AINDA no céu
luziam as últimas estrelas, já a Ti Ana moleira andava
atarefada, de um lado para o outro, tratando das lides caseiras.
O Ruço já tinha a sua gavela de palha, na manjedoura, pois os
dias em Dezembro são curtos e a farinha tinha que ser
distribuída, cedo, aos fregueses, para as filhós do Natal.
A Ti Ana,
depois de distribuir farta ração de milho pelas galinhas e ter
engolido, sentada ao lume, a sua tigela de migas de boroa com
café, cruzou o velho xaile no peito e foi direita ao moinho.
De caminho ia
estimulando o burrito:
— Eh, Ruço!
Anda depressa, mariola I Está frio cá fora, mas quem trabalha
aquece. Olha que a Sr.ª Morgada fica zangada se lhe levas tarde
a farinha.
Mas, de
repente estacou. Pareceu-lhe que ali perto chorava uma criança.
Seria impressão dos seus ouvidos?... Mas não. Era realmente uma
criança, que os seus olhos, já afeitos à luz indecisa da
madrugada, descobriam naquele embrulho, junto à porta do moinho.
Pegou-lhe com jeito e murmurou:
— Querido
anjinho! Quem seriam os desalmados que assim te abandonaram numa
noite destas junto ao moinho duma pobre mulher, que não tem
meios para cuidar de ti?! Sempre há gente no mundo!... Quanto eu
desejei ter um filho e nunca o tive e esta mãe, a quem Deus
presenteou com um anjo destes, abandona-o assim! Malvada!...
Mas, mudando de tom, concluiu:
— Só Deus
sabe por que esta criança aqui se encontra e só a Ele compete
julgar. Por isso, o que tenho a fazer, é cuidar dele, já que
Deus mo enviou como presente de Natal. Mas que lhe hei-de eu
dar? E tão pequenino!... E, iluminada por uma bela ideia, disse:
— A cabrinha branca será a sua ama.
Com a criança
bem aconchegada a si, entrou na cozinha e, para a ver melhor,
aproximou-se da candeia, que tremeluzia pendente da chaminé.
— Ah! —
exclamou — é um menino. As roupas são de pessoa rica e ao
pescoço tem uma medalha! Hei-de levá-lo ao Sr. Abade
/ 10 / para
o baptizar e há-de chamar-se João, disse ela lembrando-se do
marido.
Já o Sol ia
alto no horizonte, quando a Ti Ana saiu em direcção à aldeia,
com o burro carregado de sacos, no meio dos quais aconchegou o
pequenino, que dormia embalado pelo andar cadenciado do burrito.
Nesse dia, no
povoado, não se falou noutra coisa, fazendo-se mil conjecturas.
Várias pessoas, entre as quais a Sr.ª Morgada, quiseram ficar
com o pequenino, mas a Ti Ana a todas respondia:
— Se Deus mo
enviou, devo ser eu quem fica com ele. No meu moinho há uma
cabrinha branca e farinha da mais fina para o sustentar. Olha
agora!
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Passou-se
algum tempo. João era agora um rapazinho de dez anos, que
frequentava a escola da aldeia, onde, pela sua inteligência e
bondade, era estimado por todos. Nas horas vagas ajudava a Ti
Ana, indo muitas vezes, ele próprio, distribuir a farinha pelos
fregueses. Certo dia, regressava da aldeia, já de noite, quando,
perto dele, sentiu o tropear dum cavalo. Tinha chovido muito nos
dias anteriores e os caminhos estavam escorregadios. O Ruço, a
quem eles eram familiares, ia-se mantendo; mas o cavalo, que
nessa altura subia um caminho estreito e pedregoso, escorregou e
caiu juntamente com o cavaleiro. João, que ia um pouco à frente,
voltou para trás e correu em seu auxílio muito aflito:
— O senhor
magoou-se muito?
O homem
gemia. Estava muito contuso. Com grande sacrifício, lá
conseguiu levantar-se auxiliado pelo pequeno, que dizia:
— Se pudesse
andar mais uns passos, descansaria no moinho e a minha mãe
trataria do senhor. O seu cavalo também se magoou, mas creio
que não tem nada partido. Não o pode conduzir, mas eu vou num
pulo levar os sacos ao moinho, que já se avista daqui e volto já
com o Ruço para o levar.
O senhor
agradeceu e ficou pensativo a olhar João, que subia agora o
último atalho. O rosto ensombrou-se-Ihe de melancolia.
— Deve ter
dez a doze anos. — murmurou. Que bondade e que inteligência!
Apesar das
dores que sentia, perdeu-se em não sei que
/ 11 / pensamentos
e, estava tão profundamente abstracto, que nem deu pela chegada
do pequeno, que o convidava já a subir para o burrito.
Depois de
muitos esforços, conseguiu montar e, daí a alguns minutos,
encontrava-se sentado diante duma tigela de caldo fumegante,
que a Ti Ana, depois de o tratar com os remédios caseiros de
que dispunha, lhe pusera na frente.
João comia a
seu lado e, depois de cear e dar as boas-noites à velha
moleira, dirigiu-se para o seu quarto, que, naquela noite,
partilharia com aquele senhor.
O
desconhecido entrou também no quarto e, quando João tirou a
jaqueta para se deitar e deixou a descoberto a medalha que
trazia sempre ao pescoço, soltou um grito. A moleira correu
aflita e sem pensar no que fazia, abriu rapidamente a porta e
viu o desconhecido abraçado ao pequeno, chamando-lhe «seu
querido filho». Ante o pasmo da velha, ele contou a sua
história:
Dez anos
antes, viera com sua família passar o Natal numa quinta, que
possuía algumas léguas distante dali. Sua mulher tinha nessa
altura um filhinho recém-nascido e queria baptizá-lo na mesma
igreja onde ela própria se baptizara.
Nessa noite,
porém, a criança fora-lhe roubada e, por mais esforços que
fizessem, não conseguiram encontrá-la. Sua mulher ia morrendo de
desgosto. Ele perdera o gosto pela vida, pois perdera a
esperança de jamais encontrar o seu filho. Agora porém, recebia,
passados dez anos, o recado dum ex-caseiro da quinta para que
fosse vê-lo. Encontrou-o moribundo, pedindo que lhe perdoasse,
pois fora ele quem lhe roubara o filho. Por incompetência e
falta de honestidade tinha sido despedido algum tempo antes e
jurara vingar-se. Por isso, quando viu a criança, foi a ela que
escolheu para vítima do seu ódio. Roubara pois o menino, mas,
não se achando com coragem para o matar, resolveu ir abandoná-lo
muito longe.
Era, pois, em
busca do seu filho, segundo as indicações do seu ex-caseiro, que
ele se encontrava nessa noite próximo do moinho. Quisera Deus
que fosse o seu próprio filho que o socorresse naquele
acidente.
Às
exclamações da velha Ana, que se lamentava por ir perder o seu
querido João, o senhor respondeu:
— Não se
aflija, porque a senhora irá connosco.
A Ti Ana,
entre o amor que tinha ao seu moinho e o que professava pelo seu
filho adoptivo, não hesitou.
Partiram
todos três, não esquecendo o velho Ruço, que tão activamente
tinha tomado parte na história.
Maria Júlia M. Gravato |