesa diária com a draga «Mondego» foi orçada em 483$00, 
                  gastando-se mensalmente com o pessoal 910$00. 
                   
                  O canal seria do comprimento de 900 metros, com 30 de largura, 
                  para o que seria necessário  
                  dragar 360.000 m3 de areia. Calculando-se uma dragagem 
                  aproximada de 4.800 m3 por dia, o canal estaria aberto no 
                  prazo de 75 dias. 
                   
                  A abertura do canal custaria 64.722$00, com uma despesa diária 
                  de 483$00. 
                   
                  A despesa total seria, pouco mais ou menos, a seguinte: 
                  
                    
                      |   | 
                      
                      
                        
                          | 
                           
                  Dragagem do 
                          canal  | 
                          
                           
                  64.722$00  | 
                         
                        
                          | 
                           
                  Dragagem na ria 
                            | 
                          
                           
                  4.830$00  | 
                         
                        
                          | 
                           
                  Trabalhos em terra e a 
                          bordo   | 
                          
                           
                  18.000$00  | 
                         
                        
                          | 
                           
                  Despesa com 
                          o pessoal durante 5 meses a 2.000$00 por mês 
                            | 
                          
                           
                  10.000$00  | 
                         
                        
                          | 
                           
                  Pessoal 
                          extraordinário   | 
                          
                           
                  12.000$00  | 
                         
                        
                          | 
                           
                  Abertura de uma ponte e colocação da 
                          definitiva   | 
                          
                           
                  6.000$00  | 
                         
                        
                          | 
                           
                  Soma  | 
                          
                           
                  115.552$00  | 
                         
                       
                       | 
                        | 
                     
                   
                  
                  
                  ---------------- <O>---------------- 
                  
                    
                      |   | 
                      
                      
                        
                          | 
                           
                  Reparação 
                          do rombo  | 
                          
                           
                  90.000$00  | 
                         
                        
                          | 
                           
                  Reparação 
                          das caldeiras e chaminé  | 
                          
                           
                  6.600$00  | 
                         
                        
                          | 
                           
                  Reparação 
                          dos guinchos e molinete  | 
                          
                           
                  38.000$00  | 
                         
                        
                          | 
                           
                  Reparação 
                          das instalações eléctricas  | 
                          
                           
                  8.000$00  | 
                         
                        
                          | 
                           
                  Outras 
                          despesas  | 
                          
                           
                  18.000$00  | 
                         
                        
                          | 
                           
                  Soma  | 
                          
                           
                  160.600$00  | 
                         
                       
                       | 
                        | 
                     
                   
                  
                   
                  ORÇAMENTO TOTAL 
                  
                    
                      |   | 
                      
                      
                        
                          | 
                           
                  Para tirar 
                          o navio  | 
                          
                           
                  115.552$00  | 
                         
                        
                          | 
                           
                  Reparações  | 
                          
                           
                  160.600$00  | 
                         
                        
                          | 
                           
                  Imprevistos  | 
                          
                           
                  22.350$00  | 
                         
                        
                          | 
                           
                  Soma total  | 
                          
                           
                  298.502$00  | 
                         
                       
                       | 
                        | 
                     
                   
                  
                   
                  Os 300 contos a que aqui acima nos referimos. Os cálculos, 
                  porém, falharam, a favor e contra o Estado. A «Mondego» chegou 
                  a dragar 300 m3 por hora, mas em vez das 3,5 toneladas de 
                  carvão que lhe estavam arbitradas por dia e se pagavam a 
                  100$00 a tonelada, chegou a consumir 6 e 7. E, a par dos que a 
                  burocracia originou, outros contratempos surgiram: o violento 
                  temporal que rebentou em 20 de Setembro daquele ano (1918) e 
                  inutilizou em grandíssima parte os trabalhos já realizados da 
                  abertura do canal, e a necessidade de dragar a ria em 
                  consideráveis extensões para que o navio pudesse navegar. 
                  Aquele poderia ter-se evitado, se os serviços oficiais e 
                  ferroviários, as revoluções e as demoras burocráticas o 
                  tivessem querido, pois quando o temporal rebentou, o navio 
                  estaria já no mar. 
                   
                  O trabalho nesse momento foi brutal, conseguindo os 
                  trabalhadores construir uma barreira em 7 horas, para evitar 
                  nova invasão do canal. E quatro dias depois do prazo marcado 
                  para a abertura do canal, estabelecia-se a ligação com a ria, 
                  «malgré tout». Aquele construíra-se, pois, em 79 dias, Em 4 de 
                  Novembro de 1918 estava de novo restabelecida a ligação da 
                  bacia do navio com o canal e no dia 9 do mesmo mês começava o 
                  «Desertas» a entrar nele. 
                   
                  Deu-se ainda uma nova invasão do mar, que destruiu uma 
                  barreira, mas o prejuízo reparou-se. 
                   
                  Até hoje o «Desertas» percorreu já cerca de 4 quilómetros, 
                  faltando-lhe ainda aproximadamente 2 quilómetros para chegar à 
                  barra, o que fará, segundo cálculo do Sr. Mendes Barata, em 
                  menos de dois meses. Ainda há dias se recebeu em Lisboa 
                  comunicação de um avanço de 200 metros. " 
                   
                  A rude labuta de trabalhadores e marinheiros está a findar. 
                  
                  
                    
                  
                  A engenharia portuguesa ficará tendo no salvamento do 
                  «Desertas» um dos seus actos mais brilhantes, honrando-a aos 
                  olhos de toda a gente. Quando todos supunham o «Desertas» 
                  perdido para sempre, um ilustre engenheiro português, o Sr. 
                  António Mendes Barata, entrega-o ao seu país são e salvo, 
                  pronto a receber no seu formidável arcaboiço as mercadorias 
                  indispensáveis para o governo da nação, levando a toda a parte 
                  no alto dos seus mastros a bandeira de Portugal. 
                  
                  MÁRIO 
                  SALGUEIRO 
                  
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