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Prefácio

O aparecimento do 3.º vol. do Guia de Portugal a quase 20 anos de distância do 1.º e do 2.º, sob a responsabilidade literária não já de Raul Proença, mas de um núcleo de amigos seus, representados pelo signatário destas linhas, requer algumas explicações que esclareçam o leitor acerca das circunstâncias em que se realizou o presente e dificultoso prosseguimento.

Dir-se-ia que, por uma espécie de contrapartida do seu extraordinário amor ao trabalho, Raul Proença, vencido por uma inibição que parecia definitiva, emudeceu e alheou-se de todas as suas ocupações pouco depois de ter deixado a Biblioteca Nacional, onde encetara uma obra que ainda hoje pode ser lembrada como um verdadeiro exemplo de dedicação pela coisa pública. O Guia, uma das corporizações das suas grandes aptidões de organizador, teve de suspender-se.

A enfermidade, porém, como tantas vezes sucede com as que são mais inexoráveis, quis oferecer, no fim, uma grande ilusão. Na Primavera de 1938, após sete anos de alheamento e de silêncio, o escritor (pouco antes submetido à intervenção cirúrgica da leucotomia)(1) exprimiu-se de novo publicamente, e com todas aquelas virtudes de agilidade e bonomia que Nietzsche amava chamar alciónicas.

A determinante havia sido simples e quase fortuita. Colocado em face de um escrito nosso (publicado na persuasão íntima do que nem sequer passaria pelos seus olhos, dado o seu reconhecido alheamento) e no qual, a título exclusivamente especulativo, havíamos traduzido certas dúvidas acerca da unidade dialéctica dos dois vectores axiais do seu pensamento: de um lado, a aspiração veemente da intervenção, inerte a sua doutrina ética-social (diametralmente oposta à de Benda, por ele duramente contestada a propósito do livro-tese La trahison des Clercs), e, por outro, a simpatia, que julgávamos comprovada, pela velha ideia-crença do Eterno Retorno (2) – Raul Proença, contra toda a / XLIV / expectativa, entendeu dever, com risco embora, dizia, da sua convalescença, quebrar o mutismo a que se havia sujeito, e aclarar, ele mesmo, essa dúvida. E, na verdade, fê-lo com aquele desembaraço que fora sempre a marca do seu estilo, lançando a público um longo e impressionante esclarecimento (3).

Escusado será dizer como foi profunda a comoção, não só dos seus amigos, mas daqueles mesmos que, vivendo longe do escritor por esta ou aquela razão, jamais deixaram de reconhecer a importância dos seus trabalhos e o invulgar valor da sua pessoa.

A falta, por todos lamentada, da conclusão do Guia de Portugal fez com que muitas influências se conjugassem, desde logo, à volta do escritor, para que retomasse esta sua obra, na realidade, a mais generosa e a mais bela que o seu espírito dedicou à terra portuguesa. Aos votos de muitos particulares juntaram-se os próprios desejos do Estado – de que se fizeram persistentes intérpretes o Inspector das Bibliotecas e Arquivos de então, Júlio Dantas, e o Director Geral da Fazenda Pública, António Luís Gomes.

Raul Proença – na sua consciência de convalescente, hesitante, – anuiu, por fim; chamou a si os elementos e esboços que anos atrás tivera sob mão para a descrição do Norte do País; renovou perante o Estado o seu compromisso, e, sob a promessa de ajuda de um grupo de escritores amigos(4), ia dar começo ao seu trabalho, quando a doença, num golpe rápido de ressaca, o prostrou.

Perante a morte do fundador do Guia de Portugal, dever-se-ia interromper de novo a obra ou prossegui-la?

O Estado optou pela alternativa mais defensável, embora a não menos isenta de riscos: a da prossecução. Nesse intento, fez uso da palavra solidariamente dada pelos escritores acima nomeados. Foi em tal emergência que o último signatário, como delegado dos restantes, recebeu contratualmente a missão de completar, organizar e concluir o volume.

A dura responsabilidade exigiu nada menos de três anos de trabalho: consultas bibliográficas, numerosas viagens, / XLV / elaboração literária pessoal – não de dezenas, mas de algumas centenas de páginas – e solicitações, as mais diversas, de cooperação.

É bom de ver que somente à medida que fomos manuseando a massa de rascunhos, manuscritos e montes de verbetagem, pudemos ir entendendo o que faltava e importava fazer. Antes de mais, tivemos a grande dificuldade de descobrir o delineamento da obra, pois que Raul Proença apenas havia podido deixar-nos em uma carta, escrita em breves traços, pouco antes do fim, os tópicos da composição e coordenação do volume, como ele pensava realizá-lo. Por outro lado, era necessário apreender e aprender a técnica, tanto do fundo como da apresentação típica do livro. Para o termos conseguido, não faremos espírito (que neste lugar seria de muito mau gosto), se dissermos que estudámos os dois volumes já publicados como quem «se prepara» para uma licenciatura em letras sui generis –, em dois sentidos: literário e tipográfico.

De antemão sabíamos que a tarefa não era simples; ocultaríamos, no entanto, uma dura verdade se não confessássemos que os contratempos foram muito além daqueles com que contávamos.

Mas, enfim, à custa de alguma perseverança, muitas ajudas reconfortantes (e alguns amargos de boca, engolidos como quem toma um bom remédio), a obra aqui se encontra. Que a orientação dada seja, seguramente, aquela que Raul Proença concebera, não ousamos garantir. O plano de uma obra desta índole é tão difícil de reconstituir por um esquema como o de uma obra de imaginação.

Quanto à expressão literária, é evidente também que o presente volume não poderia evitar certas diferenças relativas aos anteriores. Em primeiro lugar há a falta insuprível do estilo tão ágil e seguro de Raul Proença. O leitor habituado à primeira metade do Guia, forçosamente notará nesta segunda a carência daquele vigor e entusiasmo, daquele tom desperto e vivaz, e até (porque não dizê-lo?), daquele gosto peculiar do superlativo das indicações, que a cada passo afiara nas páginas impressivas de Raul Proença, como tique um pouco hispânico e ingénuo, mas sempre atraente. Outros notarão, por certo, no volume, um andar bastante demorado e neutro e reconhecerão nessa frieza uma quebra do espírito afirmativo e forte que a obra no seu início exemplar oferecia. / XLVI /

É, enfim, possível que um outro leitor, observe que o 3.º tomo do Guia de Portugal excedeu muito, em tamanho, os anteriores e se queixe da sua maior incomodidade, como companheiro das suas futuras excursões. A estes últimos pediremos que atendam a que a região aqui descrita é a velha Beira, província extremamente ampla, rica de aspectos e de monumentos, mil e uma belas paisagens. Desde as perspectivas lineares e nostálgicas dos campos do Mondego e toalhas de água da Ria de Aveiro aos arremessos titânicos das penedias da Serra da Estrela, quantas expressões e sucessões de cenários a apontar, a descrever, a definir.

É certo que esta obra não nasceu para dar uma metafísica da paisagem. Mas quem nos diz a nós que o Guia de Portugal – mesmo na sua função discreta e inventariante – não será um dia o ponto de partida ou de sugestão para alguma tentativa nesse sentido? Se, por via de regra, em face do telúrico, ele se limita a apontar e apreciar, em termos de judicação estética comum, a paisagem por assim dizer puramente geográfica, não é porque não reconheça que todo o esforço de verdadeira compreensão da paisagem conduz directamente ao coração de um dos problemas mais sérios da reflexão ontológica. No fundo, não há experiência de contemplação terrena, por mais insignificante que seja, insusceptível de despertar a humana e velha questão de se saber o que distingue, afinal, a Realidade da Aparência.

Por uma pequena anedota talvez nos façamos melhor entender neste difícil parêntese:

Segundo se diz, um Matemático de renome, convidado um dia para ouvir algumas criações musicais de um grande compositor, aceitou o convite e assistiu com evidente enlevo à execução dos trechos que lhe dedicaram; simplesmente, no fim da audição, ter-se-ia aproximado discretamente de uma das pessoas que lhe haviam proporcionado aquele prazer e, um pouco sibilinamente, teria perguntado, referindo-se à música encantadora que escutara:

«– Mas, diga-me, que é que isto demonstra?»

– Entre o homem e a paisagem há uma dramática situação que requer muitas perguntas análogas. Diante duma bela marinha, lezíria ou montanha, qualquer pessoa, no primeiro momento, sorve, com os olhos embevecidos, a luz, as linhas de relevo, a nitidez ou enevoado dos seus confins; toda a actividade de pensar se suspende, enfim, para a alma se dar pura e simplesmente à euforia da contemplação. Tal estado de absorção, porém, dificilmente se mantém / XLVII / por muito tempo. Passadas as primeiras brisas de emoção, são inevitáveis as importunidades interrogativas do espírito – «Será realidade ou simples imagem o quadro que tenho presente? O mundo que contemplo participa da minha realidade ou é outra realidade? Que significação pode ter isto que observo e me deslumbra?» Quer dizer, uma das forçosas indagações especulativas do homem em face do mundo é a de saber se entre esse mundo físico e ele próprio, homem, há ou não alguma relação de entendimento e solidariedade.

Raul Brandão, um dos primeiros e mais pessoais cooperadores desta iniciativa, o Guia de Portugal, amassou toda a sua obra, pode dizer-se, na angústia da procura dessa relação. O seu obsidiante leit-motiv era o de «questionar» se a terra, as pedras, as árvores, os mundos siderais, eram ou não dotados de uma certa alma. Por uma verdadeira embriaguez de simpatia toda a sua obra exprime, como um tremendo refrain, a desesperada expectativa de fazer eclodir a voz das coisas supostas inanimadas. O seu Húmus, por exemplo, é um livro que, de ponta a ponta, não traduz outra obsessão. Quem for capaz de o ler não pode deixar de possuir, em certos momentos, a sugestão de estar em face de um homem que se abraça a um pedregulho ou a um tronco de árvore e os sacode, requerendo que despertem e falem também. Em contrapartida, em outros momentos, fugazes, o espírito do escritor afigura-se dar o pressentimento de que tudo está irreparavelmente separado, e parecer saber de ciência certa que a terra (ou o seu colorido fantasma, a paisagem), é irremissivelmente alheia, indiferente, irredutível e distante –, ainda que ao nosso lado.

Por sua vez, Raul Proença, como escritor que foi, e dos melhores que temos tido, do mundo sensível, – que pretendeu exprimir? Qual o sentido íntimo desta sua obra: o Guia? Que era, para ele, a paisagem?

Entre os dois escritores, a diferença de atitude visual é nítida. Enquanto o autor do Húmus foi, de raiz, um verdadeiro místico do mundo exterior, um angustiado perscrutador do Inerte, um metafísico, digamos assim, da natureza morta, com seus olhos atónitos e primitivos sempre presos à maravilha que, para ele, era, sem cessar, o espectáculo da água, do lume, do renascer da folhagem, um temperamento, enfim, que amava, como ele próprio dizia, «a luz sobre todas as coisas», – o fundador do Guia de Portugal / XLVlII / foi, acima de tudo, um escritor que aspirou fazer uma obra clássica e objectiva de naturalização da terra portuguesa.

Seguindo o sulco literário de Almeida Garrett, Alberto Sampaio, Ramalho Ortigão, Gabriel Pereira (para nomear somente os seus mais dignos precursores), – Raul Proença, embora recalcando talvez o pendor especulativo que nele era visceral, não quis ver os cenários do nosso país senão como valores ligados à nossa história, arte, idioma, alma. Com os seus dons de reflexão, caso tivesse querido, Proença poderia, seguramente, converter as profundas experiências emocionais das suas jornadas (que veladamente no prefácio do 2.º vol. se confessam), num grande livro subjectivo, de filosófica reflexão. Mas, não foi isso a que aspirou. E ainda bem. A grandeza do seu trabalho está precisamente na humildade com que ele, homem orgulhoso e fortíssimo, se entregou a essa ascética ideia de fazer uma descrição tranquila, completa, sistematizada e modesta das belezas do seu e nosso país, e de a ter realizado, segundo cremos, como em parte alguma ainda se realizou.

Setembro de 1944.

SANT'ANNA DIONÍSIO

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(1) – Raul Proença foi, na verdade, um dos primeiros, em Portugal, a submeter-se à experiência neuro-cirúrgica inventada pelo Prof. Egas Moniz e executada pelo Prof. Almeida Lima.

(2) – Uma dificuldade preliminar do pensamento de Raul Proença, in “Seara Nova”, n.º 550, pp. 78-82, Fev. 1938.

(3) – Sobre a Teoria do Eterno Retorno, in “Seara Nova”, n.º 585 pág. 191-200, Abril de 1938.

(4) – Afonso Lopes Vieira, António Sérgio, Aquilino Ribeiro, Câmara Reys, Ferreira de Castro, Raul Lino, Reinaldo dos Santos, Samuel Maia e o Autor do presente prefácio.

 

 

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28-02-2023