O RIO NOVO DO
PRÍNCIPE
CAUSAS E
VANTAGENS DA SUA CONSTRUÇÃO EM 1815
Figura A - Canal
que liga o Vouga à Ria de Aveiro. |
I — O CANAL que
serve de leito ao Rio Vouga na parte final do seu curso — e que dá
pelo nome de RIO NOVO DO PRÍNCIPE — tem um comprimento aproximado
de cinco quilómetros, ligando o MURÇAINHO (Sarrazola) à CALE DO
ESPINHEIRO, na RIA DE AVEIRO, onde é actualmente a FOZ DO VOUGA,
vulgarmente conhecida por BOCA DO RIO.
Começa, no seu
início, por uma largura de sessenta e dois metros, medida que se
mantém por uns três quilómetros, até acabar na FOZ por uma ampla
desembocadura de cento e vinte e dois metros (Fig. A)
II — Antes deste canal ser aberto (1815), o
Vouga, no Murçainho, tomava o sinuoso caminho do chamado RIO VELHO
até desaguar na antiga Foz, já em terras marinhoas, no chamado
Bico da Murtosa. Em épocas de “grandes cheias” — que as houve[I]
antes da abertura definitiva da NOVA BARRA DE AVEIRO —, o RIO
VELHO não tinha cava suficiente para dar rápida vazão às grandes
enxurradas vindas da serra e dos rios que afluem ao Vouga na
última etapa.
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III — A BARRA, por seu lado, e até então na
sua caprichosa e ambulante localização (Fig. B), obrigava a
encerramentos temporários da RIA, com a natural e consequente
retenção de lixos, e putrefacção das águas morosamente acumuladas[II].
IV — Esta situação originava, cíclica ou esporadicamente,
epidemias que desbastavam as populações ribeirinhas, pelo que
estas se queixavam amiudadamente da sua miserável condição de
vida, como aconteceu diversas vezes aos habitantes de Aveiro[III].
V — O próprio
comércio ficava “completamente desvanecido por falta de capacidade
da Barra” — como se lê, assim mesmo, numa queixa da Câmara de
Aveiro, em 1784. |
Fig. B -
Diferentes localizações da barra de Aveiro em várias épocas. |
VI — O BAIXO-VOUGA, pelas razões expostas em
II, III e IV, sujeito a constantes e imprevisíveis enxurradas, e
ao inevitável encharcamento prolongado e profundo dos seus campos,
não só não se permitia uma agricultura proveitosa, como se
tornavam estéreis ou degradadas extensas áreas de terrenos
merecedores de melhor sorte[IV].
VII — Estas
situações desastrosas para a economia em geral — sal, peixe,
pastagens, hortícolas, frutos, etc. —, agravadas por epidemias e
doenças sazonais, deram origem, como atrás se disse, a muitos
queixumes e reclamações dos povos que viviam à volta do “charco”
lagunar, como aquela que foi apresentada pela Câmara de Aveiro à
Rainha D. Maria I, em 1788, em que se vincava o perigo de epidemia
resultante do estado da Barra e consequentes inundações”. (Nesta
cidade, o número de habitantes em 1575 era de 14.000; em 1797
rondava os 3.500! — apenas 25 por cento!)
VIII — Três
anos mais tarde, em 1791, aquela Rainha incumbiu o Provedor da
Câmara de Aveiro e encarregado das obras da Barra, Nuno Mota
Amorim, de apresentar um Plano para a abertura de uma barra ou
regueirão junto à Capela da Senhora das Areias, em S. Jacinto. O
plano foi executado, mas sem resultado.
IX — Em 1794, a
Câmara de Aveiro, por intermédio do Dr. Manuel J. Lopes Negrão,
conseguiu do então Príncipe-Regente D. João (futuro D. João VI)
algumas providências, mas, não passou de mais uma tentativa
falhada.
X — Só em 1802 o Príncipe D. João tomou
finalmente a decisão de entregar o Projecto da Nova Barra aos
engenheiros militares Reinaldo Oudinot e Luís Gomes de Carvalho[V].
XI — A NOVA BARRA foi finalmente aberta em
1808, acto[VI]
a que o Príncipe não assistiu por estar no Brasil, nas funções
de Regente, por sua mãe, a Rainha D. Maria I, estar gravemente
incapacitada de governar. E tão eficientemente foi projectada e
construída que, passado um ano (1809), entrava na Barra um comboio
marítimo composto por trinta e oito navios de transporte, escoltado
pelo brigue de guerra PORT MAHON, com víveres e forragens para o
exército inglês, tendo ancorado na chamada Praia da Senhora.
XII — As boas
circunstâncias assim criadas pela Nova Barra, para além do
desafogo da cidade de Aveiro e doutras povoações à roda da Ria,
também trouxeram alguns benefícios à agricultura do Baixo-Vouga;
ora se o mal já não era tão gravemente desastroso, ainda assim
proporcionava a que muitas enxurradas, pelo seu volume,
continuassem a desbastar o campo agrícola, já que o RIO VELHO,
pelas razões atrás expostas, não dava rápida vazão a tanta água, o
que permitia que se tornassem periodicamente alagadiças extensas
zonas de nível mais baixo.
XIII — Essa
situação, por demais vivida e reconhecida pelos lavradores, estará
na origem duma ordem superior, dada de 1813, com o fim de melhorar
a navegação (“rectificação e canalização”) dos Rios Vouga, Cértima
e Águeda.
XIV —
Finalmente nesse ano, as atenções viraram-se para a situação do
Baixo-Vouga: foram iniciados os trabalhos de abertura do Canal que
ficou historicamente conhecido por RIO NOVO DO PRÍNCIPE, nome que
pretende homenagear o Príncipe D. João. As obras foram orientadas
pelo mesmo engenheiro hidráulico que abriu a Barra, e dadas como
prontas em Dezembro de 1815, no que se gastou a importância de
12.468$604 réis.
Fig. C - Aspecto dos
trabalhos agrícolas nos campos do Baixo-Vouga.
XV — Da
abertura do Canal resultou um melhor aproveitamento dos campos do
Baixo-Vouga, com o natural incremento na criação de gado de
trabalho — vacum e cavalar — de que a região se tornou farta e
famosa, e um bom aumento na produção hortícola, no milho, feijão,
abóboras, melões e melancias, com grande relevância no sector
orizícola (Fig. C)
XVI —
Actualmente, as muitas obras de que tem entretanto beneficiado a
Barra e o Porto de Aveiro tornaram as marés mais fortes, com água
salgada a subir Vouga-acima (Angeja e mais), agravando a situação
da agricultura, nomeadamente a orizicultura, francamente a
extinguir-se. Tal facto, aliado a outros factores perniciosos —
poluição, erosão permanente dos terrenos, salinização cada vez
mais profunda —, tudo ajuda à sucessiva degradação dos solos
cultiváveis, ao depauperamento da agricultura e à pobreza
melancólica do trabalhador do campo.
[I]
Ficaram
tristemente célebres as cheias de 1526-1585-1596-1844 e 1739,
além de outras que a história não regista, mas que causaram
muitos prejuízos.
[II]
A fixação da Barra, começada a estudar, em 1687, por dois
engenheiros holandeses, deu origem a um projecto, que foi para
a gaveta por não haver dinheiro para o concretizar.
Em 1756
(época pombalina) tentou-se abrir uma nova barra mas as obras
ficaram apenas pela abertura de um efémero regueirão na
Vagueira.
Em 8 de
Abril de 1802, o príncipe D. João ordenou que fossem
demolidas as muralhas de Aveiro e, aos materiais dai
resultantes, se desse boa utilização nas obras da Barra.
[III]
A Câmara, com o apoio da
Nobreza e do Povo, face à angustiante situação económica de
Aveiro, pediu providências a El-Rei D. José, que criou a
Superintendência das Obras da Barra, mas os trabalhos foram
anulados por mais uma cheia.
...a
Câmara não tinha dinheiro sequer para socorrer as centenas de
pessoas que morriam com a peste por via da obstrução da Barra.
Os próprios médicos, face à malária que atacava a população,
preferiam procurar lugares mais saudáveis.
[IV]
Em 1575 a degradação da Barra
era tanta, devido a um rigoroso inverno, que os fertilíssimos
campos (...) se tornaram em pântanos infectos e insalubres, e,
por conseguinte, acabou na decadência da economia da região”.
No bairro baixo da cidade, aquando das cheias, os moradores
entravam pelas janelas. Em 1801 era tanta a miséria que o
Senado da Câmara voltou a pedir providências.
[V]
A paga do povo e das
autoridades aveirenses a Luís Gomes de Carvalho, notável e
competente engenheiro hidráulico, foi a ingratidão, deixada
expressa numa Acta da sessão do Senado de Aveiro: “continuando
Luís Gomes de Carvalho a dirigir semelhantes obras, Aveiro se
tornará inteiramente infeliz e desgraçado, sendo este o
unânime voto do clero, Nobreza e Povo, com o qual me conforma
esta Câmara”. [A este respeito, veja-se a peça de teatro de
Jaime Gralheiro, A Longa Marcha para o Esquecimento,
utilizando o seguinte endereço:
http://www.prof2000.pt/users/hjco/ceta/pg002000.htm]
Instituiu-se, para as Obras da Barra um imposto sobre o vinho
e as carnes, depositado no célebre “cofre da Barra”, muitas
vezes roubado ou desviado para outros fins!...
[VI]
O Comandante Silvério da Rocha
e Cunha descreve a abertura da NOVA BARRA DE AVEIRO, em 3 de
Abril de 1808, desta forma emocionante: — «Às 7 horas da
tarde, em segredo, acompanhado por Verney, pelo marinheiro
Cláudio e poucas pessoas mais, arrancam a pequena barragem de
estacas e faxinas que defendia o resto da duna na Cabeça do
Molhe. Cortam a areia com pés e enxadas, e Luís Gomes, abrindo
um pequeno sulco com o bico da bota no frágil obstáculo que
separava a Ria do mar, dá passagem à onda avassaladora da
vazante para a conquista da libertação económica de Aveiro,
depois de uma pressão que durava há 60 anos.»
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