Os Malefícios do Álcool (1)

 

 PERSONAGENS

 

CONFERENCISTA — coco, sobretudo, óculos escuros, bengala, rolo enorme de papel com o discurso, enrolado debaixo do braço, e uma garrafa no bolso.

 

ESPECTADOR — um elemento sentado na frente, no lugar dos espectadores.

 

MULHER DO CONFERENCISTA — Vestida de preto, óculos pequenos arredondados.

 

 

 

CONFERENCISTA (Entra na sala, aparvalhado e cambaleante. Pára, reflecte, e dirige-se a um espectador) — É aqui que vai haver uma conferência?

 

ESPECTADOR — É sim! Mas ainda não chegou o conferencista. Estamos à espera dele...

 

CONFERENCISTA — O conferencista sou eu. (Sempre empertigado, dirige-se para o palco e ocupa o lugar em frente aos espectadores. Assoa-se, fazendo uma grande barulheira, pigarreia, pega no enorme rolo com o discurso e desenrola-o, lentamente, patenteando diante do público uma longa tira de papel. Após uma breve pausa, olha atentamente toda a plateia. Toma uma pose solene e inicia o discurso). Estimadas damas e estimados cavalheiros. (Uma breve pausa) Peço desculpa por ter chegado um pouco atrasado. (Outra pausa, parecendo que está a pensar numa desculpa) À última hora, tive de fazer certas alterações no discurso que tinha composto. (Outra breve pausa) Tive que fazer certas alterações, pois pretendo analisar e desenvolver concretamente o tema que me foi indicado pela minha mulher. O tema é este: «Os malefícios do álcool». Vou-o abordar pelo método técnico-científico, ou não será muito científico, mas que tenha cariz de o ser, assim me foi imposto pela minha mulher.

Um tema destes, pelas suas características, obrigar-me-á a abordar as suas muitas e complexas vertentes, umas positivas e outras negativas, concernentes ao problema do álcool, como aliás acontece com todos os problemas — com os seus prós e contras, o verso e o reverso.
(Vai espreitar a ver se vê a mulher) Ainda lá não vem... E permitam-me um desabafo: eu estou aqui por exigência da minha mulher, a Gertrudes...

 

ESPECTADOR — A beata?

 

CONFERENCISTA — Sim. É essa. Aquela que está à frente da Liga de Emancipação Feminina. E acha que o álcool — o vinho, sim, o vinho — é o motivo principal que leva o homem a ser em casa um ditador. Que eu, pobre de mim, nunca fui um ditador... agora ditador... tá bem, tá bem!... ela até me bate quando vê nódoas de vinho na camisa e chama-me nomes: seu porco sujo, seu borracho, seu sebento, seu mal-amanhado... Eu sei lá quantos nomes me chama! É bem verdade que com a idade e a falta de dentes, deixo pingar vinho na roupa... (à parte) Ouço passos. Será ela?

 

ESPECTADOR — Não. Esteja descansado... Eu aviso, se ela aparecer.

 

CONFERENCISTA — Já tenho a boca seca (Bebe, arrota. De cada vez que bebe uma golada, solta um «ah!» prolongado) Bem, vamos ao discurso. Como ia dizendo, o tema da conferência é o vinho... O vinho e os seus derivados. Como todos sabem, o vinho é uma bebida feita de fruta, da uva da videira, planta originária do Oriente, da família das vitácias, que o botânico Lineu sincopou para vitis e a que os gauleses chamam champanhe, não sei porquê!

 

ESPECTADOR — Oh, gentes, isto é que é saber!...

 

CONFERENCISTA — Se duvidam, leiam a enciclopédia... (conferencista tira papeis de um bolso, vira-os e revira-os, selecciona um e mostra-o aos assistentes) Estão a ver? Tenho aqui a fotocópia. Está aqui. (Vira a folha para o público) Estão a ver? Nas enciclopédias encontra-se tudo o que é preciso saber. Voltando ao assunto: nem toda a videira é de casta vitis pura! Não! Nas videiras, tal como nas famílias humanas, há filhos legítimos e filhos ilegítimos. A propósito: o vinho aqui é de Cacia. É muito ácido. (Tira um frasco pequeno de um bolso e leva-o à boca) Brrr... Este é cá da zona. Brrr!!! É muito ácido e de baixo grau. Uma zurrapa, criada no areal diluviano... Não tem espírito, nem alma! Só serve para a chanfana, para a célebre caçoila-de-cabra, por alturas do S. Bartolomeu de Sarrazola. Mas bebe-se, quando não há mais nada! Que remédio! Senão passa-se sede.


(Uma pequena pausa. Olha para a assistência e retoma, segundos depois, a conferência)


É o prato típico daqui, a chanfana, não o vinho. A chanfana daqui é o prato mais pitéu! Olaré, se é! É o prato mais típico da gastronomia regional... Embora tenhamos a saborosa sardinha assada na telha, os merendeiros do borralho e os apetitosos pratos de robacos, cozinhados em Janeiro, com cebola e um ramo de salsa a enfeitar... Tão gostosos, que o povo até diz: «robacos em Janeiro, sabem a carneiro»! (Breve pausa. Tira do bolso uma garrafa pequena e bebe-lhe um golo. Um grande arroto e retoma a conferência)

Mas eu estava a falar do vinho de Cacia. Esta zurrapa só serve para a chanfana. Se este fosse o vinho servido na Ceia de Cristo, nunca o divino Mestre o gabaria como gabou naquele célebre convívio de bons companheiros.

O vinho, o bom, é uma bebida saudável.
(Tira novamente a garrafa do bolso e dá-lhe uma golada. Após um arroto sonoro) É uma bebida saudável. Tão boa que... Lá vai mais um golo, à vossa saúde.

 

ESPECTADOR — Cuidado! Olha a Gertrudes.

 

MULHER DO CONFERENCISTA (De rolo da massa no ar, vociferando ao encontro do conferencista, que lhe foge andando à volta da mesa)Ah, porco sujo, borrachão! Anda cá, meu malandro, que eu já tas canto! Porco sujo, borrachão, que mas vais pagar! Não fujas, malandro, que lá em casa levas mais, meu safardana...

 

             (Saem, ela atrás dele, aos berros, e ele a gritar ai, ai, ai. E fenece a peça.)

Bartolomeu Conde, Julho de 2005.

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(1) - Bartolomeu Conde, Os Malefícios do Álcool (arremedo inspirado no monólogo de Anton Tchekov «Os Malefícios do Tabaco»).
 

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