Cochim, época das grandes monções


O meu solícito feitor e alfageme Ricardo Barbatesa, já regressado a Portugal da viagem turística à Índia, integrado na comitiva de D. Mário I, o Felizardo, mandou-me por telefax o “Pasquim dos Verrides” agora subornado por esse fidalgote de meia tigela que se ufana de pertencer à ilustre cepa do Vice-Rei D. Francisco de Almeida, querendo com isso dizer “tal avô, tal neto”, como se ele não fosse uma nódoa caída em tão famosa família!

Vade retro, com tal presunção! Enquanto o Vice-Rei das Índias se formou na mais nobre e disciplinada escola lusitana, esse outro fedelho, frequentador dos “bas fonds” da Mouraria e do Bairro Alto, não passa de um espadachim de trazer por casa, que à falta de coragem para se bater à espada, usa esse instrumento para degolar, à socapa da família, uns tantos galináceos para satisfazer a gula da catraiada noctívaga com quem anda metido.

Essa carta que ele publicou no “pasquim” não passa de uma enxurrada de calúnias que apenas me deixam um travo amargo de desprezo. É que os nomes que me aplica, as situações ridículas em que me coloca, o desprestígio com que fala dos meus ilustres antepassados sapateiros e pescadores, a quem ele, pejorativamente, chama de bate-solas e escamadores de peixe fenicado, obrigam-me a vir à praça denunciar a mentira, não vá, porque repetida, ser considerada verdade.

Essas acusações, além de mentirosas, são insolentes!

Como essa, de me rebaixar no mais ínfimo, pondo-me de cócoras a enxugar um tonel de vinho!!!

Sua Majestade D. Mário I, com quem na juventude criei elos de grande e afectuosa amizade, sabendo da minha vocação enóloga, nomeou-me por decreto real Escanção – Mor do Reino, dos Algarves e das Índias! Em todo o Mundo cristão e muçulmano, segundo informações que me chegam, não há escanção que não aprenda comigo!

Ainda recentemente, na grande recepção que El-Rei D. Mário I deu em Goa aos governantes e diplomatas da Índia, eu fui, como sempre tenho sido, o copeiro eleito para momentos altos como sejam os que envolvem Reis, Imperadores, Generais, Almirantes e demais personalidades do foro diplomático. Aliás, os vinhos que acompanharam D. Mário na sua estadia na Índia, foram todos seleccionados por mim, D. Bártholo, Conde de Mataduços y Fontão.

E não queiram saber: a abrir a refeição escolhi um espumante bruto para os homens e uns vinhos brancos e secos, de Colares e Bucelas, para as damas, a acompanhar uns aperitivos: queijos frescos de cabra, empadas e rissóis. Gostaram! Até uma senhora da alta roda indiana, arfando o seu peito de Pompadour, pede-me num português distinto: “Senhor Dom Bártholo, um Alvarinho”! E sorriu, lambendo uns delicados e carminados lábios!

Com o prato de peixe, mandei servir vinhos brancos mais encorpados, como mandam os bons apreciadores, ainda que para peixe gordo se recomendem tintos fortes, “Reguengos”, “Cartaxo”, “Espirra” ou mesmo “Palmela”; para o prato de carne mandei servir tintos jovens e vigorosos, embora para os assados sejam mais próprios tintos velhos e robustos, que se harmonizam melhor com carne, caça e queijos de sabor muito forte.

A conjugação do vinho com a comida não é tarefa fácil e não deve ser entregue a principiantes, nem àqueles para quem o vinho é a droga com que se dignificam!

Além da qualidade do vinho, há que ter em conta o recipiente, isto é, o copo! O copo deve ser incolor, de paredes finas, sem ramagens, de modo a poder-se apreciar a cor e a limpidez do líquido. Deve ter uma base, o pé, de forma a evitar que a mão aqueça a parede do copo e lhe altere a temperatura. O copo deve ter uma boa capacidade e estreitar na boca, para que o aroma permaneça. E não deve encher-se senão apenas dois terços!

A temperatura dos vinhos tem também regras a respeitar, mormente na Índia, onde a temperatura atingiu, durante a visita de El-Rei, temperaturas altas. Para os brancos encorpados, a temperatura ideal é entre os 11 e 12 graus; brancos doces, como o moscatel, entre 6 e 8 graus; já o espumante deve beber-se com 6 graus; os tintos, jovens e leves, cerca de 14 graus; e os tintos velhos e robustos, na ordem dos 16 a 18 graus!

Como se vê por esta resumida e despretensiosa amostra de saber o ofício de escanção, eu sou um técnico enólogo e não o borrachão de que me alcunha esse Pena Alva.

Pena Alva tem muito que aprender e eu estou disposto a ensiná-lo.

E até breve, Sr. Director!

Cochim, 25-06-1992

 

Conde de Mataduços y Fontão

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