INTRODUÇÃO
Ninguém negará que o problema da leitura, ou a sua
ausência, é, antes de mais, um problema de ordem social.
Não é só (nem sobretudo) à Escola que se pode imputar
culpas da situação periférica que Portugal ocupa, face a este problema,
como aliás a tantos outros.
Não deixa, no entanto de ser penosa a situação do
professor de Língua Portuguesa que deveria, segundo os actuais programas
para o 3.º ciclo do Ensino Básico, «... ajudar o aluno a apropriar-se
de estratégias que lhe permitam aprofundar a relação afectiva e
intelectual com as obras, afim de que possa traçar, progressivamente, o
seu próprio percurso enquanto leitor e construir a sua autonomia face ao
conhecimento».
A análise deste pequeno excerto porá a qualquer
professor, desde logo, a seguinte questão: que processos poderei
utilizar para aprofundar a relação afectiva com obras de carácter
literário, ou não, consciente de que essa relação afectiva é complexa
porque nela vão actuar diferentes factores de ordem psicológica, social
e intelectual?
É sabido que vão longe os tempos e ambientes tão
sabiamente evocados por Marcel Proust na sua obra "Sobre a Leitura",
em que, com uma delicadeza de artista, nos fala do carácter sedutor da
leitura, sobretudo na infância.
Vejamos o resultado de um inquérito aplicado a alunos de
uma turma do 7.º ano de escolaridade, cujos níveis etários se situam
entre os treze e os quinze anos.
Dos vinte e sete inquiridos, vinte e um responderam que
costumam ler durante as férias, embora a maioria dê a sua preferência à
Banda Desenhada.
Dentre outros tipos de leitura (sem imagens), as
preferências evidenciadas poderiam ser assim hierarquizadas:
1 – Conto
2 – Romance Policial
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7 /
3 – Ficção Científica
4 – Romance e Poesia
5 – Livros de Aventuras
Os resultados deste inquérito foram de certa forma
reveladores, quanto a alguns aspectos que se prendem com a relação que
os jovens mantêm com a leitura:
1 – Os alunos que ingressam no 3.º ciclo do Ensino Básico
tiveram já, quer através do meio familiar, quer através do meio escolar,
contactos com a ficção narrativa e/ou com a poesia. Não se trata
portanto de um público virgem em relação a esta realidade.
2 – As preferências dos alunos inquiridos vão para a
ficção narrativa, mais concretamente para o conto. A extensão funciona,
sem dúvida, como factor inibidor: Os jovens (mesmo os menos jovens)
olham para um livro volumoso, como se de uma ameaça se tratasse, por
isso o conto é para os jovens desta faixa etária uma leitura mais
atraente – a acção desenvolve-se mais rapidamente, o que lhes permite
também identificar mais rapidamente as pistas que conduzem à solução de
problemas e de responsabilidades sociais.
Outra observação que nos parece importante é o facto de
as suas preferências se encaminharem para livros de ficção científica e
policiais, narrativas tradicionalmente consideradas marginais, face ao
romance, tido como a narrativa de carácter mais nobre. Pensamos que,
neste caso, a apetência por este tipo de narrativa se prende
fundamentalmente com a temática aí utilizada, muito mais de acordo com
as necessidades de fantasia próprias desta idade do que a do romance
tradicional, que trata de personagens e ambientes identificáveis com a
própria realidade.
Estas reflexões poderiam conduzir-nos a uma questão que
gostaríamos de poder aprofundar: o que é exactamente a literatura
infanto-juvenil e em que medida este tipo de narrativa serve a causa da
leitura? Conscientes de que não dispomos de elementos que nos permitam
tirar ilações rigorosas, permitimo-nos avançar uma opinião baseada
sobretudo nos contactos com os jovens com quem fomos convivendo e
dialogando em situação de aula ou fora dela. Duma maneira geral, os
livros especificamente destinados a jovens abordam temas que, de uma
maneira ou de outra lhes dizem respeito: ou porque o envolvimento
temático os implica, ou porque se identificam com o herói ou com
qualquer outra personagem. Ousando ainda generalizar, diríamos que, se
os jovens encontram, neste tipo de escrita, os ingredientes que os fazem
preferir a leitura a todas as outras solicitações a que já se aludiu
neste trabalho, então estas são obras "úteis". E se não são, na sua
grande maioria, portadoras de uma dimensão estética, que enriqueça o
imaginário juvenil, elas vão permanecer na memória de cada um como
referência que se poderá situar no plano ético, social ou outro. Estas
obras poderão ainda assumir-se como uma forma de acesso mais directa à
expressão literária ou a outras formas de expressão plástica.
O universo escolar, porque eivado de um certo formalismo
e de um carácter normativo, não reúne as melhores condições para que se
crie um ambiente de liberdade e familiaridade indispensáveis aos
primeiros contactos com o texto escrito.
Não se quer com isto alijar ou negar as responsabilidades
e o papel que cabe à Escola nesta matéria. Pretendemos tão somente pôr
esta questão para que, sem escamotear a realidade, se possa fazer uma
reflexão sobre todos os elementos que intervêm neste processo tão rico e
interactivo que é a leitura.
Sem pretender hierarquizar os conteúdos nucleares da área
do Português, acreditamos que, a nível do 3.º ciclo, tudo começa pela
leitura...
Estas páginas serão, por isso e antes de mais, um
testemunho dos processos de operacionalização que foram utilizados numa
turma do 7.º ano de escolaridade, na área da leitura.
Embora se afirme, nos
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8 / programas de Língua Portuguesa, que
para o progresso da "Leitura Orientada" e da "Leitura para Informação e
Estudo" muito contribuem as práticas de "Leitura Recreativa", continua a
não ser fácil para o professor encontrar o equilíbrio que permita
conciliar a leitura como fruição de um prazer (leitura recreativa) e a
leitura como um trabalho, sujeito a regras, técnicas e modelos (leitura
orientada e leitura para informação e estudo).
Leitura Recreativa
Entendemos a leitura recreativa como um acto voluntário,
intencional, praticado por gosto; trata-se, por isso, de uma atitude de
natureza privada, podendo mesmo desenvolver-se um diálogo muito íntimo
em que, frequentemente, se partilham desejos e sentimentos. À leitura
recreativa não podem ser impostos tempos nem espaços, o leitor tem que
ser considerado como um ente completamente livre, descomprometido. Face
a este entendimento do conceito de leitura, parece-nos pertinente
concluir que esta actividade exclui qualquer tipo de avaliação. Se o
professor souber encontrar as estratégias adequadas aos seus alunos e
se, em consequência disso, eles passarem a encarar a leitura como um
sistema natural de comunicação, que poderá, eventualmente, conduzi-los a
momentos de fruição de um prazer, terão sido atingidos objectivos
importantes e que se tomarão determinantes num processo de formação
integral do indivíduo.
A primeira estratégia utilizada foi a leitura em voz
alta, feita pelo professor, já que consideramos este tipo de actividade
capaz de evocar as primeiras histórias contadas ou lidas na infância e,
se todos aqueles que chegaram à idade adulta recordam ainda com
nostalgia esses momentos mágicos, é bem possível que uma leitura
expressiva feita pelo professor pudesse provocar esse efeito sedutor
nestes jovens, mal saídos ainda de uma infância em que nem sempre
encontraram quem lhes contasse histórias na hora do adormecer,
Optámos por esta estratégia, considerando factores de
ordem vária.
Atendeu-se, em primeiro lugar, ao perfil da turma – vinte
e sete jovens (quinze raparigas e doze rapazes), provenientes de
estratos sociais, culturais e económicos muito diferenciados, mas com
níveis etários relativamente homogéneos. Neste conjunto encontra-se uma
aluna com uma dislexia progressiva, diagnosticada por um psiquiatra
infantil. As dificuldades desta aluna situam-se ao nível da
descodificação de enunciados escritos.
Encontrámos ainda, neste conjunto, um aluno que, nos
primeiros contactos orais, evidenciou boa competência de compreensão e
expressão oral. A expressão escrita revelou-se, no entanto,
profundamente deficiente. Ao tentar identificar o elemento detonador
desta situação, fomos surpreendidos com a enorme dificuldade que o aluno
sentia quando descodificava, sozinho, sem o apoio da oralidade, um texto
escrito. Essa dificuldade mantinha-se quando lia em voz alta. Frustradas
algumas tentativas de empenhar a família no despiste das eventuais
causas desta situação, tentámos fazer com este aluno um ensino
individualizado da leitura e da escrita, depois de ouvidas duas técnicas
do ensino especial. Apesar dos resultados obtidos não terem sido os mais
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encorajadores, houve, em qualquer caso, alguma progressão, que esperamos
continuar a verificar-se até ao final deste ciclo de estudos.
Um
outro elemento caracterizador desta turma é a heterogeneidade ao nível
das competências e das capacidades reveladas.
Os elementos atrás enunciados ajudam a construir um
quadro em que as grandes linhas de força são a instabilidade, o conflito
latente ou explícito, a necessidade permanente de encontrar opções
alternativas às linhas condutoras das aulas.
A leitura em voz alta pareceu-nos ser um elemento
aglomerador e que poderia responder, de certa forma, a algumas das
necessidades evidenciadas pelos alunos: relação directa e privilegiada
com o professor que, durante aquela hora, passava a ser o contador de
histórias, o comentador que ria, sentia, comungava, ou não, dos mesmos
sentimentos perante a obra, que era, naquele momento, um objecto de que,
em conjunto, usufruíamos – um elemento catalisador de atenções e
emoções.
A obra escolhida para este primeiro contacto com o texto
escrito, mediado pela voz do professor, foi: "A Viagem Maravilhosa de
Nils Holgersson através da Suécia" de Selma Lagerlof.
Antes de entrarmos na obra através da leitura, falámos
aos alunos acerca de Nils, da poética nórdica, de neve e de gnomos.
Alguns conheciam já a história de Nils, numa versão trabalhada pelo
audiovisual e divulgada pela televisão. Pareceu-nos que a adaptação para
a televisão não lhes teria transmitido a dimensão de fascínio da
história daquele rapazinho que parte mau e regressa bom. Foi – pensamos
– a dimensão do fantástico o que maior expectativa criou.
Mostraram-se, enfim, entusiasmados em conhecer as
aventuras do pequeno Nils e partimos, amedrontados como ele, para essa
viagem Maravilhosa.
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Algumas
das descrições iniciais abalaram significativamente o interesse
evidenciado pelos alunos, face a esta actividade, tendo sido mesmo posta
em causa a prossecução da leitura, sob pena de produzir efeitos nefastos
ou até perversos em relação ao objectivo proposto.
Foram-se criando alguns pólos motivadores, em redor da
personagem e da sua evolução. E, à medida que a acção evoluía, em cada
rosto ia renascendo a vontade, o desejo de acompanhar Nils.
A continuação da leitura desta obra produziu um efeito a
que poderemos chamar de "bola de neve". Com efeito, a partir de uma
determinada altura, os alunos estavam tão interessados em conhecer o
evoluir da narrativa que alguns nos vieram manifestar o desejo de
adquirir a obra, enquanto outros, sem as possibilidades económicas dos
primeiros, vinham pedir para que as sessões de leitura fossem menos
dilatadas no tempo.
Pareceu-nos que este seria o momento oportuno para
introduzir as actividades da biblioteca de turma. Tinha sido atingido um
objectivo fundamental nesta matéria: a maioria dos alunos tinha
experimentado, pela primeira vez, o desejo de ler uma obra.
Biblioteca de turma
De início não foi fácil catalisar a atenção destes
jovens, habitualmente tão dispersos, sempre prontos a desviar a atenção
dos centros de interesse das aulas para os seus próprios centros de
interesse.
Cada um poderia, se o desejasse, levar para casa um livro
que, durante quinze dias, lhe pertenceria, que poderia ler ou não, que
poderia apenas folhear ou, se fosse caso disso, ler apenas as passagens
que
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interesse lhe despertassem. Tentámos criar, em relação a este tipo de
leitura, e de acordo com o que atrás foi afirmado, um clima de grande
liberdade e de autenticidade perante o acto de ler.
Abolidas as fichas de leitura para os livros da
biblioteca de turma, os alunos podiam, em regime de voluntariado,
exprimir as suas opiniões, oralmente ou por escrito, no momento da
entrega da obra lida.
As maiores responsabilidades foram delegadas na
bibliotecária e na tesoureira, eleitas pela turma para estes cargos.
Os alunos trouxeram livros seus, que emprestaram,
escreveram às editoras a solicitar-lhes o envio de algumas das suas
publicações e, finalmente, tentaram arranjar um fundo, através de
quotizações mensais, com o qual compraram obras do agrado geral da
turma. Todas estas actividades foram levadas à prática com bastante
êxito e a turma começou a ter uma dinâmica de leitura que se foi
desenvolvendo de forma progressiva. As aulas dedicadas à leitura
silenciosa passaram mesmo a ser uma das actividades preferidas dos
alunos.
Admite-se que para esta situação tenham concorrido os
seguintes factores:
Em primeiro lugar tratar-se de uma actividade em que os
alunos se sentem relativamente livres, porque muitos dos livros que
circulam quinzenalmente pertencem-lhes, enquanto grupo – ou porque foram
adquiridos por sua livre escolha, ou porque foram emprestados por
colegas que, ao incluir o seu livro na biblioteca de turma, adiantaram
um testemunho abonatório em relação à obra.
Em segundo lugar, apontaríamos como elemento que
considerámos motivador, o facto de não ser exigida ao aluno uma opinião
após a conclusão da leitura de qualquer publicação. Alguns testemunhos
apareceram naturalmente, no momento da distribuição dos livros. Alunos
hesitantes na escolha da obra certa pediam opinião ao professor, que
remetia esse pedido, se achasse oportuno, para os colegas que já
conheciam a obra em causa.
Procurou-se que, no âmbito desta actividade existisse o
mínimo de compromisso. O compromisso, a estabelecer-se, deveria ser
entre o aluno e própria obra e nunca entre o aluno e o professor.
Reiteramos portanto a ideia de liberdade como a principal
estratégia a utilizar para a prática da leitura recreativa: o aluno é
livre quando escolhe e, ao permitir que ele tenha consigo o livro
durante quinze dias, renováveis, admite-se que essa liberdade se estenda
ao espaço e ao tempo de leitura.
Pensámos que é justamente nesta dimensão que a leitura se
torna um acto criativo, porque solitário e livre, podendo mesmo, em
última análise, levar os alunos a criar elos afectivos com os livros de
que mais gostaram, cuidando deles como se de um objecto frágil se
tratasse. E é esta relação afectiva com o livro que vai, porventura,
conferir à leitura a sua dimensão estética, sensibilizando o
aluno-leitor para a transcendência do acto de ler.
À laia de síntese conclusiva, adiantaremos ainda duas
reflexões críticas sobre esta matéria:
A leitura recreativa, entendida como acto de liberdade e
de libertação, afasta o pressuposto avaliativo implícito a todo o
processo de ensino-aprendizagem. Seria, quanto a nós, contraditório
utilizar instrumentos para avaliar o prazer da leitura ou a sua recepção
afectiva e estética.
As actividades de leitura recreativa devem conduzir ao
desejo de ler. A consecução deste objectivo atribuirá ao professor de
Língua materna um papel determinante nesta perspectiva dual de leitura,
prazer e trabalho. Se para o aluno a leitura puder constituir um prazer,
será necessário capitalizar esta dimensão para que, em seguida e sem
esforço se passe ao texto
/
12 / como instrumento de trabalho.
Leitura Orientada
«As práticas de leitura orientada (...) exigem a mediação
do professor e visam exercitar os alunos na interpretação de textos.
As actividades a realizar devem preservar o sentido
global das obras e permitir interacções criativas com os textos,
contribuindo, assim, para aprofundar o prazer de ler. "(in Programa de
Língua Portuguesa - Ensino Básico - III ciclo)
Segundo os actuais programas de Língua Portuguesa para o
3.º ciclo do ensino básico, o que distingue leitura orientada de leitura
recreativa são fundamentalmente as práticas que decorrem de dois
conceitos: exercício (... "exercitar os alunos") e mediação.
Ambos os conceitos remetem para as relações de interacção
entre o professor e o aluno. O texto deixa de ser fruído directamente,
porque passará a haver um agente mediador que usará as estratégias que
melhor se adequem à apropriação da plurissignificação textual por parte
do aluno.
Depois de adquiridos os instrumentos necessários à
interpretação dos textos, o trabalho do professor conduzirá o aluno a
fazer uma leitura pessoal "a fim de que possa traçar, progressivamente,
o seu próprio percurso enquanto leitor e construir a sua autonomia face
ao conhecimento.»
Porque entendemos que leitura orientada não exclui
leitura motivada, antes a integra, e porque esta implica o conhecimento,
por parte do professor, das predisposições mentais e afectivas dos
alunos, procurou fazer-se, dentre as obras propostas pelo programa, uma
escolha que tivesse em conta características temperamentais e culturais
dos alunos e que, numa perspectiva operativa, pudesse ser um elemento
temático aglomerador da área escola.
Uma das obras seleccionadas para leitura orientada é a
adaptação em prosa da "Odisseia", feita por João de Barros e publicada
pela Livraria Sá da Costa.
As razões desta escolha prendem-se com os aspectos atrás
enunciados, que serão oportunamente clarificados, e com outros a que nos
referiremos de seguida.
O inquérito que aplicámos a estes alunos e a que já
aludimos neste trabalho foi um importante instrumento de auscultação das
motivações psicológicas e humanas dos discentes. Para além deste
inquérito, os alunos foram alvo de uma observação atenta, tendo emitido
opiniões, de adesão ou recusa, sobre uma gama alargada de textos
narrativos.
As conclusões a que pudemos chegar foram as seguintes:
1) – As sondagens, quanto às preferências temáticas,
indiciavam que a narrativa com elementos fantásticos e a narrativa de
aventuras colhiam as simpatias da maioria dos discentes.
A "Odisseia", considerando mesmo o hipotexto (segundo a
terminologia utilizada por Gérard Genette), atribuível ou não a Homero,
pode ser considerada como uma narrativa típica de aventuras com um
desenlace desejado pelo leitor – o regresso a casa. Para além deste
facto, desde logo aliciante, nós encontramos nesta obra uma série de
histórias, autónomas entre si, mas cuja tecitura é magistralmente urdida
através do herói – Ulisses.
2) – Os ingredientes da construção do herói, bem como a
respectiva actualização e ainda a dimensão de mito, presente na obra,
são outros factores que considerámos importante explorar junto de
adolescentes, perdidos num final de século, povoado de mitos e heróis,
mas carecidos de referências e valores.
3) – Um conhecimento, ainda que residual da cultura
greco-Iatina, parece-nos ser hoje um dado do maior interesse. Numa
sociedade que
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queremos cada vez mais humanizante e humanizada, os aspectos culturais
começam a ser encarados, já não como privilégios de elites, mas como
qualquer coisa a que muitos se sentem com direito. Se é certo que toda a
cultura ocidental mergulha as suas raízes no pensamento grego e nas
variadas manifestações da cultura greco-Iatina, como compreender hoje as
múltiplas manifestações plásticas, se não possuirmos códigos culturais
comuns para o entendimento dessas obras?
Não podemos ignorar a importância do universo referencial
clássico presente na literatura, no cinema, na música no teatro ou em
outras manifestações plásticas contemporâneas.
Pensamos que esta obra pode funcionar como um estimulante
apelo ao conhecimento do mundo grego clássico e do seu pensamento.
4) – A adaptação de João de Barros para língua portuguesa
e para um público específico é um bom exemplo de como podem ser
divulgadas as grandes obras clássicas.
Trata-se de um "hiper-texto", entendido este conceito
ainda segundo a perspectiva de Genette em "Palimpsestes: «hypertextes
– toutes les oeuvres dérivées d'une oeuvre antérieure, par
transformation ou par imitation.
De cette littérature au second degré, qui s'écrit en
lisant, la place et l'action dans le champ littéraire sont, généralement
et fâcheusement méconnues.»
Com efeito, nesta obra de João de Barros, vamos encontrar
uma organização narrativa em que cada capítulo poderia ser considerado
uma micro-narrativa dotada de uma certa autonomia, não fosse a presença
de Ulisses, que funciona, ao nível da sintaxe narrativa, como o elemento
integrador, fornecendo uma coerência sequencial às várias narrativas.
Encarada sob o ponto de vista do discurso, entendemos
tratar-se de uma obra com um vocabulário acessível, mas enriquecedor,
pela possibilidade que fornece de, por um lado, se poderem fazer
induções a partir do contexto e, por outro, de utilizar estratégias de
alargamento de vocabulário por áreas semânticas ou vocabulares,
trabalhando alternada ou concomitantemente o eixo paradigmático e o eixo
sintagmático.
Encarada do ponto de vista da sua construção estilística,
consideramos tratar-se de uma obra adequada aos objectivos propostos;
não sendo excessivamente recheada de figuras de estilo e de
plurissignificações, podemos encontrar exemplos de recursos estilísticos
que identificam e ilustram o código literário, nomeadamente ao nível da
utilização estética do adjectivo e do uso de uma pontuação com
finalidades estilísticas.
5) – Uma última razão pesou na escolha desta obra.
No início do ano lectivo em curso foram levados à
prática, duma forma generalizada, os pressupostos da Reforma Educativa.
A Área-Escola foi uma das inovações introduzidas, cuja implementação
maiores interrogações criou aos professores. Sem uma informação
esclarecedora e sem uma tradição que testemunhasse experiências, os
professores debateram-se com dúvidas e dificuldades, nomeadamente no
momento do arranque das actividades desta nova área.
Pareceu-nos que o estudo da "Odisseia" poderia ser, por
um lado, um ponto de partida e, por outro, um elemento aglutinador e
integrador.
A "Odisseia" é a narrativa que tem como principal fio
condutor uma viagem marítima, situada num tempo e num espaço históricos.
Propusemos então, a partir das referências textuais
acerca de barcos, e em colaboração com a professora de História, que a
turma fizesse uma investigação sobre as embarcações referidas na obra.
Esta pesquisa conduziria naturalmente os alunos para as questões que se
prendem com o aparecimento das primeiras embarcações: formato, materiais
utilizados para a sua construção, finalidades de utilização, etc.
Depois de concluída esta primeira parte do trabalho, que
assumiria sobretudo um carácter histórico, situar-nos-íamos no presente
para saber quais
/ 15 / as
embarcações que ainda povoam a ria de Aveiro, a utilização que lhes é
dada e qual a sua origem. Para levar a cabo esta investigação, seria
solicitada à Câmara Municipal de Aveiro um barco motorizado com o qual
faríamos a travessia da ria.
Abandonada a perspectiva diacrónica, encarar-se-ia agora
este estudo do ponto de vista sincrónico. Para tal, estudar-se-iam
algumas teses que fundamentam a origem das embarcações que ainda actuam
na ria de Aveiro: o saleiro, e variados tipos de bateira, como por
exemplo, o chinchorro. Seriam ainda observados exemplares de barcos
moliceiros, que, embora já não sejam utilizados na faina da apanha do
moliço, têm sido recuperados pelas Câmaras Municipais para fins
turísticos, ou simplesmente, como exemplares de um património cultural e
etnográfico.
De todas estas pesquisas resultariam trabalhos,
acompanhados pela professora de Português (elaboração de entrevistas,
relatórios, descrições, legendagem de fotografias) e pela professora de
Educação Visual que levaria os alunos a representar graficamente todo o
material observado. Deste trabalho poderia, eventualmente, resultar uma
edição de postais, se subsidiada pela Câmara Municipal de Aveiro.
O projecto da área escola seria assim um contributo para
o estudo do barco e a sua relação com a região de Aveiro do ponto de
vista histórico, cultural, económico, estético e lúdico.
Todos
estes projectos foram levados à prática, excepção feita à edição dos
postais por não ter havido verbas.
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