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                  «O 
                  Naufrágio do Nathalie — Às 9 horas da manhã de 17 de Outubro 
                  de 1880, saía do Havre de Grâce o steamer Nathalie, da Ligne 
                  Peninsular et Algériene, sob o comando do capitão E. David, 
                  com uma tripulação de 18 homens, dois passageiros, e um 
                  importante e variado carregamento de tecidos de lã, algodão e 
                  seda, artigos de modas, pianos, livros, tabaco, vinhos, etc., 
                  no valor de algumas dezenas de contos de réis, para os 
                  fornecimentos de Inverno das praças comerciais do Porto, 
                  Lisboa, Oran, Argel, Cadix, Málaga e Cartagena. 
                  
                  De aparelho 
                  pesado, mastreação deselegante, e mil toneladas de lotação, 
                  era um dos mais velhos vapores da Companhia, e desde 1874 que 
                  se empregava ininterrompidamente na carreira entre o Havre e 
                  diversos pontos de Portugal, norte de África e sul de Espanha. 
                  
                  Percorreu 
                  com belo tempo o canal da Mancha, dobrou bem o cabo de Ouessan, 
                  e seguiu regularmente a sua derrota até ao Golfo de Gasconha. 
                  Aí, pelo 46 de latitude, foi colhido por violentos temporais, 
                  e começou a navegar no meio de intenso nevoeiro, e de fortes 
                  rajadas de vento do SO, que, sem lhe causarem sensível avaria, 
                  o desviaram contudo algumas milhas do seu rumo, como pouco 
                  antes ao Gironde, vindo de Bordeaux. A bruma, o vento e a 
                  tempestade recrudesciam. Dobrou o cabo Finisterra sem ver a 
                  costa. Passou pelas alturas do Porto sem nele poder entrar. 
                  Com receio da terra, que dum momento para o outro o podia 
                  surpreender, fizera-se ao largo, governando a SOO e SSO até ao 
                  meio-dia de 22 em que aproou ao S. As fortes ventanias de SO 
                  continuavam, o nevoeiro era cerrado, e o mar agitadíssimo. 
                  Pela meia-noite de 22 para 23, o homem de vigia e o oficial de 
                  quarto deram alarme de parceis pela proa. À voz do capitão, o 
                  vapor carregou todo sobre estibordo e a máquina deu impulso 
                  para recuar. Era pequena a velocidade que levava, mas era já 
                  tarde para evitar a catástrofe. Partiu-se o hélice, e uma vaga 
                  de través contrariou a queda sobre estibordo. O temporal 
                  desencadeava-se furioso, e a corrente de E era fortíssima, e 
                  prejudicava todas as manobras, a cerração da atmosfera era 
                  horrorosa, e inteira a obscuridade da praia. 
                  
                  Um choque 
                  tremendo advertiu os homens de bordo de que o vapor 
                  encalhara; e aos medonhos rumores dum mar bravíssimo, e no 
                  meio de intensas trevas, sentiram que o casco se lhes 
                  desconjuntava sob os pés. 
                  
                  Às 
                  primeiras pancadas estava destruído o bombordo e despedaçados 
                  contra ele os seus dois escaleres. Desce ao mar a canoa de 
                  estibordo com três homens para a manterem contra o vento. Mas 
                  a ressaca quebra-lhe a amarra, e das vagas arremessa-a de 
                  encontro ao costado do steamer, e em pedaços a some na 
                  voragem com dois dos seus tripulantes — Belaune e Taupin. O 
                  terceiro, Corbolion, fora cuspido ao tombadilho do paquebot, e 
                  agarrara-se ao mastro. 
                  
                  Sem 
                  amuradas, as ondas varriam impunemente o convés. Equipagem e 
                  passageiros, sem abrigo sobre a ponte, que com medonhos 
                  rangidos ameaçava desconjuntar-se, refugiam-se por um feliz 
                  instinto de conservação, no mastro de mezena, agarrando-se com 
                  força às cordas e gáveas para não serem arrebatados pelo mar. 
                  Mal seguros ainda, uma pancada mais forte despedaça de meio a 
                  meio o navio. Separa-se violentamente a popa e o mastro da 
                  gávea, que cai com temeroso estrondo no mar, sem felizmente 
                  ferir ninguém, rolando no turbilhão com os escombros da parte 
                  que se separara. 
                  
                  Por um 
                  desígnio providencial, e como que cravado pela mão de Deus no 
                  fundo do mar, o mastro da proa conserva-se erguido no meio dos 
                  pedaços desconjuntados do barco, mas com tremendas oscilações, 
                  e repelões valentes, que a cada momento ameaçavam de afrontosa 
                  morte os pobres náufragos. 
                  
                  Um deles, 
                  um passageiro italiano chamado Bordo Júlio, ainda quis 
                  aventurar-se a descer do mastro, procurando refúgio em baixo, 
                  se é que as forças lhe não faltaram para se aguentar em cima. 
                  Mas um golpe de mar o esmagou rapidamente e o arrebatou na 
                  voragem. 
                  
                  Ficaram 17 
                  vidas suspensas assim sobre o medonho abismo, em crudelíssimas 
                  angústias e numa luta corajosa, perseverante, gigantesca, com 
                  a morte. 
                  
                  Ensopados e 
                  açoutados pela espuma das vagas, repelidos pelo vento e pelos 
                  empuxões do mastro, feridos nas mãos com que se suspendiam, ou 
                  nas partes do corpo em que se apoiavam, enregelados, exaustos, 
                  inteiriçados quase, davam murros em si mesmos ou batiam com os 
                  pés de encontro ao mastro para provocarem a reacção nas 
                  extremidades, e espaçarem por mais alguns instantes a morte 
                  que se lhes oferecia inevitável. 
                  
                  Havia entre 
                  os náufragos uma senhora, Félice Bouvoir, que é o mais vivo 
                  exemplo da heroicidade no sofrimento e da coragem nas 
                  aflições. Refugiada no cesto da gávea, era a primeira a animar 
                  com palavras e gestos os seus companheiros de infortúnio, a 
                  aguardarem um socorro que lhes não era lícito prever, ou que 
                  poderia vir já tarde. 
                  
                  O horrível 
                  martírio daqueles infelizes durou umas poucas de horas. 
                  
                  Ao 
                  amanhecer, a carga e a madeira do vapor, que tudo arrolara à 
                  praia, ou flutuava nas ondas, avisaram os pescadores e 
                  banhistas da Torreira de algum naufrágio nas proximidades. 
                  
                  Fora 
                  efectivamente a dois quilómetros ao sul daquela praia de 
                  banhos, e a pouco mais de 200 metros da costa, que o Nathalie 
                  encalhara. Correu tudo ao local do sinistro, e dentro em 
                  pouco, em frente do doloroso espectáculo do naufrágio, mais de 
                  2.000 pessoas se apinhavam e confrangiam na dura desesperação 
                  de não poderem valer àqueles dezassete mártires, que lá 
                  estavam ainda, pendurados sobre a morte, na mais penosa, na 
                  mais pungente, na mais aflitiva das situações humanas. Debalde 
                  em estrondosas lamentações se estendiam da praia para o navio 
                  os braços daquela enorme multidão: a vontade era muito mais 
                  extensa do que os braços, os braços é que eram muito mais 
                  curtos do que a distância, a distância era um abismo tremendo, 
                  onde ninguém aventuraria dois passos sem aventurar a própria 
                  vida. 
                  
                  Qualquer 
                  dedicação individual seria louca e perdida temeridade, porque 
                  a morte seria o seu prémio fatal. 
                  
                  Era 
                  pungentíssimo o quadro! 
                  
                  Foi então 
                  que apareceu no local o único homem que pelo seu ânimo 
                  decidido para o bem, pelos temerários impulsos do seu coração, 
                  pela força de convicção e de intimativa que a sua palavra 
                  reveste, pela imponência do seu porte e da sua voz, pela 
                  influência moral que exerce sobre toda aquela gente, pelo 
                  império que tem em todos aqueles corações, muito o respeitam e 
                  lhe querem como conselheiro, protector e pai de todos os que a 
                  ele recorrem, e que ele até procura para beneficiar e 
                  socorrer, e ainda pelos recursos materiais de que no momento 
                  podia e sabia dispor, como barcos, cordas, bois, enfim todos 
                  os elementos e instrumentos do trabalho do mar que ali tinha, 
                  poderia tentar alguma coisa em benefício dos pobres náufragos. 
                  
                  Este homem 
                  era Manuel Firmino d’Almeida Maia. Comparou rapidamente no seu 
                  espírito as dificuldades a vencer com os recursos morais e 
                  materiais que tinha, à mão, e a todos recorreu, e todos 
                  empregou para realizar o benemérito intento da salvação. 
                  
                  Por quinze 
                  juntas de bois das companhas de que era proprietário na 
                  Torreira, faz arrastar pela areia, numa distância de dois mil 
                  metros, que tanta é a que medeia entre a Costa e o local do 
                  sinistro, um dos seus barcos de pesca, o da Senhora da 
                  Arrábida; e, convertendo com a palavra e com o exemplo aqueles 
                  humildes pescadores em verdadeiros heróis, consegue tripulação 
                  com toda a gente que comportava, e deita-o ao mar na direcção 
                  salvadora. 
                  
                  Durante 
                  estes preparativos, Manuel Firmino não se esquecia de, com 
                  vozes e gestos, incitar ânimo e coragem nos desgraçados 
                  náufragos, que assistiam com desesperadora ansiedade àquele 
                  comovente espectáculo de heróica e quase sobre-humana 
                  dedicação. 
                  
                  Naquele 
                  momento as fúrias do mar recrudesciam. Parecia que aquele 
                  gigante enorme conhecera que lhe iam roubar as suas vítimas, e 
                  se preparava para as disputar aos salvadores. Era então 
                  fortíssima a corrente para o norte. O barco desceu à água um 
                  pouco mais ao sul, para descair depois para o steamer, ou 
                  antes para o mastro que restava de pé. Ficava ligado à praia 
                  por duas cordas, a que se agarraram com força os próprios 
                  banhistas, entrando pelo mar com água até ao peito. Alguns 
                  pescadores, que não couberam dentro, a nado se deitavam às 
                  fúrias do mar, empurrando com os ombros o barco contra a 
                  corrente e as vagas que o rebolavam sobre o sul. 
                  
                  Mal pode 
                  descrever-se o perigo dos valentes que tripulavam o barco. 
                  Eles, porém, e todos, só viam os preciosos frutos pendentes 
                  daquela árvore que a tempestade poupara no meio do oceano, mas 
                  que se comprazia em sacudir com tão furiosa violência, que 
                  parecia milagre não a ter derrubado já. 
                  
                  Ao longo da 
                  praia, muitas senhoras, mulheres do povo, e homens, de 
                  joelhos, com lágrimas nos olhos, e mãos erguidas, pediam ao 
                  céu a salvação dos náufragos. Que soleníssimo momento e que 
                  sublime espectáculo! 
                  
                  Através e 
                  por sobre a morte, o barco salvador chega enfim junto dos 
                  restos do vapor, e recolhe a seu bordo os náufragos, e vindo 
                  depô-los sobre a praia, nos braços da multidão, no meio das 
                  mais estrondosas e frenéticas aclamações. 
                  
                  Travou-se 
                  então uma luta sublime de generosidades. Todos queriam ser os 
                  primeiros e mais prestimosos protectores. 
                  
                  Os 
                  salvados, acompanhados por todos os espectadores, seguiram 
                  para a casa em que habitava na Torreira o Sr. Manuel Firmino, 
                  e onde se alojaram. Aí chegados, o entusiasmo pela salvação 
                  dos náufragos e pela energia e dedicação de Manuel Firmino 
                  chegou a ponto de fazer sair da multidão calorosos vivas ao 
                  cidadão que apelidavam — segundo pai dos tripulantes do 
                  Nathalie! Subiram ao ar muitos foguetes. 
                  
                  Todos os 
                  cavalheiros e senhoras da praia correram a suas casas para 
                  virem oferecer aos náufragos tudo o que precisassem, 
                  disputando esse prazer aos donos da casa. E dentro em pouco 
                  estavam todos bem confortados e sofrivelmente vestidos. 
                  
                  Já que o 
                  mar escondera os mortos, restava tratar dos vivos. 
                  
                  O capitão 
                  David achava-se um pouco ferido, e bastante contuso, e dois 
                  marinheiros doentes, um deles com certa gravidade. Tudo porém 
                  foi pensado, como os recursos da localidade o permitiam, mas 
                  com inexcedível zelo e solicitude pelo distintíssimo médico, 
                  Dr. José Pais dos Santos Graça, que já antes, em todas as 
                  operações do salvamento se tornara também notável pela sua 
                  corajosa actividade e heróica dedicação. 
                  
                  No dia 24 
                  de manhã saíram os náufragos para Aveiro, acompanhados de 
                  alguns empregados da alfândega, dos do vice-consulado francês 
                  em Aveiro, e do Sr. Manuel Firmino. Foi tocante a despedida. 
                  Não podendo fazer-se compreender, senão a um limitado número 
                  de espectadores, significavam os náufragos a sua gratidão, com 
                  apertos de mão, movimentos do chapéu, com os braços abertos, e 
                  apontando para o peito. Depois de um caloroso adeus, proferido 
                  por uma grande multidão, partiu o carro americano que os 
                  conduzia ao barco, em que deviam ser transportados a Aveiro. 
                  
                  Aqui, 
                  hospedaram-se no Hotel Aveirense, foram visitados por muitas 
                  das principais pessoas da terra, e à noite partiram para 
                  Lisboa, sendo acompanhados até à estação pela esposa e filhos 
                  do Sr. Manuel Firmino, pelo vice-cônsul da república francesa 
                  nesta cidade, e por outros cavalheiros, e até à capital por Mr. 
                  Garay, digno e ilustrado agente da Companhia Peninsular em 
                  Lisboa. 
                  
                  Honra aos 
                  habitantes da Torreira, que, à voz de Manuel Firmino, 
                  cumpriram, como mais ninguém saberia cumprir, os seus deveres 
                  de humanidade!» 
                  
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