«(...) E todo o
meu sonho e intento é unir
e juntar num só
todo o que é fragmento
e enigma e
horrível acaso.
E como
suportaria eu ser homem, se o
homem não fosse
também poeta e decifrador
de enigmas e
redentor do acaso?»
F. Nietzsche
ENIGMA
«O velho
eremita reuniu todos
os papéis e
preparou
a mais bela
festa para os filhos
cada um leria
um velho escrito
e tentaria
decifrar o grande enigma
começou por
atribuir um número
a cada um
não haveria confusão
excepto a
inevitável confusão
de se saber o
resultado do enigma
(...) Qual
deles ousou descobrir?»
José Antunes Ribeiro
«Artista de
ontem e de hoje,
que é a arte?
Não me
respondeis.
Dissimulai-vos,
adormeceis, bem vejo.
Mas gritai,
acordai, por Júpiter,
pai dos deuses!
ensinai-me de
uma vez o que é a arte.»
Irene Lisboa
«Holz
lautet ein alter Name für Wald. Im Holz sind Wege,
die meist verwachsen jäh im Unbegangenen aufhören.
Sie heiben
Holzwege.
Jeder verläuft gesondert, aber im selben Wald. Oft scheint
es, als gleiche einer dem anderen. Doch es scheint nur so.
Holzmacher und Waldhüter kennen die Wege.
Sie wissen, was es
heibt,
auf einem Holzweg zu sein».
M.
Heidegger
I
Partimos do
texto Der Ursprung des Kunstwerkes, escrito por Heidegger em
1935/1936 no intuito de pensar, com o autor, a complexa problemática que
gira em derredor da Arte, da obra, da origem e do enigma, ou por outras
palavras, quisemos reflectir sobre a origem da obra de arte e o enigma que a
arte é em si mesma.
Se Heidegger é o
filósofo por nós eleito para apresentar e quiçá ilustrar estes pontos
fundamentais de toda a compreensão onto-artística contemporânea, Van Gogh e
as suas múltiplas versões do tema «Um Pares de Sapatos», a que Heidegger
indiscriminadamente se refere sem a precisão adequada – o comentário do
filósofo dos caminhos que enigmaticamente não conduzem a parte alguma, é tão
generalista que se pode aplicar a qualquer uma das obras realizadas pelo
artista, sobre este tema, em períodos diferentes – é o pintor escolhido,
esse autor consagrado da “Grande Arte”, como meio de mostração do
“pôr-em-obra da verdade”.
É esta a tese
central do pensamento heideggeriano que coloca a verdade como categoria
estética fundamental, ao destruir, por um lado, o império fugaz do Belo
inteligível, universal, pelo qual se todas as coisas são belas são-no apenas
porque nele participam, ou então, porque este é uma propriedade do objecto,
ou porque reside no sujeito que põe por si mesmo a beleza na coisa
contemplada; e, por outro, ao destronar o reinado da emoção, da
experiência-vivida (Erlebnis) como características fundamentais da criação e
da contemplação estética.
A Arte e a obra
no seu dar-se primordial mantém-se sempre envolvida no enigmático mistério
que é próprio do dar-se do Ser no espaço vazio da tela na partitura sem
notas do compositor musical, na pedra informe do escultor ou no papel em
branco do poeta.
Movendo
interiormente o texto em estudo e a reflexão heideggeriana sobre a arte,
está a convicção de que uma interpretação metafísica da obra de arte, longe
de a esclarecer na sua essência e origem, antes a perverte na sua
constitutiva realidade. Correlato da nossa postura filosófica ocidental,
este tipo de perspectivação metafísica da arte, que o autor, aliás, sem
suficiente problematização, identifica com Estética, procuraria fazer da
arte uma manifestação cultural sem mais, sempre reconduzível ao homem,
procurando dilucidar-lhe uma criteriologia que afinal mais não é, para
Heidegger, do que a aplicação de valores de civilização, de padrões de
auto-avaliação importados do saber teórico, que em nada esclarecem a
essencial radicação da obra de arte, de todo descurando a sua fundamentação
na problemática ontológica, verdadeiro nexo dinâmico da reflexão
heideggeriana.
A Estética
procura esclarecer as modalidades de patenteação e juízo do Belo, bem como a
relação intrínseca e insuperável entre os termos autor – obra de arte –
espectador, descentrando, deste modo, a reflexão da própria realidade da
obra, e esquecendo a sua ancoração fundamental ao plano de fundo
despoletador da existência da mesma. É assim que Heidegger afirma em
Einführung in die Metaphysique: «Devemos dar ao termo ‘arte’ e àquilo
que ela quer designar um novo conteúdo, em encontrando primeiro uma posição
fundamental originária quanto ao Ser».
O modo de
apresentação da nossa investigação poderá sugerir que a tematização
heideggeriana, enquanto procura relevar a temática ontológica
necessariamente subjacente à questão da obra de arte, é, neste intuito
mesmo, uma reflexão sem falhas.
Porém, adiante o
veremos, a reflexão do filósofo sobre a essência da arte antes desemboca na
impossibilidade de superar a mútua implicação metafísica. Permanecemos com o
primado da questão ontológica, enquanto postura interpretativa, sendo a arte
um dos horizontes de reflexão em que se repõe inevitavelmente a questão do
homem e da sua proventualidade historial, esses dois termos que mais
unidamente se imbricam.
Se Heidegger
utiliza a sua própria reflexão sobre a arte como momento privilegiado da
própria des-construção dos pontos nodais do seu pensar – questão do Ser e da
diferença ontológica – parece-nos que tal abordagem não perde por isso a sua
pertinência.
Se a questão da
arte, e a da obra de arte, ela própria, perdem algo da sua autonomia e não
são perspectivadas como absolutos, na sua postura pura e simples, é, por
outro lado, patente, a relevância que o filósofo assigna à arte como momento
instaurador, e à obra de arte como lugar de presentação dos dilemas
insuperáveis da dinâmica do Ser, e como in-stância mostrante, quiçá mais do
que qualquer outra, do referente enigmático da questão ontológica.
Mesmo enquanto
momento lateral da reflexão de Heidegger sobre o Ser, e apontando justamente
para ela, o texto que aqui comentamos não deixa, por isso, de ser
extraordinariamente significativo. Se a arte perde, inevitavelmente,
horizonte hermenêutico próprio, a sua relevância no pensar heideggeriano não
é por isso menor.
Antes relevando
a proximidade da questão da origem da arte e do seu carácter enigmático com
a fonte originária e indizível do brotar do ser para a patenteação que se dá
como a própria obra de arte, ao
qewrein
do homem, na sua postura a um tempo historial e de Dasein. Trata-se, pois,
de relevar que enigma é esse que a arte acolhe.
II
«Die vorstehenden Überlegungen gehen das Rätsel
der Kunst an, das Rätsel, das die Kunst selbst ist. Der Anspruch liegt fern,
das Rätsel zu lösen. Zur Aufgabe steht, das Rätsel zu sehen.»
Se se procura
descortinar a origem da obra de arte, a sua proveniência essencial, então o
que indubitavelmente se persegue é o modo próprio de desdobramento do ser da
obra enquanto ente (Seiend) que é.
Por sua vez, se
a tríade obra de arte – artista – arte não torna a inquirição futurível,
pois que inevitavelmente se recai em círculo vicioso, e nem a determinação
da essência da arte é possível através da contemplação comparativa de
distintas obras ou da dedução do que a arte seja a partir de conceitos
superiores, inevitável é o procurar deslindar o que a obra de arte é na sua
pura realidade.
Trata-se de
procurar destilar as propriedades da obra de arte em relação aos outros
entes, pois o horizonte em que primariamente a obra nos surge é o das coisas
que são, havendo que relevar se a obra é coisa (Ding), se diz outra coisa
além da coisa que é (allo
agoreuei), e é então alegoria, ou se, sendo coisa, a ela
está reunido, adstrito, algo de outro, caso em que a podemos caracterizar
como símbolo.
Relevando agora
a dimensão de tudo o que é de algum modo ‘aparente’, e fazendo-o procurando
conectar os termos obra-coisa, num percurso que não vamos aqui pormenorizar,
cedo a reflexão heideggeriana estabelece que o que na obra de arte se joga
não cabe na caracterização tradicional do conceito de coisa em sua tríplice
dimensão: enquanto suporte de qualidades marcantes, como unidade de uma
multiplicidade sensível, ou, ainda, nessa concepção mais usual de coisa como
matéria informada.
Se estas três
determinações insultam a coisa mais do que a captam na sua ‘coisidade’, pois
que não a apreendem na sua própria incontornabilidade, isto é, no facto de
brotar originariamente para a patência a partir do ser, trata-se agora de
enveredar por outro caminho e descortinar se o ser-coisa da obra pode
apreender-se no ser do utensílio (Zeug), esse ente particularmente mais
próximo do homem porquanto advém à patenteação por nossa própria produção.
Porém, a
essência do produto, não reside na sua produção, aspecto pelo qual se
assemelharia inevitavelmente à obra de arte, mas na sua utilidade, conferida
pela sua solidez intrínseca, a sua ‘fiabilidade’ (Verlässlichkeit). O
próprio do utensílio é ser fiável, poder contar-se com ele, assumi-lo como o
ente‑à‑mão que é, disponível para o uso do homem. Transparece, pois, que a
essência do utensílio não repousa no ser do mesmo mas na sua reportação à
postura existencial do Dasein, enquanto ser-no-mundo.
Se a obra de
arte por si própria tem suficiência, segue-se que a sua essência não é
determinável a partir do ser do produto, sujeito à usura que lhe confere a
submissão da sua essência às finalidades do homem. De facto: «A obra de
arte, por esta presença bastando-se a ela-mesma que é o próprio da arte,
assemelha-se mais à simples coisa repousando plenamente nesta espécie de
gratuitidade que o seu brotar natural lhe confere. Todavia não classificamos
as obras entre as simples coisas».
Para evitar que
a perspectivação do que seja a obra de arte, a partir da des-construção do
conceito de coisa, constitua um insulto (Ueberfall) à obra, trata‑se de
eliminar tudo o que susceptível de obstar a nossa acessibilidade à própria
obra – incluídos os nossos enunciados sobre ela, e, primacialmente, fazer
relevar a constitutiva in-stância da obra, abandonando-se à sua presença
imediata (unverstelltes Anwesen).
Trata-se de
silenciar o homem para deixar falar a obra: «Nada mais fizemos do que
colocarmo-nos em presença do quadro de Van Gogh. Foi ele que falou. A
proximidade da obra transportou-nos repentinamente para um outro lugar que o
aí onde tínhamos o costume de estar».
Vemos assim que
o que pareceria constituir o nexo interpretativo conducente à determinação
da origem da obra de arte – a abordagem da realidade ‘coisal’ da obra (das
Dinghafte) – é substituído por outra perspectivação tendente a relevar o que
está em obra na obra, ou seja, esta deixa de ser questionada na sua
espessura ôntica para ser apresentada como
topoz
indiciador de outra presença, como instância mostrante.
Este salto,
significará a eleição de um novo nó problemático que colocará a obra de arte
em directa confrontação, não já com o seu estatuto de coisa, mas com a
dimensão fundamental da verdade.
Se já aqui se
adivinha o abandono de uma “hermenêutica metafísica” e a abertura de outros
espaços de perspectivação, conexos com a noção de verdade, mais tarde
veremos como o abandono da inquirição pela onticidade da obra e, por
consequência, da sua propriedade e id-entidade, levantará, no seio da
perspectivação heideggeriana a algumas dificuldades.
A resolução
destas implicará, entre outros aspectos, a cessação da autonomia do sujeito
e do processo de criação artísticos enquanto objectos de investigação, com o
intento de pensar um novo conceito de arte que, livre de funções miméticas
como expressivistas, e, por conseguinte, não mais adstrita ao real já dado
como à “experiência-vivida” do sujeito (Erlebnis), se afirme antes como
momento verdadeiramente instaurador e poético.
Mas o que é que
se faz obra na obra? A verdade de todo o ente que é, coisa ou produto. O ser
do que é chega pela obra e sobretudo por ela ao seu parecer: «A essência da
arte seria pois: o pôr-se em obra da verdade do ente (Sich-ins-Werk-setzen
des Wahreit des Seienden)».
Esta assumpção
da mostração da verdade pela obra de arte, surge na tematização
heideggeriana segundo dois modelos interpretativos que podemos consignar nas
duas díades: Mundo/Terra, clareira/retraimento. É, a um tempo, no enlaço e
no hiato destes dois modelos que a concepção heideggeriana da arte ganha, na
nossa perspectiva, a sua mais fecunda peculiaridade.
O que na obra se
consigna e apresenta segundo a dicotomia Mundo/Terra está ainda na dimensão
não-veladora da verdade heideggeriana. Em rigor, trata-se de perspectivar o
que, estando em obra na obra tem relação ao humano, à sua estada na Terra e
ao seu desbravar de um mundo, prerrogativa exclusiva do modo de ek-sistência
do Dasein: «A Terra é o afluxo infatigável e incansável daquilo que está
aí para nada. Sobre a Terra e nela, o homem historial funda a sua estada no
mundo. Instalando um mundo a obra faz vir a Terra (Indem das Werk eine
welt aufstellt, stellt es die Erde her)».
Mas, o que é a
Terra? Heidegger naturalmente a reporta ao termo grego
jusiz,
essa força que eclode e brota, qual seio de que a um tempo tudo se abre à
presença.
Fusiz é a Terra protectora, o solo natal (Grund) que
tudo mantém e alberga em si. E o Mundo? «Um mundo ordena-se em Mundo (Welt
weltet)».
O Mundo é o que
na Terra o homem instala e propria, privilégio da estada humana no aberto do
ente. São estas duas modalidades de tudo o que é que a obra acolhe em si na
sua in-stância (Dastehen), no seu stare, no seu ter-se aí, instalada.
Instalar uma obra significa depô-la, erigi-la, oferecê-la ao espaço já
constituído, enquanto instância que ordena a amplitude da estada do homem no
seio da Terra. A obra é in-stância irradiante e provoca o abrir-se à luz (lichtet
sich) de tudo o que em si consigna: ela erige um Mundo (Aufstellen einer
Welt) e revela a Terra (Herstellen das Erde).
Poderíamos
inquirir-nos, agora, pelo responsável de tal instalação da obra. Porém, o
‘sujeito’ instalador cedo se esvanece na tematização heideggeriana. A obra é
sempre reportada à dimensão da mais pura impessoalidade, primando
iniludivelmente o seu ser-obra e o que nela se patenteia enquanto presença
mostrante: «Como pode a obra requerer uma tal instalação? Porque é ela mesma
instalante no seu ser-obra. Que instala a obra enquanto obra? Quando a obra
de arte em si mesma se põe, então abre-se um mundo, de que ela mantém para
sempre o reino».
Esse repouso que
é a deposição, a oferenda da obra ao espaço já aberto da
jusiz, não é um repouso sem máculas: no interior da
obra, na medida em que erige um Mundo e faz vir a Terra, suscita-se um
combate (Streit) entre estas duas instâncias: é na efectividade deste
conflito que reside o ser-obra da obra.
É que, se o
Mundo aspira à dominação, ele não pode contudo afastar-se da Terra, tal como
o apolíneo não pode afastar-se do dionisíaco, pois que se funda sobre ela,
qual templo deposto sobre a solidez do rochedo. E nem lhe é possível
resvalar para esse fundo etónico que é a própria Terra, impenetrabilidade
que o não acolhe. Por sua vez, esta, enquanto pujança e força sempre
doadora, para brotar e ser autenticamente si-mesma não pode renunciar ao
aberto do mundo e sempre colide com este espaço téctico – expressão a um
tempo da expansão e fechamento sobre si. Mas: «Como se produz no ser-obra,
isto é, agora, na efectividade do combate, o advento da verdade? O que é a
verdade».
É, de facto,
nesta interrogação que ganhamos consciência que a tematização heideggeriana
não atinge ainda aqui o seu intento fundamental, antes requerendo uma
perspectivação que adiante à dicotomia Mundo/Terra outra mais radical, a
saber, a que atine à essência da própria verdade como des-velamento (Unverborgenheit).
O combate
Mundo/Terra é ainda metafísico, tem realidade no seio de tudo o que é, na
abertura do ente, fazendo porém adivinhar um outro per-passante, mais
originário e fundante. É certo que, sendo reserva no interior da clareira, a
Terra é o que de mais ser há no ‘visível’ – porém, não é o autenticamente
ser heideggeriano, antes remetendo para ele. Terra e Mundo são os dois ramos
em que se bifurca a dimensão clareante da verdade, instância impessoal, que
acolhe em si mesma um suspenso, sob o modo de uma dupla reserva: verdade é
clareira e retraimento, luz e obnubilação.
Consignando em
si o enlaço combativo destes dois termos, a obra faz advir em si a eclosão (Aufbruch)
do ente no seu todo. «Mas como advém a verdade? Resposta: ela advém em
alguns, raros, modos essenciais. Um dos modos nos quais a verdade se
desdobra, é o ser-obra da obra».
Indicia-se, pois, aqui, uma oposição suscitadora de um conflito ainda mais
original do que o que retratámos à pouco.
É numa
aproximação à questão fundamental do Ser e da diferença ontológica que a
tematização heideggeriana irá conceber a obra de arte como acontecimento
originário e a instauração da verdade na obra como momento radicalmente
inaugural.
III
Sabemos que o
Ser, para Heidegger, é essa possibilidade ilimitada e sem figura, força
sempre excessiva e em provisão, a partir da qual, como um fundo, brotam
todos os entes. O que seja a capacidade do ser em se ondular, de se
patentear através de diferentes texturas e rugosidades, é o que é
extremamente difícil de delimitar no seio do pensar heideggeriano, carente
da inicial diferença que, no começo de tudo o que é, despoletaria o ente
para a existência (ao modo como, por exemplo, em Aristóteles, o ente brota
na
jusiz a
partir da confluência, no mesmo, de ser e entidade,
ulh
e
morjh).
É a capacidade
auto-projectiva do Ser, a sua capacidade de jectar para a patenteação tudo o
que é, e o homem de modo mais insigne, que permanece sobretudo enigmático.
Em suma, é o ‘aparecer’ do lugar de todos os mistérios.
Em vários textos,
Heidegger apresenta dois sentidos do aparecer que diferem entre si a partir
da essência do espaço. Num primeiro caso o trazer-se do
ente-à-stância-na-recolecção que abre o espaço, conquista-o e cria-o no seu
re-es-tando-aí, no seu constituir-se desse modo, efectuando, nisso, o seu
recurso máximo para brotar para a patência sem ser ele mesmo cópia de algo
já existente.
Também, num
segundo sentido, o aparecer separar-se-ia apenas sobre um espaço já
constituído, sendo visado por um olhar que se move nas dimensões, já
solidamente estabelecidas, desse espaço. Agora, é o viso que faz a coisa o
mais decisivo, e não a coisa ela mesma. Este aparecer não é, pois, senão um
governo do espaço assim aberto, e sua mensuração, e não mais um
acontecimento originário, um aparecer genuíno e inicial.
A aportação
destas duas concepções de ‘aparecer’ para um estudo sobre a concepção
heideggeriana da arte, parece-nos fundamental, tanto mais quando se trata de
apresentar a obra como modo de patenteação da verdade.
Parece que a
adveniência da verdade, só teria sentido na primeira acepção apontada do
aparecer, sendo, deste modo, concomitante originária ao brotar do ente.
Assim sendo, jamais poderia ter conexão alguma com a postura da obra de arte
já que, ao que parece, esta, na sua constituição e instalação, radicaria na
segunda concepção de ‘ aparecer’ surgindo num espaço já constituído, e em
que a dimensão do seu viso seria manifestamente mais relevante que a sua
própria efectividade.
A obra de arte,
lugar de irradiação e fulguração, teria pois o seu significado enquanto
determinante de um sentido do Mundo no já aberto da Terra, mas perderia toda
a relevância enquanto in-stância da mostração da verdade.
Pensar a
instituição da verdade na obra, tendo como núcleo de reflexão, a um tempo, a
instalação da obra no espaço do mundo e o brotar de um ente, desbravando e
constituindo o seu próprio lugar e espaço é o que Heidegger levanta como
dificuldade no Suplemento a Der Ursprung des Kunstwerkes, escrito em 1960.
A dificuldade
essencial consiste na conciliação de duas expressões: «constituir a verdade»
(Feststellen der wahreit) e «deixar advir a chegada da verdade» (Geschehenlassen
der Ankunft von Wahrheit) Sem explicitarmos este ponto será difícil
compreendermos na totalidade a afirmação heideggeriana de que «A obra de
arte abre a seu modo o ser do ente. A abertura, isto é, a disclosão, ou
seja, a verdade do ente, advêm na obra. Na obra de arte, a verdade do ente
pôs-se em obra.
A arte é o
pôr-se em obra da verdade».
Em que medida a duplicidade inerente à verdade do ente se faz apresentar na
obra, por que meio esta última, por si própria, institui a própria cesura no
seio do ente, abrindo desse modo o ser que lhe cabe, e, finalmente, como é
que a abertura – disclosão do ente, mais que este último na sua simples
postura, se faz
ergog pela obra, e nela, é o que se trata de dilucidar
preliminarmente.
IV
Assim,
consideremos o ente X: um par de sapatos de camponês e os quadros de Van
Gogh sobre esta temática. Como podem estes últimos mostrar a verdade do ente
em questão se, de acordo com o que acima apresentámos sobre o aparecer e o
espaço, os dois se colocam na mais radical heterogeneidade?
A verdade do
referido ente X está no
topoz
do seu brotar, isto é, no nó que co-lige o não-ainda-eclodido e o aberto no
qual vai ter-se o ente. É no desenlaço desse laço que reside a verdade; é no
brotar originário do ente para a patenteação que a verdade se mostra, na sua
dicotomia constitutiva: ser a descoberto /ser na defensiva,
clareira/retraimento.
Os quadros de
Van Gogh, se, na concepção heideggeriana, mostram a verdade do ente X,
então, em rigor, não o imitam ou copiam, na medida em que, fazê-lo, é,
tão-só, o dar a ver o viso do ente em questão no seu ter-se aí,
re-produzi-lo, e não deslaçar-se a verdade.
O que acontece é
algo de manifestamente diverso: a estância da obra, redutível, para
Heidegger, ao que nela está em obra e, portanto, ao seu ‘conteúdo’, cruza
apofanticamente o (brotar do) ente, dando-o a ver, mostrando a sua verdade.
A obra é ao modo do
logoz apofântico.
A sua criação é
uma
poihsiz, um fazer que mostra, um ‘tirar para a luz’ ou
extrair para a patenteação, mostrando o que é fora do retraimento: «Porque
pertence à essência da verdade o instituir-se no ente para, apenas deste
modo devir verdade, há na essência da verdade esta atracção para a obra
enquanto possibilidade insigne para a verdade de ter ela-mesma ser no meio
do ente».
A verdade quer
dar-se em obra, a verdade dos sapatos de camponês quer vir à patência na
tela de Van Gogh. A essência da verdade tem uma atracção para a obra (Zug
sum werk) porque, tendo instância nela, tem mais ser no seio do ente. Deste
modo, a densidade ontológica da obra está insuperavelmente unida com a
espessura ôntica da verdade.
Como não pensar
no facto, irrenunciável, de que a obra é um ente no mundo, e tem, como tal,
a sua facticidade própria? Afinal, trata-se de inquirir: a verdade dá-se à
patenteação na obra, mas qual a verdade própria da obra? Não a tem? Ou dá-se
noutra obra? E a verdade desta? O questionar iria então ao infinito e o
universo seria um espaço pejado de obras de arte mostrando as verdades umas
das outras.
Se a verdade se
dá em ente, e se mostra na obra, não pode ser desprezada a onticidade desta
última: «A verdade não advém senão se se institui ela-mesma no combate e no
espaço de jogo que se abrem por ela. (...) é a abertura do ente, ela apenas,
que torna possível um ‘qualquer parte’ e um ‘lugar cheio de ente’. Clareira
de abertura e instituição no aberto pertencem-se reciprocamente».
Iniludivelmente, a obra não se limita a instalar-se, de pôr-se no seio de um
Mundo, qual oferenda ao aberto do Ser.
A obra
‘(a)tira-se’ para o espaço, rompe para a patenteação e provoca a sua própria
abertura. Nisto, ela abre o seu espaço e institui-se no seu próprio
topoz
sem que estes dois movimentos surjam como distintos e com diferentes tempos.
Na realidade, ambos se efectivam no mesmo instante do brotar da obra
enquanto ente em que a verdade ganha a entidade que se aduz à sua essência
mesma: o ser fissura, diferença, obnubilação e luz. Mais do que propriar o
espaço, a obra de arte concede-se o seu próprio fundo, ocupando como ente a
abertura que o seu vir à presença denuncia.
A obra de arte
consigna em si a dúplice concepção do aparecer e do espaço heideggerianos:
instalando-se no aberto e irradiando a sua luminosidade para o mundo, acolhe
em si a verdade do ente, porquanto o conflito inerente à instância desta
nela está em
ergon. Nunca o que constitui o mistério na díade
ser-ente, isto é:
alhqeia, des-velamento, está tão perto da sua mais
efectiva e espontânea patenteação como obra de arte.
É na confluência
dos termos da diferença inerente à essência da verdade que nos parece ser
possível afirmar a necessidade de conhecer a tematização heideggeriana da
obra de arte com outra nuance: é na confluência do instalar-se da obra no
espaço com esse inefável dar-se, na obra e da verdade do ente que brota, na
nossa perspectiva, a arte como momento fulcral de instauração.
Na medida em que
é ente e colhe em si, mostrando, clareira e retraimento que a obra está no
topoz da diferença ontológica: de facto, se neste ponto
fulcral do seu pensar, Heidegger se questiona sobre a diferença fundamental
entre ser e ente, e sobre a efectividade do esquecimento desta questão como
motivo despoletador da postura metafísica, como não revelar a assumpção
desta temática para a concepção de obra de arte, esse ente que na sua
in-stância mesma sincretiza esses dois elementos: ôntico e ontológico?
Se o acto
criador é a um tempo uma
qesiz ‑ o deixar desdobrar-se na sua fulguração e na
sua presença a própria obra, e se esta é o lugar em que qualquer coisa é
tirada ao ser para ter mais ser no seio do ente, a saber, a verdade, então,
o dar-se da verdade na obra, conecta indubitavelmente uma hermenêutica da
arte com a problemática moral do pensamento heideggeriano: «Se meditarmos em
que medida ‘verdade’, como eclosão do ente, não quer dizer nada de diferente
de presença do ente enquanto tal, isto é ser, então falar da instituição
espontânea da verdade, isto é, do ser, no ente, este falar toca a posição em
questão da diferença ontológica».
Há que relevar
esta dupla compreensão da obra de arte. Perspectivada sob o ponto de vista
de tudo o que é de algum modo já-presente no seio da dimensão não velada da
verdade e, portanto, mostrando a verdade de todo o ente na sua própria
facticidade no seio da dicotomia Mundo/Terra, a obra de arte assume-se como
instância mostrante do ser da coisa e do utensílio, e o conceito de
instalação surge-nos como mais relevante.
Apenas a
perspectivação da arte como instauração, numa abordagem que releve o próprio
nó de todo o eclodir – a confluência de clareira e re-traimento na abertura
de todo o “brotar ente”, nos fornece uma mostração da verdade própria da
obra, porquanto a releva nisso de ser a um tempo instância mostrante e ente
que se instaura no
topoz da sua própria abertura.
A instauração da
obra é concomitantemente o momento inicial de todo o ente, e, como tal o seu
surgir é um acontecimento verdadeiramente inaugural, sendo a obra pensada a
partir dessa fulguração indizível que é o facto da verdade se dar, se pôr em
ergon, na obra de arte mesma.
V
Preparados
estamos para compreender o esvanecimento das categorias de autor e criação
no seio da tematização heideggeriana. Numa concepção da obra em que é a
verdade mesma que se atrai para o espaço télico, na pintura, para a
sonoridade, na música, ou para a palavra, na poesia, o processo como o
sujeito realizador de tal assumpção, que entifica o próprio querer dar-se da
verdade, surge como que irrelevante mediador, descaracterizado enquanto
instância produtora e apenas como simples, mas evanescente, meio para o
surgir da obra.
Mas se Heidegger
nos fala da assumpção da obra como um “tirar para fora” da verdade em
relação ao fundo não patente, como não desprezar essa pergunta que se
inquire pelo quem e como deste extrair, ainda que como instâncias que, num
primeiro momento, abrem a própria possibilidade da adveniência da verdade
para, no dar-se excessivo desta, logo se emudecerem e desvanecerem,
deixando-se tomar e ultrapassar por aquilo que está em obra na obra, mas
também perante o brotar denso e vigorante da obra na sua espessura ôntica:
«A obra de arte como o obreiro – o artista – repousam ‘juntos’ naquilo que
se desdobra na arte».
É a essência
mesma da obra que torna possível o processo como o sujeito da criação
artística, embora estes sejam ‘nadificados’ na sua instância e essência
própria, no intuito de relevar o modo como a obra surge, sem mediação, num
brotar depurado que desafia toda a compreensão.
Não é no
processo de criação que o elemento humano ganha a sua relevância na
tematização heideggeriana. A importância quase exclusiva atribuída à
temática ontológica provoca, nesta perspectivação, uma radical separação
entre a criação e o homem com a finalidade de relevar a postura da obra como
topoz de um advir que nada tem de humano: «A obra quer
chegar pelas suas mãos à sua imanência pura. Na grande arte, e é a grande
arte apenas que faz aqui questão, o artista permanece, por relação à obra,
qualquer coisa de indiferença, um pouco como se ele fosse uma passagem para
o nascimento da obra, que se negaria ele-mesmo na criação».
“Criar” (Schaffen)
significa, para Heidegger, ‘tirar à fonte’, receber. Não é pois, o acto
criador, um fazer a partir do dado, uma modelação, um construir que exprime
e seja, como tal, caracterizador de um sujeito que pela obra se manifesta.
“Criar” é um saber estar junto da fonte de onde tudo brota, do lugar do
originário. O ‘criador’ é o Dasein que sabe ter-se na instância do
acolhimento, que recebe para a obra a dádiva da verdade que nela se
pre-senteia. No mais, a pro-dução, se é sempre um trazer ao visível, ao
manifesto, é sempre o fazer que provoca a assumpção de um ente.
Na arte, o que
releva de modo mais insigne, não é a produção de um ente mas o facto
incontornável de que a verdade se dá em acto. Nisto o criador é tão só um
poro, uma passagem, em que a própria individualidade e entidade do sujeito,
porque não é o que na obra se trata de expressar, recai na própria aporia,
isto é, a obra não se abre ao ser do homem, mas ao ser da verdade. A arte é
uma instauração antropologicamente inexpressiva no que concerne à criação da
obra.
Se, assentámo-lo
já, na obra se re-colhem umbilicalmente ente e verdade, trata-se agora de
perguntar pela especificidade da arte enquanto modo de mostração daqueles
relativamente a outras modalidades de patenteação, consignadas no pensar
heideggeriano. De facto, em que consiste a propriedade da arte? O que faz a
originalidade da obra de arte? Heidegger afirma: «A instituição da verdade
na obra, é a produção de um ente que não era de modo nenhum antes, e não
será mais a seguir. A produção instala este ente no aberto de tal maneira
que é precisamente aqui o que é a produzir que aclara a abertura da obra na
qual ele advém. Aí onde a produção traz expressamente a abertura do ente – a
verdade –, aquilo que é produzido é uma obra. Uma tal produção, nós
chamamos-lhe criação (das Schaffen)».
A realidade
própria da obra é ser um ente que, acolhendo em si a verdade na sua
estatura, tem toda a sua positividade e pregnância no facto de ser tão o
ente que é. Criar é produzir um ente que não tinha ser, e não terá nunca
mais ser do que o que detém no momento em que vem à clareira do aberto. Se a
verdade ganha mais ser no seio do ente, a obra afirma a sua especificidade e
id-entidade no facto de ser o ente ‘insólito’ e enigmático, que acolhe em si
a dádiva da verdade mostrando-se através dele.
Neste sentido, a
obra de arte é aquele ente cuja postura e viso provocam espanto. Enquanto
ente em que a verdade se dá, ela está perto do inicial, da origem de tudo o
que é patenteado nela, sendo a sua adveniência mesma o próprio apelo do
in-habitual.
Face ao que está
em obra na obra tudo o que é ente sem ser mais do que ente cai na
familiaridade que nada desafia, no habitual que não alude à sua própria
origem. A obra tem, pois uma função ‘qauma-tica’, ela é um apelo para o maximamente inicial,
sendo o seu surgir como que o concomitante do genuinamente original. ‘Ser-obra’,
mais do que ‘verdade tendo ser no seio do ente’, eis o que é o mais
espantoso: «O choque que é o pôr em obra da verdade, faz saltar as portas da
e-normidade e no mesmo golpe rebate o familiar, ou tudo aquilo que se crê
tal. A verdade abrindo-se na obra não é jamais atestável nem dedutível a
partir do ente até ao presente já-posto, que se vê, então, refutado,
desmentido pela obra, quanto à exclusividade da realidade. Aquilo que é
instaurado pela obra não pode jamais ser contrabalançado nem compensado pelo
dado habitual e disponível. A instauração é um acréscimo: ela é dom».
A obra de arte é
o lugar em que se instaura e concede um excesso. Na sua in-stância ela
denuncia o que está para lá de tudo o que é, e justificando-o. Há algo de
pre-valecente que se dá no ente, porém excedendo-o infinitamente. E se,
nisto, ela faz denotar a vanidade do familiar, ela mostra, também, que o
‘ser-obra’ que é ‘nega’ o seu carácter de ser ente. O que aparentemente mais
aproximaria a arte do homem: a produção do ente é o que a obra mesma supera
pelo seu estar-aí apelando o in-habitual. A realidade da obra desvanece-se
perante a dádiva que a sua instauração mesma constitui: o que denota a
verdade da obra é o que ela precisamente não é enquanto ente: é excedência,
é dom – o dom que é a verdade pondo-se ela mesma em obra.
A demanda
heideggeriana não se queda numa apologia da obra como dádiva, relevando
também questões de outro cariz, conexas com a problemática radical da
questão ontológica. Temos pois a assumpção da pergunta pelo fundamento da
obra, não numa perspectiva tendente a encontrar-lhe o porquê e a razão,
relevando antes o horizonte em que, no surgir da obra, se coligem, no mesmo
traço caracterizador, fundo (Grund) e fundação, a própria obra de arte
aparecendo como acontecimento verdadeiramente auto-fundador: a obra é
expressão de um salto original que a traz do nada ao ser.
A fundação é, a
um tempo, a circunscrição de um espaço de instauração, do assento num fundo,
e os próprios pilares que enraízam o ente ao seu fundo de ser. Enquanto
instauradora de um espaço que propria a assumpção da verdade no ente, a obra
é simultaneamente instância fundante e fundação: ela traz a verdade ao ente
e constitui o lastro, o estame que a radica ao seu fundo de ser. Consignando
estas duas dimensões, a obra surge de um inexplicável ‘salto’ que faz brotar
a própria verdade como que se adiantando ao próprio ente, como se provocasse
a estatura da verdade no ente sem que este mesmo surgisse desdobrando a sua
própria verdade.
Nisto, a arte é
quase o paradoxo, como se promovesse a dádiva da verdade sem a oferecer num
ente, dando a vê-la como sendo o seu próprio fundo: «A arte faz brotar a
verdade. De um só salto que se adianta a arte faz surgir, na obra, enquanto
salvaguarda instauradora, a verdade do ente. Fazer surgir qualquer coisa com
um salto que precede (etwaserspringen), trazê-la ao ser a partir da
proveniência essencial e num salto instaurador, eis aquilo que nos assinala
a palavra origem».
Fornecendo solo
à verdade e trazendo-a à estância a obra de arte é acontecimento
verdadeiramente inaugural. Ela é concomitante do genuinamente inicial (Anfang).
O advir da obra é coetâneo do salto que traz o que é ao ser sem mediação.
O inicial é
aquilo que, estando no princípio e provocando-o não deixa de nos apelar e
fascinar, porquanto continua per-passando tudo o que é. O inicial é o
in-habitual de aquilo que sempre prevalece suscitando o devir de todo o ente
familiar e o anima. A obra, instauração do inicial, promove a adveniência da
origem, aquilo que nos con-voca e pro-voca a resposta e a co-respondência.
A obra de arte
faz um apelo, des-ilude o habitual e o familiar como absolutos, mostrando
que não são eles que detêm mais ser: «Aquilo que nos parece habitual não é
verdadeiramente senão o habitual de um longo hábito que esqueceu o
in-habitual de onde brotou. Esse in-habitual, no entanto, surpreendeu um dia
o homem em estranheza, e empenhou o pensamento no seu primeiro espanto».
VI
A obra de arte
é, nesta configuração, o ente da existência metafísica que clama de novo
resposta ao espanto originário. É neste sentido que Heidegger pode afirmar a
sua concepção da arte como origem, radicando de modo, insigne, pelo qual a
verdade tem acesso ao manifesto e à história, a essência mesma da arte.
Coetânea desta adveniência da verdade, a arte tem também, porém não só ela,
essa dimensão fundamental segundo a qual é, eminentemente um ‘mostrante’, um
poema (Dichtung).
Capacitada para
se ‘jectar’ na patenteação, no manifesto, ela é pro-jecto de clareira,
despoletadora da própria abertura em que o ente se dá na sua verdade. Nisso
de fazer vir ao aberto o ente enquanto ente des-velado, a arte é Poesia, um
fazer mostrante que dilucida o modo como o ser possibilita um jectar’ para o
manifesto, de acordo com o qual o aberto da verdade se destina a ter
estância no ente.
Porquanto, a um
tempo, acolhe a dádiva da verdade posta em ente e explicita o salto
enigmático do ser ao ente, a obra está no
topoz
da diferença ontológica e da fundação de tudo o que é. Finalmente, na medida
em que é concomitante ao originário advento da verdade do ser e faz apelo
para ele, a obra de arte ganha o seu lugar entre os entes mais ‘mostrantes’
da existência metafísica.
A arte é Poesia
e, nisso, mostra, a quem o faz? Qual o ente que se demanda pelo porquê de
tudo assim ser, e acolhe essa mostração como detendo um sentido? Heidegger
diz-nos: «A essência da arte, é o Poema. A essência do Poema é a instauração
da verdade. Esta instauração, tomamo-la aqui num triplo sentido: como dom,
como fundação e como inicial».
Conquanto nos
tenhamos movido numa perspectivação ontológica, o que até agora foi exposto
parece suficiente, porém, a própria assumpção da arte como Poesia, como
‘fazer mostrante’, cedo mostra a necessidade de acolher, no questionamento
heideggeriano sobre a arte, a temática antropológica, e a condução da
abordagem ontológica a essoutra, não menos fundamental, da postura
metafísica do Dasein e da inquirição deste sobre o sentido do ser.
É que, numa
tematização da arte a partir dos conceitos de ‘instauração’ e ‘poesia’ a
noção de ‘ criação-adveniência’ da obra, relevada tão somente na sua
dimensão ontológica é manifestamente insuficiente. Há, pois, que relevar
outra interpretação que sobreleve a figura do homem e o seu próprio estar
metafísico: «No entanto, toda a instauração não é real senão na salvaguarda.
Assim, a cada modo de instauração, corresponde um modo de salvaguardar»
.
O que agora
vamos tematizar, sobre a relevância do homem na concepção heideggeriana da
arte vai, por assim dizer, inter-seccionar o que atrás dissemos sobre o pano
de fundo de uma perspectivação ontológica, havendo que representar nesse
espaço comum dos dois círculos inter-seccionados, respectivamente, as
posturas ontológica e metafísica. Apenas desse modo se torna possível
compreender a arte como instauração na sua tríplice dimensão de dom,
fundação e inicial.
Se, por um lado,
temos que é iniludível, para o filósofo, o facto de que o homem, enquanto
artista, não explica a obra na sua radicalidade, porquanto a iniciativa do
‘fazer-obra’ pertence à verdade, temos, por outro lado, que a própria
assumpção desta última como des-velamento só se torna compreensível numa
postura em que há Dasein, esse ente para quem a verdade faz sentido.
Há uma inicial
concepção que deve ser, dir-se-ia, superada, a saber, a que coloca como
categoria mais elevada de compreensão da arte, a autonomia da obra em
relação ao próprio horizonte do humano, ou, como diz Heidegger: «Não é o N.
N. fecit que quer ser trazido ao conhecimento de todos; é o simples factum
est que quer ser mantido no aberto; isto: que aqui adveio uma eclosão do
ente, e que ela advém ainda, precisamente enquanto que este ser-advindo;
isto: que uma tal obra é, de preferência a não ser. Este choque: que a obra
seja uma obra, e a incessância da sua percussão dão à obra a constância do
seu repouso em si mesma. É justamente aí onde o artista, o processo e as
circunstâncias da génese da obra permanecem desconhecidas, que este choque,
que este quod do ser-criado ressalta o mais puramente da obra».
Se, na origem, o
humano se desvanece, a própria instauração da obra no aberto não pode
separar-se desse ente que, perante a sua instância, sente o ‘choque’ e a
‘percussão’ que dela emana. Instauração no seio do aberto e relevância da
questão ontológica, sem dúvida. Porém, se ser obra é ser um ente mostrante,
a relevância da sua dimensão poética só se torna possível se, aduzido ao
momento instaurador, se coloca esse outro em que o Dasein, enquanto ente que
mais insignemente acolhe o ser, se inquire pelo seu sentido, é iniludível
que a arte na sua essência, na sua origem, é instauração da verdade.
A essência da
Dichtung, da Poesia, não se esgota nesse momento originário, qual referente
de uma concepção ontológica nova, mas antes suscita, e de modo não menos
relevante, um novo modelo interpretativo do ente na sua totalidade. E se, de
facto, a dimensão antropológica não é relevante na assumpção instauradora
que conecta a obra ao fundo originário do ser, ela conquista toda a sua
pregnância numa dimensão, dir-se-ia, hermenêutica, que reganha a obra para o
aberto do mundo e para a dimensão historial do Dasein, configurando uma nova
poética, antropologicamente mais positiva, que releva não já a dimensão da
criação mas a da Salvaguarda (die Bewahrung).
VII
Em que consiste
a Salvaguarda, esse segundo elemento essencial da arte? Podemos dizer que
por tal conceito se traduz o trabalho humano de deixar a obra ser o que em
verdade é. Guardar a obra é o saber permanecer na verdade do ente que advém
pela obra. Podemos dizer que está no poder da obra trazer ao aberto do ser a
verdade do ente, mas não está no seu poder intrínseco manter-se no seu
próprio elemento. Instalando-se no Mundo de cujos entes instaura a verdade,
a obra tem a sua ambiência particular, ela própria o seu mundo, e fá-lo
justamente na medida em que irradia para ele, como se, paralelizando com a
atracção da verdade para a obra, houvesse um querer segundo, pelo qual a
obra se posiciona como o mostrante do segmento do mundo em que se instaura,
ganhando no seio dele a sua verdade própria.
‘Guardar a obra’
– eis a postura do Dasein pela qual ele pressente que, inerente ao
instituir-se da obra num mundo, e ao abrir-se e ordenar-se de um mundo na
obra, há, também, o mundo próprio da obra, qual periferia em que está no seu
elemento próprio.
Tudo se passa
como se houvesse, subjacente à noção de salvaguarda, uma ética do homem
relativamente ao ser-obra, mediante a qual promover o desgarramento da obra
ao seu mundo não é outra coisa senão insultá-la, pois que não se trata, aí,
senão de abandoná-la à sua própria solidão de ser uma obra sem mundo – isto
é, retirá-la do fundo em que foi deposta, fundo que é a sua própria
proveniência historial, lugar em que a obra brotou para a existência
manifesta.
Caricaturando:
depor a Vénus de Milo nos átrios da Tate Gallery, é retirá-la do fundo grego
em que surgiu para instalá-la num lugar que, muito distante do seu brotar,
está todavia consignado no espaço metafísico ocidental, que a aurora
filosófica grega despoletou, estando portanto no seio de uma mesma
proveniência historial.
Verdadeiro
insulto e traição à obra, seria antes para Heidegger o facto, bem actual, de
exportar telas de Cézanne para o Japão, não porque haja aí apenas um ‘abismo
espacial’ mas porque, de facto, um japonês não pode ‘sentir’ «La Montagne de
Sainte-Victoire» como a sente um europeu que, enquanto Dasein ocidental,
detém a mesma proveniência historial que a mencionada tela e pode ‘sentir’,
por isso, a nostalgia do in-habitual que ela anuncia. Ao homem desgarrado da
postura metafísica ocidental será impossível ‘guardar um hino de Hölderlin
como uma sinfonia de Beethoven, e isto porque, não se tendo na verdade que
tais obras desdobram, a instituem no espaço próprio de tais mundividências,
e como tal, desenraízam de tal modo a obra que esta não pode mostrar o
verdadeiro inicial e in-habitual de onde brotou.
Desenraizar a
obra do seu mundo, eis em que consiste roubar-lhe a poesia: «Enquanto
posição em obra da verdade, a arte é Poema. E é não apenas a criação, mas
também a guarda da obra que é no seu modo próprio, poemática; pois uma obra
não permanece real enquanto obra senão se nos demitirmos nós mesmos da nossa
banalidade ordinária e entrarmos naquilo que a obra abriu, para assim
conduzir a nossa essência a ter-se na verdade do ente».
Manifesta é a
assumpção do homem enquanto ente que, no fulgor da obra, se transporta para
uma nova ordem de todo distinta da que configura a sua existência
quotidiana. A obra é também uma via, um poro, no qual o homem se en-via para
a co-respondência de aquilo que a própria obra abriu, a saber, a mesma fonte
matricial onde se re-conhecem a origem da obra e a essência do homem.
A relevância da
obra como mostração poética ganha a sua concretude no conluio, em uma mesma
matriz, do homem e da obra enquanto mostração da verdade do ente. Só uma tal
co-respondência num momento originário torna possível ao Dasein, o
re-conhecimento de aquilo que, na obra, o concerne a si e ao sentido que
confere ao seu existir historial: «O projecto verdadeiramente poemático é a
abertura de aquilo em que o Dasein está, enquanto historial, já arriscado».
Irradiação
mostrante de um mundo que desdobra a sua ordem a partir da relação do Dasein
ao aberto do Ser, mas também ente capaz de possibilitar o total
desgarramento do homem em relação ao que lhe é familiar e habitual,
transportando-o para um outro aí que não aquele em que tem o costume de
estar, a saber, para o
topoz originário, em que ele mesmo devém ser-aí, eis
como podemos caracterizar a poética da obra de arte. A postura da obra
mostra ao Dasein que o verdadeiro enigma se esconde por detrás do familiar
que o circum-domina.
Apenas o homem é
capaz desse saber segundo o qual lhe é manifesto que não deve ser esse
habitual a pre-dominá-lo, detendo também esse querer que o torna capaz de
ser fiel guarda da obra nisso de, perante ela, ser capaz de se libertar dos
empreendimentos quotidianos no seio do ente para se abandonar à abertura do
ser: «O saber que permanece um querer, e o querer que sabe permanecer um
saber, é o comprometimento ek-stático do homem existindo no aberto do ser».
Manifestamente,
a obra, por sua imanência pura, existe no manifesto do ser mostrando-o,
porém, ente que é, mas sem capacidade de se auto-questionar, ela não detém o
poder de se comprometer na abertura do Ser, inquirindo pelo seu sentir.
Assim, a obra de arte dá-se ao único ente ao qual não é indiferente o ser
que detém e é, como tal, capaz de levar no seio do aberto uma ek-sistência
autêntica: o homem.
Decorrendo do
que temos vindo a expor, é manifesto que a tematização heideggeriana não
acolhe a possibilidade do que poderíamos chamar uma ‘hermenêutica criativa’,
privilegiante de um
paqoz
estético.
O choque que
provoca a existência mesma da obra não é desencadeado por um viso desta que,
pela sua força, provocaria prazer ou outra qualquer emoção. Não é, de facto,
aí, que reside para Heidegger, a verdade da experiência estética, sendo esta
negada se assumida numa dimensão que exclusivamente a reconduza à
aisqhsiz.
Parece-nos, que
se não é dessa aproximação sensível à obra que provém o poder desgarrante e
‘qauma-tico’ desta, não deixa o filósofo de conceber uma
certa ‘disponibilidade receptiva’ que poderíamos assemelhar a um acto de
escuta, numa ressonância que aproxima a poética da obra a essa outra, de
todas a mais mostrante, residente no poder nominativo da palavra.
A postura do
Da-sein perante a obra – e o combate que se trava nela entre clareira e
retraimento, é um estar co-respondendo ao que na obra silenciosamente se
diz, não porque a obra ‘fale’, mas porque o homem incontornavelmente lhe
acolhe o apelo, apelo que não o do ente-obra mesmo, mas do que nele se
oferece: o brotar longínquo do ente que a obra de arte dá a ver.
Detentor do
poder da palavra, esse meio conivente do ser de cada ente, o homem é perante
a obra desenraizado da marca quotidiana do ente, para, numa espécie de
nostalgia, sentir a dor que lhe provoca a proximidade desse longínquo: o ser
que o ser-obra enquanto tal lhe revela.
Querer e saber,
eis as características do homem enquanto ente disponível para escuta da obra
enquanto instância em que o ser apela: «Querer, é com toda a sobriedade o
pôr em liberdade que possibilita ir para lá de si mesmo em existindo e em se
expondo à abertura do ente tal como esta se manifesta na obra. (...) A
salvaguarda da obra é, enquanto saber, a calma e lúcida instância na
e-normidade da verdade advindo na obra».
A obra de arte é
lugar em que se potencia o acto de transcensão do humano em relação ao
familiar e habitual na prossecução de uma verdade mais primeira. Conceder a
própria possibilidade de excedência em relação à sua vida interior, na via
do horizonte em que o homem co-responde mais ao seu ser, a saber, à verdade,
eis a dádiva principal que a obra de arte concede ao Dasein.
VIII
A necessidade de
tematizar numa mesma conivência uma ontologia da obra de arte e a sua
‘significação hermenêutica’ conduziu-nos, neste nosso percurso, à
dilucidação da questão da instauração poética da verdade e do trabalho
humano de salvaguarda, enquanto momentos característicos da concepção
heideggeriana da obra de arte.
O facto,
incontornável no pensamento do filósofo, de que o Ser é assignação e
direcção ao homem na mesma medida em que o homem ele próprio é um ‘projecto’
do Ser e o seu mais inacabado dos poemas, faz-nos relevar o coligimento da
tematização ontológica e antropológica na concepção da obra de arte na sua
mesmesura, com essa outra que atine à salvaguarda da mesma pelo Da-sein.
Assim, a
pergunta que demanda: a tematização heideggeriana da arte tem como nexo
dinâmico o homem ou o Ser? Terá de ter resposta algo dúbia e inexplícita, no
seio do próprio texto de Heidegger: se respondemos a favor do homem, teremos
que a concepção do filósofo não poderá descurar a metafísica, se bem que
atentando também ao originário de onde esta brota enquanto postura historial
da nossa ek-sistência ocidental; se nos decidirmos exclusivamente pelo Ser
então a determinação da arte redundará inevitavelmente na questão fulcral da
ontologia: o que é o Ser? E enredar-se-á nela a ponto de se tornar aporética,
porquanto, descurando o homem, e a metafísica em que este habita,
perguntar-se-á: como explicar o processo historial de salvaguarda da arte,
sem um Dasein que o cumpra e explicite?
O termo
‘historial’, relevado por nós a propósito desta dúplice possibilidade,
parece-nos fundamental, fazendo brotar uma questão necessariamente
subsequente: que relação entre verdade e dimensão historial? Ou seja: «O que
resta é a questão de saber se a arte é ainda, ou se não o é mais, uma
maneira essencial e necessária de advento da verdade que decida do nosso
Dasein historial».
O que no
questionar de Heidegger nos parece mais aporético, e justamente na proporção
em que é uma temática fulcral, reside na dificuldade em explicitar de que
modo o homem enquanto ente historial que, como tal, salvaguarda, pode estar
também sempre perto da fonte, isto é, da matriz grega do despoletar
possibilitador da metafísica enquanto postura indagante.
Trata-se de
inquirir os meios pelos quais se viabiliza a conciliação da historicidade da
Arte com uma concepção que a tematiza em concomitância com a originária
jusiz, enquanto predominância que advém ao manifesto
através do conflito entre Ser e ente, isto é, pela matriz grega da verdade
como
alhqeia, des-velamento, num regredir ao momento
originário que permanece per-passando tudo o que é e devém, relevando aí, a
própria postura metafísica. Qual a temporalidade que revém no ser estético?
Como a conciliar com a atemporalidade do que está em obra na obra? Trata-se
de relevar qual a relação possível entre a intemporalidade da verdade
dando-se na obra e a historicidade da salvaguarda: «A arte é então: a
salvaguarda criando a verdade na obra. A arte é pois um devir e um advir da
verdade».
Não é um facto
que, concebendo uma verdade que devém pela sua própria salvaguarda, há uma
imbricação necessária, porém inexplícita, entre as tematizações ontológica e
metafísica no que concerne a tal noção? Não é precisamente o acolher
metafísico da Arte que se quer negar, superando-o numa concepção da arte que
a reconduz ao originário longínquo que despoleta toda a herança metafísica,
mas que porém não é só e nem primordialmente metafísico na sua origem? Não é
de certo modo paradoxal afirmar: «Mesmo o esquecimento no qual pode soçobrar
uma obra não é nada: ele é ele-mesmo ainda uma salvaguarda»?
Como, este poder conceber uma salvaguarda esquecida no próprio esquecimento
do Ser que é já a metafísica? Não haverá, em Heidegger, o perigo de recair
numa certa interpretação metafísica da Arte, quando é precisamente o
conceito metafísico desta que se trata de superar, pensando a essência da
Arte como apontando para uma outra ordem, ontológica, que se demanda pelo
ser ainda virgem da metafisicidade à qual ele próprio se destinou, porém
ainda não viciado por ela?
IX
Estas são
algumas das dificuldades decorrentes da problemática trabalhada, a que
aditamos agora, e em jeito de conclusão, uma outra que atine, assim o
pensamos, à própria indefinição do que seja a Arte, na própria espessura
individual do termo. Uma vem concedido que a obra de arte, na sua pregnância
é o pôr-em-obra a verdade, e que esta designa o não-retraimento do Ser, não
sabemos também que, no seio do pensamento heideggeriano, a verdade se dá
também por outras vias? «Todo o ensaio sobre a Origem da obra de arte se
move conscientemente, e no entanto sem o dizer, sobre o caminho da questão
da essência do ser.
A meditação
sobre o que é a arte é inteira e decisivamente determinada pela única
questão do ser. A arte não é considerada como uma das manifestações do
espírito. A arte advém da fulguração a partir da qual apenas se determina o
‘sentido do ser’. O que pode ser a arte, eis uma das questões às quais o
ensaio não dá resposta. E o que parece ser uma resposta não é senão um sinal
que guia o questionamento».
Heidegger tem consciência das dificuldades em que se enreda a determinação
da essência da Arte.
Se a definição
do que seja a Arte brota no fulgor que desencadeia a radical questão do
‘sentido do ser’ temos que outras posturas que não a artística são, para o
filósofo, igualmente reconducentes a este primordial perguntar, como por
exemplo: a constituição de um Estado, o trabalho fulcral do pensar em se
deter no
topoz da origem de tudo o que é, e, de modo mais
relevante ainda, a própria postura ek-sistencial do Dasein, que, na sua
estada autêntica no aberto do ser lhe inquire o sentido, abrindo-se para ele
a verdade, qual gratificação pelo árduo labor de pastorear o Ser, esse estar
permanente numa dimensão de pré-compreensão ontológica.
O que queremos
dizer com isto? Apenas o seguinte: para que a verdade advenha não é preciso
que ela ganhe estância na periferia ôntica da obra. Para Heidegger, ela
apela constantemente o ser-aí do homem, dispondo-o à escuta da fonte numa
postura historial em que a presença mesma da fonte se deixou esquecer.
Citando Goethe, como o próprio filósofo o faz no capítulo A Arte e o
Espaço do texto “Tempo e Ser”:
«Não é sempre necessário que o verdadeiro se incorpore; é bem suficiente que
ele plane em redor como espírito e provoque o acordo; que como o canto dos
sinos, a sua vaga se espraie pelos ares, sorriso da serenidade».
Suscitar a
escuta guardando o olhar virado para a pertença recíproca do Ser e da
Palavra, eis a dimensão em que, latamente, a verdade se dá a ver. Não só na
Arte, portanto ela está ‘em redor’, borbotejando do todo do mundo, e do Ser.
É este todo uma imensa obra de arte, continuamente espantando pela sua
enormidade?
Sem dúvida que
Heidegger nos diz ainda que «a arte é ela mesma, na sua essência, uma
origem, e nada de outro: um modo insigne de acesso da verdade ao ser, isto
é, à História».
Porém, perguntamos, se toda a verdade que se des-vela para a História tem a
Arte como origem, se a arte esgota, por isso, todas as modalidades de
patenteação da verdade?
Por excesso ou
por defeito, o conceito de Arte descaracteriza-se, perdendo a sua
pre-valência como mostração da verdade pensada a partir de uma poética
instauradora, na medida em que não é só por esta que a verdade se manifesta,
perdendo igualmente a sua especificidade se pensada a partir do conceito de
origem. Afirma o filósofo no Posfácio: «As considerações precedentes
concernem o enigma da arte; o enigma que a arte é ela mesma».
No
topoz da origem tudo é misterioso: a Arte, como o
pensar, como o ente, como o homem. Na tarefa de especificar o que seja a
arte, isto de a pensar a partir da origem inefável do brotar-ser pode
constituir um último recurso, mas não permite resolver o problema e nada
acrescenta de positivo à noção, por nós já estudada, de poética
instauradora. Com efeito, conquanto esta categoria permita dilucidar a
especificidade da postura da obra de arte, ela permanece todavia impotente
relativamente à determinação da essência da própria Arte, a proveniência
inicial desta sempre recaindo no domínio para nós insuperavelmente
inexplicável e misterioso. Heidegger propondo enigmas... Pretensão do
filósofo, ao querer ser Esfinge? Ou erro deste nosso estar metafísico, que
nos não deixa ser Édipo?
BIBLIOGRAFIA
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HEIDEGGER, M., L’Art et l’Espace, in Questions IV, trad. do
alemão por
André Préau, Roger Munier e Julien Hervier, Paris, Gallimard, 1966.
Isabel
Rosete
Setembro
2007
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