NESSE outono, já distante, a
grande cidade era uma nova Babilónia onde se falavam mil línguas e se
cruzavam as mais estranhas gentes.
Na Europa rugia, furiosamente, o ciclone da guerra. Todos
os dias os periódicos aumentavam a inquietação com mais um feixe de
notícias trágicas. O vento da morte parecia alastrar pelo velho
continente, de estrutura corroída, na ânsia de subverter as mais belas
cousas. Cidades outrora belas e alegres ficavam reduzidas, em algumas
horas, a montões informes de destroços fumegantes; obras de arte,
orgulho e afirmação do génio humano, perdiam-se para sempre na voragem;
e pelas estradas e caminhos arrastava-se, penosamente, uma multidão
faminta e desgrenhada, em busca dum porto seguro.
Cá, no ocidente, viviam-se momentos de ansiedade; mas o
sol não perdia o brilho intenso, as noites continuavam muito azuis e
consteladas de estrelas, e o perfume das flores confundia-se,
brandamente, com a leve aragem outonal.
A grande cidade era uma síntese do mundo. Todos os dias
chegavam caravanas de refugiados. Os hotéis e pensões abarrotavam de
estrangeiros. A vida nos restaurantes, «cafés» ou «dancings», adquiria,
pouco a pouco, um ritmo mais intenso e cosmopolita. Cruzavam-se no
espaço palavras de várias línguas. O ambiente era sempre animado pela
presença de lindas mulheres loiras que fumavam com desenvoltura...
Nas mesas dos cafés. e nas esplanadas da «Avenida»
formavam-se grupos onde se discutiam acaloradamente as últimas notícias
fornecidas pelas agências telegráficas, de mistura com os complicados
negócios de passaportes e «vistos» para as repúblicas americanas. Gente
que mal se conhecia tratava-se com intimidade, e, muitas vezes, podiam
ver-se cidadãos súbditos dos países beligerantes conversando na melhor
camaradagem.
Na onda chegava de tudo, pessoas honestas e aventureiros.
Uns reflectiam ainda, no olhar emparvecido, a intensidade da tragédia;
os outros, aves de arribação, sem pátria nem lar, saboreavam gulosamente
a vida − essa vida fútil, destituída de finalidade, a que a guerra os
roubara transitoriamente.
Mercê da minha condição de «repórter» convivi com muita
dessa gente e guardo dalguns agradáveis recordações.
Lembro-me do curiosíssimo espírito do jornalista Moisés
Branville, meu companheiro durante alguns meses; de certo judeu de
Amesterdão, enigmático negociante de jóias; duma alegre francesita,
chamada Olga, encontrada misteriosamente morta, mais tarde, no quarto da
pensão; e, principalmente, de Ingrid − estranho perfil nórdico que me
ficou agarrado para sempre à retina.
Talvez a tivessem conhecido. Era uma mulher situada na
deliciosa «idade de BaIzac», senhora dessa elegância discreta e
desportiva que denuncia a escandinava. Tinha uns cabelos raros, dum
doirado macio e quente; os olhos eram verdes e límpidos; a boca, traçada
com firmeza, possuía nos beiços grossos e húmidos, essa expressão
sensual característica das mulheres nórdicas.
Quando a olhava e me detinha a contemplar os seus olhos e
boca, era sempre invadido pela dúvida suscitada por tão complexa
personalidade. Que prevaleceria naquela natureza?...
A candura?... O diabolismo?...
Por ventura estas forças dominavam-lhe o carácter,
revezando-se no comando das atitudes.
Era uma mulher diabolicamente atraente, embora não
parecesse dotada do menor coquetismo.
Certo dia alguém apresentou-nos. Conversámos de vários
assuntos − a guerra, a sua pátria distante, literatura e mil
bagatelas...
Tornámo-nos a encontrar várias vezes; passeámos juntos,
fomos aos cinemas, mostrei-lhe museus e monumentos, na melhor
camaradagem. Foi sempre gentilíssima; e, até, quando certa tarde
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falei da impressão que me causavam os seus olhos, não modificou esta
atitude. Ouviu tudo atentamente. Ao canto dos lábios um sorriso
condescendente − uma réstia de sol... Contudo pareceu-me que o seu
espírito se ausentara para longe, ao mesmo tempo que uma sombra lhe
pairava nas pupilas.
Como comentário às minhas palavras repetiu, duas ou três
vezes, a mesma frase − «eu era muito amável... − E mais nada...
Continuámos a encontrar-nos com a mesma regularidade. Fui
insistindo, sempre, duma maneira mais clara e objectiva. lngrid ouvia,
sorria, e, no fim, quando esperava ter uma revelação, fazia-me qualquer
pergunta desconcertante sobre assuntos muito diferentes...
Já perdendo a esperança, cada vez me parecia mais
estranha a minha companheira.
Seria uma mulher de gelo?... Mas, então, porque não me
repelia?... Porque era, por vezes, tão amável, tão femininamente
gentil?... E lembrava-me de alguns momentos em que os olhos pareciam
arder, em que o corpo se estiraçava, pesado e mole, enquanto a tarde
morria numa orgia de luz...
Uma noite, à saída dum cinema, encontrámos um grupo de
amigos. Andavam alegremente comemorando qualquer acontecimento festivo.
Seguimos em sua companhia visitando «bars» e «dancings». Já com a
madrugada alta fomos a um restaurante famoso pelas suas ementas de
pratos húngaros.
Tinham saído os últimos frequentadores; mas, como o grupo
era numeroso e o proprietário do estabelecimento nos conhecia, não houve
qualquer dificuldade. Entrámos e tomámos conta da «boîte». O «barman»
retomou o seu posto; como a orquestra havia saído, uma rapariga
estoniana, nossa amiga, foi para o piano tocar coisas alegres.
As luzes, quase apagadas, envolviam a sala numa penumbra
discreta. A um canto, o gerente ceava com as duas bailarinas da casa. O
«barman», finório e simpático, fazia alta filosofia com um dos do grupo,
a cair de bêbado. Os outros bebiam, conversavam, ou dançavam.
Eu e lngrid afastáramo-nos um pouco. Já havíamos bebido
razoavelmente. Ela parecia ter modificado a sua atitude de indiferença.
Foi inquietadoramente amável; consentiu que lhe beijasse as pontas dos
dedos; em todo o seu corpo parecia haver uma entrega. Deixámos de
conversar. As nossas bocas iam, talvez, unir-se. De súbito, a rapariga
estoniana iniciou uma balada melancólica. Ingrid ficou suspensa.
Lentamente, desprendeu-se-me dos braços; tinha os olhos marejados de
lágrimas. Sem compreender, pedi-lhe para
explicar
tão estranha atitude.
Disse, apenas, com desalento:
− É a canção dele!...
Era a canção dele, um «ele» de que a guerra a havia
separado, talvez para sempre...
E nunca mais reatámos o beijo interrompido.
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