Professor Doutor Egas MonizRomancista Ferreira de Castro.

ANALISANDO, mesmo à superfície, o elenco das figuras ilustres de Aveiro, desde remotos tempos até aos nossos dias, e dando rápido balanço ao valor da sua obra mental e artística, pode concluir-se que estas se harmonizam com o esplendor e prestígio das fascinantes paisagens da região.

Primou a Natureza em dotar estas terras com variados encantos, para não fatigar espíritos ávidos de contrastes de beleza. E assim, revestiu as serras do Buçaco de opulência vegetal, frondosos parques com silêncios de catedral, música de regatos e ambiente de religiosidade, sugestões de repouso que isolam o homem da vibração tumultuária do mundo. As margens e vales do Vouga deu ridente e juvenil expressão de primavera constante, feitiço dos olhos e dos sentidos, lirismo, exuberância e melodia, que só podem ser bem interpretadas pelos poetas, pintores e rouxinóis, Para as majestosas serranias de Arouca e nostálgicos horizontes de Vale de Cambra, teve novas tintas, bucólicas imagens que tornam inolvidáveis certos momentos de alba e do entardecer. E lá em baixo, na Ria de Aveiro, não se cansou em espargir luz azul e doirada, e uma translúcida graça espiritual, que nos desperta enlevo ao vermos como a Ria vai correndo em curvas airosas, cingindo amorosamente a terra e fecundando-a em núpcias que não acabam mais.

José Estêvão de Magalhães.A todo este panorama aliciante correspondeu uma intensa vida espiritual de figuras que, nas letras, artes e ciências, pela sua actividade mental, política e religiosa, podem considerar-se padrões representativos do valor humano desta região.

Uns porque nasceram nestas terras; outros por nelas terem troncos e raízes; ainda outros por terem aqui passado anos – os que há muito desapareceram e os que existem − constituem notável galeria, destacando-se alguns na própria vida nacional.

Desde longa data se assinalaram altos valores intelectuais na região de Aveiro. Já antes da fundação da nacionalidade, em 1092, um monge do Mosteiro de Arouca, D. Crescónio, foi Bispo de Coimbra. Em meados do século XV nasceu em Aveiro o célebre helenista Aires Barbosa, chamado «O grego», por haver sido o primeiro professor que ensinou língua grega em Espanha, homem tão erudito que foi lente de retórica na Universidade de Salamanca e condiscípulo, em Florença, de João Médicis, mais tarde eleito Papa Leão X. Também foi, aproximadamente, desta época quinhentista, um poeta, João Afonso de Aveiro, que escreveu um livro − «Poesias Várias» e vem referido no «Cancioneiro de Resende».

No decorrer dos tempos vários outros nomes continuam ilustrando a tradição intelectual aveirense, mormente na vida religiosa, como o de D. Frei Caetano Brandão, teólogo e filósofo, natural de Estarreja, que foi Bispo do Pará e Arcebispo de Braga, em fins do século XVIII, e o cónego Pedro Garcez, doutorado em teologia, natural de Arouca, que, um pouco mais tarde, foi nomeado Bispo de Pinhel. Também em fins daquele século, em 1774, nasceu no concelho de Aveiro Joaquim José Queiroz, que devido às suas ideias liberais teve de emigrar para o estrangeiro, regressando mais tarde ao país e sendo nomeado ministro da Justiça em 1847. Era avô paterno do grande romancista Eça de Queirós − que desse modo conta próximos antecessores como naturais de Aveiro.

É, porém, desde o século XIX até aos nossos dias que Aveiro conta entre os seus filhos mais homens ilustres. Antes de nenhum outro, devemos recordar José Estêvão de Magalhães, jornalista e orador eloquentíssimo, valoroso defensor das ideias liberais, temperamento ardoroso de lutador, homem honrado e coerente, que abandonou estudos para pegar em armas, sempre abraçado à ideia que serviu com bravura e paixão. Longos anos a sua palavra brilhou na oratória peninsular, ecoando no parlamento e prestigiando todas as tribunas onde havia uma causa nobre a defender; e afirmam os cronistas da época que, ao seu verbo ardente, rico de fulgentes / 27 / imagens e perfeito de recorte literário, juntava o gesto expressivo e dominador, empolgando o auditório pela sua caudalosa eloquência e pela força moral que irradiava do seu carácter austero, generoso e forte.

Homem Cristo. Baixo relevo do escultor Romão Júnior.Aos mais importantes problemas do seu tempo deixou José Estêvão ligado o seu nome honrado, e decorridos tantos anos após a sua morte dir-se-ia que ainda não se apagou a sua sombra tutelar e o eco da sua palavra generosa e ardente.

Foi uma grande figura de Aveiro e do País.

Desta mesma época é outro grande vulto, o Visconde de Seabra, que também abraçou o movimento liberal e o defendeu, vigorosamente, no Parlamento, ao lado de José Estêvão, tendo feito parte da Academia no tempo de Castilho e Alexandre Herculano, com quem sustentou polémicas. Foi deputado, ministro, par do Reino, reitor da Universidade, escritor e poeta, mas a sua grande obra foi o projecto do Código Civil, obra-prima, segundo os entendidos, que o evidenciou como grande figura do foro português. Embora tivesse nascido a bordo dum navio, no alto mar, na zona de Cabo Verde, é considerado natural de Anadia.

Neste mesmo concelho nasceram dois outros vultos que se evidenciaram na vida pública: o Dr. Alexandre de Seabra, autor do projecto do primeiro Código do Processo Civil e o conselheiro José Luciano de Castro, homem muito inteligente, que foi ministro, presidente do Conselho e chefe do Partido Progressista, havendo sido considerado árbitro da política portuguesa nos últimos anos do regime monárquico.

Outras figuras notáveis dessa época: o Dr. Jaime de Magalhães Lima, natural de Aveiro, escritor e filósofo, homem austero e de muito saber, irmão do grande tribuno Magalhães Lima; Marques Gomes, também natural de Aveiro, que escreveu valiosos estudos sobre história e arte, entre estes as «Memórias de Aveiro»; D. José Pereira Bilhano, natural de Ílhavo, Arcebispo de Évora; e o Dr. Costa Simões, da Mealhada, que foi lente de Medicina e Reitor da Universidade de Coimbra.

Falarei agora, e com natural comoção, de uma das maiores e mais discutidas figuras de Aveiro − de Homem Cristo, nascido nesta cidade em 1860 e falecido há poucos dias.

Não se trata, apenas, duma grande figura de Aveiro, mas de notável e invulgar individualidade portuguesa, um dos maiores e mais altos jornalistas portugueses, que seria formidável valor da imprensa em qualquer parte do mundo.

Inteligente, enérgico, génio indomável, duma brava independência, sabendo escrever, versado em assuntos de história, política e sociologia, a sua pena fez tremer adversários de valor e, durante mais de meio século, contando consigo próprio, crivou de violentos comentários a política portuguesa, tendo de comer, várias vezes, o pão negro do exílio por não se vergar a prepotências e não transigir com os erros dos políticos, não poupando os próprios correligionários.

Como militar foi dos mais brilhantes e sabedores oficiais do exército, disciplinado e disciplinador, ensinando os soldado a ler em todos os regimentos por onde passou; como professor revelou conhecimentos profundos e o seu amor ao estudo e ensino; como parlamentar, embora pouco tempo frequentasse a Câmara dos Deputados, ficaram célebres os debates em que teve intervenção, pelo domínio da sua forte individualidade, pelo seu muito saber, pela forma sugestiva da sua esmagadora argumentação. Quem, como eu, o viu e ouviu no Parlamento, não poderá esquecer a sua figura de gigante enfurecido e a sua palavra colérica mas impressionante.

Escritor João GravePublicista Dr. Vaz FerreiraPintor Fausto Sampaio
 

 

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