Uma imagem com história

Na manhã do dia 22 de Dezembro de 1972, uma sexta-feira, levantei-me e fui tomar o pequeno-almoço no quartel. Encontrava-me por esta altura em intervenção no Grafanil. Tinha dois rolos de fotografias que precisavam de ser revelados. Para não ir sozinho a Luanda, procurei dois colegas e desafiei-os para irem comigo.

– Vamos, mas com uma condição. – disseram eles.

– Qual? – Perguntei, um tanto intrigado.

No Mussulo, em 22 de Dezembro de 1972.

– Assinas-nos as dispensa, para podermos ir à civil.

– Está bem. Mas já sabem: se forem apanhados, é melhor dizer que não têm dispensa. Eu não sei de nada. Não estou para me lixar por causa disso.

O comandante de companhia só assinava 15 dispensas à civil por dia. No controlo de entrada e saída, na porta de armas, não estava malta nossa. No entanto, comecei a assinar as dispensas. A malta admirava-se como é que eu saía todos os dias à civil. Daí alguns me pedirem para assinar as dispensas.

Chegámos a Luanda. Fui entregar os rolos para revelar na “FOTO RESTAURADORES”, na Avenida dos Restauradores, perto do Restaurante AMAZONAS. Conversa puxa conversa, o tempo foi passando e a barriga começou a dar-nos sinal:

– E se fôssemos almoçar ao ESCONDIDINHO?

Todos concordámos e abancámos, melhor dizendo, dispensámos o balcão e fomo-nos sentar numa mesa disponível. Inspeccionámos a ementa. Decidi escolher um prato que nunca experimentara: chocos com tinta. Uma maravilha! Uma tinta que escorria bem, auxiliado por um tinto não menos saboroso.

– E se fôssemos até ao Mussulo? – alvitrou um dos meus parceiros.

Todos em sintonia, como os três mosqueteiros, deixámos o restaurante, apanhámos o transporte para a ilha, tomámos o barco que faz a travessia e eis-nos num local quase paradisíaco.

Passeámos, brincámos, beberam-se mais uns copos acompanhados com algum marisco e fomos tirando fotos para mais tarde recordar. Durante a sessão fotogénica, duas moças que andavam à beira-mar meteram conversa por causa dos calções:

– Tens uns calções muito giros. É moda nova?

Não sei se estavam no gozo ou a falar com sinceridade. Mas pouco importa. A verdade é que a conversa pegou, mais fotos foram tiradas, agora com outros motivos mais atraentes do que nós próprios e, quase sem darmos por isso, começávamos a ficar com uma noite programada sem programa prévio. Mas... E os 150 escudos necessários para cada um de nós poder passar a noite no apartamento delas, lá para os lados da Rotunda da Maria da Fonte? Onde é que os íamos buscar? O dinheiro era pouco! Por muito que ele ficasse teso, tesos já nós estávamos, porque o metal sonante não nos nasce nos bolsos. Para não ficarmos mal vistos, a solução foi arranjar uma boa desculpa:

– Bem que gostaríamos de passar um serão agradável convosco. Eu até estou de folga. Mas estes meus dois camaradas têm que entrar ao serviço ao fim da tarde. O melhor é combinarmos um encontro para um destes dias em que tenhamos um fim de semana sem serviço. Quando é que nos podemos encontrar novamente?

– Andamos por aqui todos dias. – Disseram elas. Apareçam quando quiserem. Estamos sempre por aqui, a menos que nos surja algum compromisso.

Regressámos a Luanda. Durante a viagem, não falávamos noutra coisa: um serão gorado por tesura na carteira. Para compensar, resolvemos ir até ao B. O., o Bairro Operário, jantar no restaurante Floresta, junto ao mercado da Maria da Fonte.

– Não vamos pela Avenida dos Combatentes. – Disse um dos meus companheiros. O melhor é seguirmos por trás. É uma rua paralela à Avenida.

Durante o percurso, fizemos uma paragem para beber um canhangulo. Entrámos num bar e ficámos na conversa. O dono era simpático, sociável. Tal como eu, tinha estado em Lisboa, em Carnide. Um dos meus camaradas era da Amadora. De modo que a conversa foi esticando cada vez mais. Bebido um canhangulo, outros se lhe foram seguindo. O dono do bar colocou mais aperitivos na mesa, oferta da casa. No final, quase na hora de regressar ao quartel, pedimos a conta:

– Já se vão embora? Deixem-se estar mais um pouco. A minha Senhora está a fazer uma dobradinha à moda do Porto. De certeza que vocês vão gostar.

Como resistir a semelhante convite?

A confraternização prolongou-se de tal maneira, que já não havia sede, nem vontade de ir ao B. O. O colega que alvitrara a ida até ao Bairro Operário, de olhos vermelhos e já sob o efeito da bebida, depois de bem comidos e melhor bebidos, lembrou-se subitamente do destino que tínhamos traçado.

– O quê? Ir agora para o Bairro Operário? Com os estômagos cheios de feijoada e bebida? O que é que lá vamos fazer? Tu já estas é com uma valente pedrada! O melhor é irmos para o quartel. Amanhã voltamos a dar outra volta.

Todos concordaram comigo. Todavia, o pior é que também eu comecei a ficar mal disposto e com suores, com vontade de chegar ao quartel o mais depressa possível. Deixámos o bar e agradecemos a gentileza dos donos do bar, que nos ofereceram uns momentos agradáveis e nada nos cobraram.

Na paragem do maximbombo, comecei a ficar seriamente preocupado comigo, não só  por causa da má disposição e suores, mas sobretudo porque mais pessoas se estavam a juntar na paragem. E, pior que tudo, podia aparecer uma brigada da P.M. e pedir-nos a identificação. Felizmente, chegou o maximbombo. Embarcámos com alguma dificuldade, porque as portas pareciam estar duplicadas. E chegámos ao Grafanil.

Fui tomar banho e lavar os calções e a toalha de praia, aproveitando a água do banho, para lhes retirar o salitre. Com esforço, fiz a lavagem, porque continuava a não me sentir bem. Os chocos com tinta, certamente, andavam-me ainda no estômago a escrever algum desarranjo intestinal. A custo, mal podendo andar, fui à enfermaria. Contei ao enfermeiro de serviço o que se passava.

– Qual chocos, qual carapuça! Tu estás é com paludismo. Tens 39,8 de febre.

Acordei no outro dia, pelas oito horas do dia 23 de Dezembro. Acordei e vi os meus calções e a toalha pendurados nos ferros da cama. Ao vê-los, vieram-me todas as imagens do dia anterior: como é possível estar na Enfermaria, quando podia ter passado uma noite em beleza? E para não mais me esquecer, acabei por passar o Natal de 1972 numa Enfermaria.

Mário Silva

 

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