| 
     
    – Assinas-nos as 
    dispensa, para podermos ir à civil. 
    
    – Está bem. Mas já sabem: 
    se forem apanhados, é melhor dizer que não têm dispensa. Eu não sei de nada. 
    Não estou para me lixar por causa disso. 
    
    O comandante de companhia 
    só assinava 15 dispensas à civil por dia. No controlo de entrada e saída, na 
    porta de armas, não estava malta nossa. No entanto, comecei a assinar as 
    dispensas. A malta admirava-se como é que eu saía todos os dias à civil. Daí 
    alguns me pedirem para assinar as dispensas. 
    
    Chegámos a Luanda. Fui 
    entregar os rolos para revelar na “FOTO RESTAURADORES”, na Avenida dos 
    Restauradores, perto do Restaurante AMAZONAS. Conversa puxa conversa, o 
    tempo foi passando e a barriga começou a dar-nos sinal: 
    
    – E se fôssemos almoçar 
    ao ESCONDIDINHO? 
    
    Todos concordámos e 
    abancámos, melhor dizendo, dispensámos o balcão e fomo-nos sentar numa mesa 
    disponível. Inspeccionámos a ementa. Decidi escolher um prato que nunca 
    experimentara: chocos com tinta. Uma maravilha! Uma tinta que escorria bem, 
    auxiliado por um tinto não menos saboroso.  
    
    – E se fôssemos até ao 
    Mussulo? – alvitrou um dos meus parceiros. 
    
    Todos em sintonia, como 
    os três mosqueteiros, deixámos o restaurante, apanhámos o transporte para a 
    ilha, tomámos o barco que faz a travessia e eis-nos num local quase 
    paradisíaco. 
    
    Passeámos, brincámos, 
    beberam-se mais uns copos acompanhados com algum marisco e fomos tirando 
    fotos para mais tarde recordar. Durante a sessão fotogénica, duas moças que 
    andavam à beira-mar meteram conversa por causa dos calções: 
    
    – Tens uns calções muito 
    giros. É moda nova? 
    
    Não sei se estavam no 
    gozo ou a falar com sinceridade. Mas pouco importa. A verdade é que a 
    conversa pegou, mais fotos foram tiradas, agora com outros motivos mais 
    atraentes do que nós próprios e, quase sem darmos por isso, começávamos a 
    ficar com uma noite programada sem programa prévio. Mas... E os 150 escudos 
    necessários para cada um de nós poder passar a noite no apartamento delas, 
    lá para os lados da Rotunda da Maria da Fonte? Onde é que os íamos buscar? O 
    dinheiro era pouco! Por muito que ele ficasse teso, tesos já nós estávamos, 
    porque o metal sonante não nos nasce nos bolsos. Para não ficarmos mal 
    vistos, a solução foi arranjar uma boa desculpa: 
    
    – Bem que gostaríamos de 
    passar um serão agradável convosco. Eu até estou de folga. Mas estes meus 
    dois camaradas têm que entrar ao serviço ao fim da tarde. O melhor é 
    combinarmos um encontro para um destes dias em que tenhamos um fim de semana 
    sem serviço. Quando é que nos podemos encontrar novamente? 
    
    – Andamos por aqui todos 
    dias. – Disseram elas. Apareçam quando quiserem. Estamos sempre por aqui, a 
    menos que nos surja algum compromisso. 
    
    Regressámos a Luanda. 
    Durante a viagem, não falávamos noutra coisa: um serão gorado por tesura na 
    carteira. Para compensar, resolvemos ir até ao B. O., o Bairro Operário, 
    jantar no restaurante Floresta, junto ao mercado da Maria da Fonte. 
    
    – Não vamos pela Avenida 
    dos Combatentes. – Disse um dos meus companheiros. O melhor é seguirmos por 
    trás. É uma rua paralela à Avenida. 
    
    Durante o percurso, 
    fizemos uma paragem para beber um canhangulo. Entrámos num bar e ficámos na 
    conversa. O dono era simpático, sociável. Tal como eu, tinha estado em 
    Lisboa, em Carnide. Um dos meus camaradas era da Amadora. De modo que a 
    conversa foi esticando cada vez mais. Bebido um canhangulo, outros se lhe 
    foram seguindo. O dono do bar colocou mais aperitivos na mesa, oferta da 
    casa. No final, quase na hora de regressar ao quartel, pedimos a conta: 
    
    – Já se vão embora? 
    Deixem-se estar mais um pouco. A minha Senhora está a fazer uma dobradinha à 
    moda do Porto. De certeza que vocês vão gostar. 
    
    Como resistir a 
    semelhante convite? 
    
    A confraternização 
    prolongou-se de tal maneira, que já não havia sede, nem vontade de ir ao B. 
    O. O colega que alvitrara a ida até ao Bairro Operário, de olhos vermelhos e 
    já sob o efeito da bebida, depois de bem comidos e melhor bebidos, 
    lembrou-se subitamente do destino que tínhamos traçado. 
    
    – O quê? Ir agora para o 
    Bairro Operário? Com os estômagos cheios de feijoada e bebida? O que é que 
    lá vamos fazer? Tu já estas é com uma valente pedrada! O melhor é irmos para 
    o quartel. Amanhã voltamos a dar outra volta. 
    
    Todos concordaram comigo. 
    Todavia, o pior é que também eu comecei a ficar mal disposto e com suores, 
    com vontade de chegar ao quartel o mais depressa possível. Deixámos o bar e 
    agradecemos a gentileza dos donos do bar, que nos ofereceram uns momentos 
    agradáveis e nada nos cobraram. 
    
    Na paragem do maximbombo, 
    comecei a ficar seriamente preocupado comigo, não só  por causa da má 
    disposição e suores, mas sobretudo porque mais pessoas se estavam a juntar 
    na paragem. E, pior que tudo, podia aparecer uma brigada da P.M. e pedir-nos 
    a identificação. Felizmente, chegou o maximbombo. Embarcámos com alguma 
    dificuldade, porque as portas pareciam estar duplicadas. E chegámos ao 
    Grafanil.  
    
    Fui tomar banho e lavar 
    os calções e a toalha de praia, aproveitando a água do banho, para lhes 
    retirar o salitre. Com esforço, fiz a lavagem, porque continuava a não me 
    sentir bem. Os chocos com tinta, certamente, andavam-me ainda no estômago a 
    escrever algum desarranjo intestinal. A custo, mal podendo andar, fui à 
    enfermaria. Contei ao enfermeiro de serviço o que se passava.  
    
    – Qual chocos, qual 
    carapuça! Tu estás é com paludismo. Tens 39,8 de febre. 
    
    Acordei no outro dia, 
    pelas oito horas do dia 23 de Dezembro. Acordei e vi os meus calções e a 
    toalha pendurados nos ferros da cama. Ao vê-los, vieram-me todas as imagens 
    do dia anterior: como é possível estar na Enfermaria, quando podia ter 
    passado uma noite em beleza? E para não mais me esquecer, acabei por passar 
    o Natal de 1972 numa Enfermaria. 
    
    Mário Silva  |