Excertos de "Memorial do Convento
“El-rei foi
a Mafra escolher o sítio onde há-de ser levantado o convento. Ficará
neste alto a que chamam da Vela, daqui se vê o mar, correm
águas abundantes e dulcíssimas para o futuro pomar e horta, que não
hão-de os franciscanos de cá ser menos que os cistercienses de Alcobaça
em primores de cultivo, a S. Francisco de Assis bastaria um ermo, mas esse era
santo e está morto. Oremos.” (“Memorial do Convento”, p. 89)
“Ai o dia
seguinte, passado que foi aquele novo susto de repetir-se a rajada de vento
do mar (…), ai o dia seguinte, retome-se a exclamação, dezassete de
novembro deste ano da graça de mil setecentos e dezassete, aí se
multiplicaram as pompas e as cerimónias no terreiro” ( para a bênção e
lançamento da primeira pedra do convento de Mafra) (p. 135-136)
“É uma
pedra só, por via destes e doutros tolos orgulhos é que se vai disseminando o
ludíbrio geral, com as suas formas nacionais e particulares, como esta de
afirmar nos compêndios e histórias, Deve-se a construção do convento de Mafra
ao rei D. João V por um voto que fez se lhe nascesse um filho, vão aqui
seiscentos homens que não fizeram filho nenhum à rainha e eles é que pagam o
voto, que se lixam, com perdão da anacrónica voz” (p. 243)
“(…) disse
Domenico Scarlatti ao padre, El-rei tem na sua tribuna uma cópia do da
basílica de S. Pedro de Roma que ontem armou na minha presença, foi para
mim grande honra, Com que a mim não me distinguiu nunca (…) , Dizem que El-rei é
um grande edificador, será por causa disso este seu gosto de levantar com as
suas próprias mãos a cabeça arquitectural da Santa Igreja, ainda que em
escala reduzida, Muito diferente é a dimensão da basílica que está a ser
construída na vila de Mafra, gigantesca fábrica que será o assombro dos
séculos” (p. 167)
“Em Pero
Pinheiro se construía o carro que haveria de carregar o calhau, espécie de
nau da Índia com rodas, isto dizia quem já o tinha visto em acabamentos e
igualmente puseram os olhos, alguma vez, na nau da comparação" (p.243)
"Seiscentos
homens agarrados desesperadamente aos doze calabres que tinham sido fixados na
traseira da plataforma (puxados por 200 juntas de bois), seiscentos homens que
sentiam com o tempo e o esforço, ir-se aos poucos a tesura dos músculos,
seiscentos homens que eram seiscentos modos de ser (…) e tudo por causa se
uma pedra que não precisaria de ser tão grande, com três ou dez mais
pequenas se faria do mesmo modo a varanda” (p. 259)
“Lembravam-se do caminho que descia para o vale de Cheleiros, aquelas
apertadas curvas, aqueles declives espantosos, aquelas empinadas
encostas que caíam a pique sobre a estrada, Como será que vamos passar,
murmuravam para si próprios” (p.256)
“Vai
Blimunda tomando nota do caminho na sua memória, aquele monte, aquela
mata, quatro pedras alinhadas, seis colinas em redondo, as vilas
como se chamam, foi Codeçal e Gradil, Cadriceira e
Furadouro, Merceana e Pena Firme, tanto andámos que chegámos,
Monte Junto, passarola” (p. 268)
“(…) tudo
quanto é nome de homem vai aqui, tudo quanto é vida também, sobretudo se
atribulada, principalmente se miserável, já que não podemos falar-lhes das vidas
por tantas serem, ao menos deixemos os nomes escritos, é essa a nossa
obrigação, só para isso escrevemos, torná-los imortais, pois aí ficam, se de nós
depende, Alcino, Brás, Cristóvão, Daniel, Egas, Firmino, Geraldo, Horácio,
Isidro, Juvino, Luis, Marcolino, Nicanor, Onofre, Paulo, Quitério, Rufino,
Sebastião, Tadeu, Ubaldo, Valério, Xavier, Zacarias, uma letra par cada um
para ficarem todos representados, nem todos estes nomes serão os próprios do
tempo e do lugar, mas, enquanto não se acabar quem trabalhe, não se acabarão os
trabalhos, e alguns destes estarão no futuro de alguns daqueles, à espera de
quem vier a ter o nome e a profissão (…) se Blimunda tivesse vindo à despedida
sem comer o seu pão, que vontade veria em cada um, a de ser outra coisa” (p.
244-245)
“Tantas
horas de esforço para tão pouco andar, tanto suor, tanto medo,
e aquele monstro de pedra a resvalar quando devia estar parado, imóvel
quando devia mexer-se, amaldiçoado sejas tu, mais quem da terra te mandou tirar
e a nós arrastar por estes ermos. Os homens deitam-se no chão, sem forças, ficam
arquejando de barriga para cima, olhando o céu que devagar vai escurecendo”
(p.256)
“Dormiram
ainda outra noite no caminho. Entre Pêro Pinheiro e Mafra gastaram oito
dias completos. Quando entraram no terreiro, foi como se tivessem chegado
duma guerra perdida, sujos, esfarrapados, sem riquezas. Toda a gente se admirava
com o tamanho desmedido da pedra, Tão grande. Mas Baltasar
murmurou olhando a basílica, Tão pequena” (p.266)
“Em
Mafra é noite quando chegam. Ardem fogueiras no alto da Vela. Se as
chamas se alongam e alargam, vêem-se as paredes da basílica, irregulares,
os nichos vazios, os andaimes, os buracos negros das janelas, mais ruína
que construção nova, é sempre assim quando se ausenta o trabalho dos homens”
(p.273)
“Sabia já
Baltasar que o sítio onde se encontrava era conhecido pelo nome de Ilha da
Madeira, e bem posto lhe fora, porque, tirando umas poucas casas de pedra e
cal, todo o mais era de tabuado, mas construídas para durar”. (p.215)
“Enfim,
chegou o mais glorioso dos dias, a data imorredoira de vinte e dois de
outubro do ano da graça de mil setecentos e trinta, quando el-rei D. João V
faz quarenta e um anos e vê sagrar o mais prodigioso dos monumentos que em
Portugal se levantaram, ainda por acabar, é verdade, mas pela catadura se
conhece o catacego” (p. 352)
"A festa
continuará, oito são os dias da sagração e este é o primeiro.
Blimunda disse aos cunhados, Já volto. Desceu a ladeira para a vila deserta.
Durante nove anos, Blimunda procurou Baltasar” (p. 354-355).
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“Ah, se as pessoas soubessem o trabalho que me deu […] o
primeiro parágrafo do ‘Memorial’!” (J. Saramago, “ Cadernos de Lanzarote” I)
Depois de ter tido a ideia para a componente fabulosa do
romance e de ter investigado sobre a época, Saramago alugou um quarto defronte
do convento. “Para o tipo de literatura que faço, considero fundamental esse
contacto, esse por a mão sobre os locais que vou tratar. Mafra é um pouco como
as nossas pirâmides do Egipto. Chegaram a trabalhar nas suas obras 400 mil
pessoas.”
Surgido em 1982, “Memorial do Convento” foi adaptado a uma
ópera (“Baltasar e Blimunda”) pelo compositor italiano Azio Corghi; Joaquim
Benite encenou-o no Trindade; Hollywood ofereceu 100mil contos pelos direitos de
autor, que Saramago recusou.
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Mafra : do turânico Mahara } Mahfara
(1147, aquando da conquista aos mouros) } Mafara (1199) } Mafora
(1288).
Vila dominada pelo vasto monumento que incorpora um convento,
um palácio real e uma basílica.
Tem 40.000 m2 a área ocupada pelo edifício que levou 38 anos
a construir; possui 2 torreões, 2 carrilhões de 114 sinos cada, que chegam a
ouvir-se a 15 Km de distância, 6 órgãos únicos no mundo, cerca de 880 divisões,
300 células de monges.
Existem 40.000 livros na biblioteca, encadernados a ouro e a
couro.
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