Acampamento no Canacassala, em Janeiro de 1973.
O local
onde, de 4 a 21 de Janeiro de 1973, a Força de Intervenção (FI) instalou a
sua base provisória tinha sido uma criteriosa e excelente escolha
estratégica. Situava-se no cimo de um enorme morro, perto da antiga ponte
sobre o rio Onzo e junto da famigerada e perigosa picada “Via Láctea”, que
saía de Nambuangongo, a cerca de 180 kms a norte de Luanda, e se embrenhava
sinuosa e caprichosamente algumas dezenas de quilómetros pela majestosa,
agreste e selvagem floresta dos Dembos. Era uma zona muito acidentada, de
difícil acesso e com florestas virgens impressionantes, que cobriam de um
manto verde a perder de vista os vales que serpenteavam os morros.
Era
algures no seio desta medonha, misteriosa e densa mata, aproveitando-se das
excelentes e únicas condições de refúgio que lhes proporcionava, que o
Movimento Popular para a Libertação de Angola (MPLA) tinha instalado, desde
há algum tempo, o quartel-general da 1ª Região Militar. Daqui saíam os seus
astutos e destemidos guerrilheiros para montar minas, emboscadas e ataques
aos aquartelamentos das nossas tropas, disseminados por esta vasta e remota
região.
Ao
contrário das tropas de quadrícula, que apenas actuavam e tinham sobre a sua
responsabilidade as zonas onde estavam instaladas, a FI encontrava-se
baseada em Luanda, donde saía por períodos de duas a três semanas para
qualquer local do norte de Angola onde o inimigo estivesse mais activo e
agressivo. Efectuava vários tipos de acções, desde emboscadas a golpes de
mão, destruição de bases inimigas, e também nomadizações, que consistiam no
patrulhamento apeado de determinadas zonas, para procurar indícios da
guerrilha e criar instabilidade nas suas tropas. Findas estas difíceis e
extenuantes operações, regressava a Luanda e aí recuperava da intensa
actividade operacional a que fora sujeita.
O Batalhão
de Caçadores 3848 era constituído pela Companhia de Comandos e Serviços (CCS)
e três companhias operacionais: os Escorpiões, os Carolas e os Panteras, que
tinham adquirido uma vasta e inigualável experiência operacional durante os
dezasseis longos meses passados como tropa de quadrícula na conturbada
região de Nambuangongo, uma zona de guerra por excelência.
Agora,
estas três companhias estavam acampadas na nova base de Canacassala, onde,
nos últimos dias, vinham desencadeando várias operações de nomadização,
emboscadas e golpes de mão às bases IN com o intuito de aliviar a pressão
que o MPLA estava a exercer na zona.
A
derradeira e mais desgastante operação estava reservada para Os Carolas.
Tinha como objectivo assaltar e destruir as bases IN referenciadas e
prosseguir em nomadização até ao aquartelamento da Beira Baixa, onde seriam
recolhidos para regressarem em coluna a Luanda.
Aproveitando-se da escuridão protectora da noite, Os Carolas saíram, levando
à frente como guia um homem natural da zona e elemento de um dos Grupos
Especiais de tropas nativas, os GEs, como eram habitualmente conhecidos.
Com cerca
de trinta anos, aparentando boa robustez física, o nosso guia GE envergava
uma farda exactamente igual à nossa, ou seja, camuflado, boné e botas para
todo o terreno. Na cara brilhavam-lhe dois olhos inteligentes e perspicazes
e uns dentes brancos como a cal, que contrastavam coma cor escura da pele. A
meio da testa, sobressaía uma profunda cicatriz provocada por um ferimento
de bala. De mãos fortes e calejadas, segurava numa a espingarda
metralhadora, enquanto com a outra empunhava a catana, com que ia cortando o
labiríntico emaranhado de lianas e outros arbustos que lhe surgiam no
caminho. Abria desta forma um estreito e apertado túnel, por onde, em fila
indiana e no maior silêncio, íamos progredindo lentamente. A meio da fila
onde me encontrava, o silêncio era apenas quebrado pelo leve ruído das botas
que pisavam as folhas secas.
Teria sido
muito menos extenuante e cansativo avançar pelos trilhos existentes na mata,
se isso não fosse perigoso e arriscado, porque eram propícios a emboscadas,
a minas escondidas e outras perigosas armadilhas. Apesar da enorme tentação
em os utilizarmos, o bom senso impunha-nos o sacrifício e a segurança: a
abertura de novos trilhos nunca antes utilizados através de uma densa,
misteriosa e quase impenetrável selva. Além do mais, ainda estava fresco na
nossa memória o enorme buraco provocado por um desses temíveis e traiçoeiros
engenhos, que, dias antes, levara a perna a um camarada nosso.
Caminhávamos há já alguns dias de armas aperradas, olhos e ouvidos sempre
atentos, através da imensa e enigmática floresta tropical, que nos impunha
respeito e nos fazia sentir pequenos e insignificantes. Procurávamos sempre
movimentar-nos com a maior celeridade possível, mas sem nunca descurarmos as
precauções e o silêncio, para evitar sermos referenciados. Até porque o
inimigo era astuto, destemido e profundo conhecedor da floresta. E também
ele mostrava grande mobilidade e agressividade, flagelando constantemente e
com dureza as nossas forças. Daí que o medo da morte, o inimigo, a fome, a
sede e o cansaço, constituíam verdadeiros desafios às nossas capacidades de
resistência, jovens soldados tornados guerrilheiros pelas circunstâncias e
endurecidos por mais de vinte meses de guerra no mato angolano. Este oceano
de imensas dificuldades era agravado pelo receio constante de sofrermos
alguma baixa no interior de uma floresta virgem e inacessível, onde seria
impossível proceder a qualquer evacuação. E também não seria tarefa fácil
carregar com os mortos ou feridos às costas. Tudo isto contribuía para
aumentar a angústia e ansiedade, aumentando-nos o desejo de sairmos daqui o
mais rapidamente possível.
A
progressão tornava-se cada vez mais penosa, difícil e extenuante. A luz
solar penetrava com dificuldade por entre a intrincada vegetação. O odor das
folhas putrefactas inebriava-nos. Pequenos mosquitos entravam-nos pelos
olhos, nariz e boca, deixando um desagradável e repugnante sabor amargo. O
calor e a humidade colava-nos à pele o camuflado já rasgado, sujo e com um
cheiro nauseabundo e asqueroso.
Durante
esta terrível, árdua e espinhosa odisseia, entrámos por duas vezes no
interior de bases militares IN que, por razões de ordem táctica, se
encontravam afastadas da base principal e funcionavam como unidades de
defesa alargada. Aqui, a vegetação rasteira fora retirada, ficando apenas as
árvores de grande porte que, com as frondosas e espessas copas, evitavam que
estas fossem referenciadas pela aviação.
Tudo
indiciava que os ocupantes as tinham abandonado de forma precipitada e
brusca ao pressentirem a nossa chegada, porque o lume estava ainda aceso e
livros e vários utensílios encontravam-se espalhados pelo chão ou em cima
das mesas.
Dentro
destas bases ficávamos vulneráveis. As balas assobiavam e cantavam a morte
sobre as nossas cabeças, porque o IN mantinha-se oculto na mata circundante,
observando-nos e reagindo com intensidade e violência. Sob esta sensação
indescritível de hecatombe destruidora, avançávamos costas com costas,
disparando e correndo em busca da protecção da mata. Era crucial e imperioso
abandonar rapidamente estes locais onde reinava o medo, o terror e a morte,
onde o perigo nos espreitava constantemente, não nos dando sequer tempo ou
oportunidade de proceder à destruição destas bases disseminadas na selva.
Ao quinto
dia de progressão, já bastante debilitados pela fome e pela sede,
extremamente cansados, já inclusive distanciados uns dos outros na fila,
começámos a sair do imenso verde desta floresta hostil, adversa e
infindável. Porém, o inimigo dava-nos as boas vindas ao espaço aberto e ao
tórrido sol Africano. Foram momentos de ansiedade terrível e indescritível
com as balas mais uma vez a entoarem a sinfonia da morte.
O IN
utilizava metralhadoras pesadas com um matraquear sepulcral, rouco e
cavernoso, e as irritantes costureirinhas com aquele estampido metálico,
enervante e contundente, e com as suas rajadas cadenciadas e irritantes, que
ficaram para sempre na memória de todos os que tiveram a malfazeja sorte de com
elas se confrontarem no palco da guerra colonial, fazendo-nos recordar as
máquinas de costura das nossas mães na longínqua e saudosa metrópole.
Através do
capim que nos feria as mãos, deixando-as em sangue, e nos dava pelo peito,
rastejando com grande sofrimento, alcançámos ilesos a segurança precária dum
alto morro, onde rapidamente montámos um círculo de segurança e ficámos em
posição mais vantajosa em relação ao astucioso e matreiro inimigo.
Durante
esta longa, tenebrosa e aterradora epopeia, tínhamos penetrado profundamente
em território IN e efectuado um desvio bastante acentuado do itinerário
previsto. Foi quando o nosso guia confessou estar perdido. Não fora a
utilização das comunicações pela rádio, dificilmente alcançaríamos uma zona
para recolha do pessoal. Pouco depois da comunicação com a sede, tivemos a
ajuda de um heli-canhão, que nos ajudou a referenciar a nossa posição.
Encontrávamo-nos a seis dias de marcha do quartel mais próximo. Mas a sua
acção não se limitou à nossa referenciação no espaço operacional. Antes de
regressar à base, contribuiu para pôr o inimigo temporariamente em
debandada. Fomos também informados, via rádio, de que o plano de operações
não incluía uma possível evacuação, devido à escassez de meios aéreos, e
que, depois de reabastecidos de ração de combate e água, teríamos que
prosseguir a marcha. Uma tarefa, sem dúvida, quase impossível de
concretizar, dadas as depauperadas e extenuantes condições físicas em que
nos encontrávamos.
No cume de
um aterrador e apavorante morro, livres de surpresas desagradáveis, mas sem
a protecção das copas da vegetação angolana, sem comida, sem água e bastante
debilitados pelas agruras do clima, estávamos a ser violentamente fustigados
pelo escaldante, abrasador e sufocante sol africano e, pior ainda, cercados
por um inimigo inclemente e cada vez mais belicoso, hostil, forte e
destemido. Tudo contribuía para nos colocar num feixe de nervos e com a
nossa já bastante fragilizada resistência física e psicológica cada vez mais
em baixo. O nosso aspecto estava longe de ser o melhor: barbas por fazer,
camuflados rotos, cobertos de lama e com um cheiro pestilento, muito pior
que um bando de salteadores. Éramos um flagrante contraste. De um lado,
aquela paisagem edílica, verde e luxuriante aos nossos pés; do outro, um
grupo completamente estoirado e a necessitar urgentemente de um revigorante
repouso. E a situação a degradar-se cada vez mais, Mas, quando o desespero
parecia ser a nossa situação das próximas horas ou talvez dias, recebemos
pela rádio a melhor informação: dentro de poucas horas, os helicópteros da
força aérea efectuariam a evacuação de todo o pessoal.
Recebida a
notícia, os nossos olhares deixaram de admirar o vasto oceano verde que se
espraiava à volta do morro, para começarem a esquadrinhar ansiosamente a
linha do horizonte. E respirámos de alívio quando do nada se começaram a
vislumbrar, a uma distância razoável, três pontos negros que aumentavam
progressivamente e desapareciam por detrás de um ou outro morro, para logo
voltarem a aparecer “rapando” a colina seguinte. Não havia dúvidas! Ali
estavam os helicópteros que nos vinham socorrer.
O ruído
tornou-se ensurdecedor. O heli-canhão descrevia círculos por sobre as nossas
cabeças, fazendo fogo sobre o inimigo próximo, que de imediato bateu em
retirada, dispersando-se em fuga no meio do mato. Então, à vez, os dois
helis mais pequenos, equipados com duas macas, uma de cada lado, deram
início à evacuação, começando pelos mais debilitados, enquanto o restante
pessoal procurava manter a segurança. Ao fim de algum tempo, com o apoio de
helicópteros com maior capacidade, os Pumas, que tão relevantes serviços
prestaram , terminava uma operação desgastante de seis dias consecutivos em
plena selva angolana.
Não foi
aqui narrado um décimo do sofrimento e aflição por que passaram os jovens
soldados de vinte anos, durante esta árdua, penosa e fatigante odisseia, em
que, na primavera da vida, se viram atirados para o lodaçal de uma
desmerecida, injusta e cruel guerra.
Já em
Luanda, fomos todos sujeitos a várias juntas médicas, que atribuíram a
inoperacionalidade a 92% dos intervenientes desta operação e preconizaram
também um considerável número de medidas a serem implementadas durante um
período de 22 dias, para debelar a crise.
No final
deste período, todo o pessoal foi sujeito a uma nova junta médica, a 15 de
Fevereiro de 1973, a qual definitivamente determinou que o Batalhão de
Caçadores 3848, «O excelente e valoroso» fosse ingloriamente considerado
inoperacional.
A 27 de
Fevereiro de 1973, iniciou-se a deslocação da CCS e das diferentes
companhias, ou seja, a C. Caç. 3386 (Os Carolas) e C. Caç. 3387 (Os
Escorpiões) para os confins do sertão angolano, bastante distantes da zona
de guerra, onde permanecemos na paz dos Deuses até ao final da comissão.
M. Aldeias
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