ANALISANDO,
mesmo à superfície, o elenco das figuras ilustres de Aveiro, desde
remotos tempos até aos nossos dias, e dando rápido balanço ao valor da
sua obra mental e artística, pode concluir-se que estas se harmonizam
com o esplendor e prestígio das fascinantes paisagens da região.
Primou a
Natureza em dotar estas terras com variados encantos, para não fatigar
espíritos ávidos de contrastes de beleza. E assim, revestiu as serras do
Buçaco de opulência vegetal, frondosos parques com silêncios de
catedral, música de regatos e ambiente de religiosidade, sugestões de
repouso que isolam o homem da vibração tumultuária do mundo. As margens
e vales do Vouga deu ridente e juvenil expressão de primavera constante,
feitiço dos olhos e dos sentidos, lirismo, exuberância e melodia, que só
podem ser bem interpretadas pelos poetas, pintores e rouxinóis, Para as
majestosas serranias de Arouca e nostálgicos horizontes de Vale de
Cambra, teve novas tintas, bucólicas imagens que tornam inolvidáveis
certos momentos de alba e do entardecer. E lá em baixo, na Ria de
Aveiro, não se cansou em espargir luz azul e doirada, e uma translúcida
graça espiritual, que nos desperta enlevo ao vermos como a Ria vai
correndo em curvas airosas, cingindo amorosamente a terra e fecundando-a
em núpcias que não acabam mais.
A todo
este panorama aliciante correspondeu uma intensa vida espiritual de
figuras que, nas letras, artes e ciências, pela sua actividade mental,
política e religiosa, podem considerar-se padrões representativos do
valor humano desta região.
Uns
porque nasceram nestas terras; outros por nelas terem troncos e raízes;
ainda outros por terem aqui passado anos – os que há muito desapareceram
e os que existem − constituem notável galeria, destacando-se alguns na
própria vida nacional.
Desde
longa data se assinalaram altos valores intelectuais na região de
Aveiro. Já antes da fundação da nacionalidade, em 1092, um monge do
Mosteiro de Arouca, D. Crescónio, foi Bispo de Coimbra. Em meados
do século XV nasceu em Aveiro o célebre helenista Aires Barbosa,
chamado «O grego», por haver sido o primeiro professor que ensinou
língua grega em Espanha, homem tão erudito que foi lente de retórica na
Universidade de Salamanca e condiscípulo, em Florença, de João Médicis,
mais tarde eleito Papa Leão X. Também foi, aproximadamente, desta época
quinhentista, um poeta, João Afonso de Aveiro, que escreveu um
livro − «Poesias Várias» e vem referido no «Cancioneiro de Resende».
No
decorrer dos tempos vários outros nomes continuam ilustrando a tradição
intelectual aveirense, mormente na vida religiosa, como o de D. Frei
Caetano Brandão, teólogo e filósofo, natural de Estarreja, que foi
Bispo do Pará e Arcebispo de Braga, em fins do século XVIII, e o
cónego Pedro Garcez, doutorado em teologia, natural de Arouca, que,
um pouco mais tarde, foi nomeado Bispo de Pinhel. Também em fins daquele
século, em 1774, nasceu no concelho de Aveiro Joaquim José Queiroz,
que devido às suas ideias liberais teve de emigrar para o estrangeiro,
regressando mais tarde ao país e sendo nomeado ministro da Justiça em
1847. Era avô paterno do grande romancista Eça de Queirós − que
desse modo conta próximos antecessores como naturais de Aveiro.
É, porém,
desde o século XIX até aos nossos dias que Aveiro conta entre os seus
filhos mais homens ilustres. Antes de nenhum outro, devemos recordar
José Estêvão de Magalhães, jornalista e orador eloquentíssimo,
valoroso defensor das ideias liberais, temperamento ardoroso de lutador,
homem honrado e coerente, que abandonou estudos para pegar em armas,
sempre abraçado à ideia que serviu com bravura e paixão. Longos anos a
sua palavra brilhou na oratória peninsular, ecoando no parlamento e
prestigiando todas as tribunas onde havia uma causa nobre a defender; e
afirmam os cronistas da época que, ao seu verbo ardente, rico de
fulgentes
/ 27 / imagens e perfeito de recorte literário, juntava o
gesto expressivo e dominador, empolgando o auditório pela sua caudalosa
eloquência e pela força moral que irradiava do seu carácter austero,
generoso e forte.
Aos mais
importantes problemas do seu tempo deixou José Estêvão ligado o seu nome
honrado, e decorridos tantos anos após a sua morte dir-se-ia que ainda
não se apagou a sua sombra tutelar e o eco da sua palavra generosa e
ardente.
Foi uma
grande figura de Aveiro e do País.
Desta
mesma época é outro grande vulto, o Visconde de Seabra, que também
abraçou o movimento liberal e o defendeu, vigorosamente, no Parlamento,
ao lado de José Estêvão, tendo feito parte da Academia no tempo de
Castilho e Alexandre Herculano, com quem sustentou polémicas.
Foi deputado, ministro, par do Reino, reitor da Universidade, escritor e
poeta, mas a sua grande obra foi o projecto do Código Civil, obra-prima,
segundo os entendidos, que o evidenciou como grande figura do foro
português. Embora tivesse nascido a bordo dum navio, no alto mar, na
zona de Cabo Verde, é considerado natural de Anadia.
Neste
mesmo concelho nasceram dois outros vultos que se evidenciaram na vida
pública: o Dr. Alexandre de Seabra, autor do projecto do primeiro
Código do Processo Civil e o conselheiro José Luciano de Castro,
homem muito inteligente, que foi ministro, presidente do Conselho e
chefe do Partido Progressista, havendo sido considerado árbitro da
política portuguesa nos últimos anos do regime monárquico.
Outras
figuras notáveis dessa época: o Dr. Jaime de Magalhães Lima,
natural de Aveiro, escritor e filósofo, homem austero e de muito saber,
irmão do grande tribuno Magalhães Lima; Marques Gomes, também
natural de Aveiro, que escreveu valiosos estudos sobre história e arte,
entre estes as «Memórias de Aveiro»; D. José
Pereira
Bilhano,
natural de Ílhavo, Arcebispo de Évora; e o Dr. Costa Simões, da
Mealhada, que foi lente de Medicina e Reitor da Universidade de Coimbra.
Falarei
agora, e com natural comoção, de uma das maiores e mais discutidas
figuras de Aveiro − de Homem Cristo, nascido nesta cidade em 1860
e falecido há poucos dias.
Não se
trata, apenas, duma grande figura de Aveiro, mas de notável e invulgar
individualidade portuguesa, um dos maiores e mais altos jornalistas
portugueses, que seria formidável valor da imprensa em qualquer parte do
mundo.
Inteligente, enérgico, génio indomável, duma brava independência,
sabendo escrever, versado em assuntos de história, política e
sociologia, a sua pena fez tremer adversários de valor e, durante mais
de meio século, contando consigo próprio, crivou de violentos
comentários a política portuguesa, tendo de comer, várias vezes, o pão
negro do exílio por não se vergar a prepotências e não transigir com os
erros dos políticos, não poupando os próprios correligionários.
Como
militar foi dos mais brilhantes e sabedores oficiais do exército,
disciplinado e disciplinador, ensinando os soldado a ler em todos os
regimentos por onde passou; como professor revelou conhecimentos
profundos e o seu amor ao estudo e ensino; como parlamentar, embora
pouco tempo frequentasse a Câmara dos Deputados, ficaram célebres os
debates em que teve intervenção, pelo domínio da sua forte
individualidade, pelo seu muito saber, pela forma sugestiva da sua
esmagadora argumentação. Quem, como eu, o viu e ouviu no Parlamento, não
poderá esquecer a sua figura de gigante enfurecido e a sua palavra
colérica mas impressionante.
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