Na minha turma havia um tipo gordo que tinha aptidão reconhecida para a
Matemática. Chamava-se Albano e estava sentado atrás de mim.
O professor, sempre que acabava de explicar qualquer
problema – complicado ou não – fazia pacientemente a mesma pergunta:
"Quem não entendeu?" E lá punha eu – sempre eu! – o dedo no ar. Então, o
mestre lançava-me um olhar cheio de compaixão, respirava bem fundo e
começava de novo.
Mas uma única vez – parece-me que se tratava de qualquer
matéria nova relacionada com hipérboles, imaginem! – eu tinha percebido
tudo. Logo à primeira!
«Então, quem não entendeu?» – perguntou o professor de
Matemática. Ninguém se mexeu. Claro que também não me mexi. Outra vez a
pergunta «Quem não entendeu?». Atrás de mim, o Albano diz-me em surdina:
«Eh pá! Levanta a pata! Não ouviste? Ele já perguntou duas vezes.»
Virei-me para ele e disse: «Eu entendi.» «Tu?» – perguntou o Albano
incrédulo. «Não pode ser!» «Entendi, pois!» – retorqui eu.
Nessa altura já se ouvia um sussurro pela turma toda.
«Põe o dedo no ar, pá!»
«Vá lá, pá», insistia o Albano já nervoso, «Levanta o
dedo!» E como eu não me mexia, sai-se o Albano, com voz mansa: «Por
favor, pá, põe lá o dedinho no ar! Faz lá isso! Eu é que não apanhei uma
do que o tipo disse. Estás a perceber?»
«Então põe tu o dedo no ar!», disse eu já furiosa. «Não
posso! Ia dar muito nas vistas. Ele já está habituado a que sejas tu.
Faz lá o jeito!»
E pronto! Pus o dedo no ar.
Então, o professor, lá do alto da sua cátedra, olhou para
mim, ao mesmo tempo irónico e tranquilizador, fez-me um sinal com a mão
e disse:
«Está bem! De qualquer maneira eu ia sempre repetir, por
tua causa!»
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* Texto escrito para abertura do
Programa de rádio "Dedo no ar", produzido por professores da Escola.
Disse adeus. Meteu-se ao caminho. Começou a cantar. Alto
e desafinado.
Os lobos viram bem que ele estava nervoso e que cantava
para afastar o medo.
Viu, ou imaginou que viu, os olhos dos lobos em volta.
Ouviu, ou imaginou que ouviu, os passos cautelosos dos lobos em volta.
Os lobos cheiravam-no e cheiravam-lhe o perfume enjoativo
que o medo exala. O medo cheira à distância – sabem os lobos isso melhor
que ninguém. Fecharam os olhos para não se denunciarem. O cheiro chega
para não o perder de vista. Não rosnam os lobos. Na escuridão, sem lua,
os lobos não uivam.
Não, não viu lobos nenhuns. E recomeçou a cantiga. Para
afastar os lobos dos seus medos. Mas pareceu-lhe ter tocado em qualquer
coisa húmida e fria. Pensou que podia ter sido o focinho do lobo mais
atrevido da alcateia.
Um dos lobos aproximou-se tanto que o homem lhe tocou. No
focinho. O lobo estremeceu de medo a esse contacto. Podia ter estragado
a noite a toda a alcateia, com esse acto impulsivo. Os outros lobos
estacaram e o ar dos lobos ficou carregado da ameaça muda e cega que a
alcateia mandou para o lobo impulsivo.
Sempre cantando, o homem parou, tirou o cachimbo e o
pacote do tabaco, encheu o cachimbo com os gestos nervosos dos dois
dedos treinados. Com o cachimbo na boca, continuou a cantar. Cantar com
o cachimbo na boca não é bem cantar. Procurou os fósforos nos bolsos. Em
todos os bolsos. E nada. Deixou-se ficar de cachimbo na boca, trauteou
um verso de irritação, e começou a andar mais depressa.
Os lobos sentiram o cheiro do tabaco. Sabem que atrás do
tabaco vem o relâmpago do fósforo,
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que tudo cega inicialmente mas que acaba por
tudo mostrar. Como se obedecessem a um sinal combinado, os lobos
alargaram o círculo, o cerco. Ouviram o homem a praguejar e souberam que
ele não tinha encontrado os fósforos. Voltaram a apertar o círculo.
O homem teve a sensação que tinha estado livre de medo,
por alguns momentos. Deve ter sido a expectativa de uma fumaça bem
puxada – pensou ele. Ou terá acontecido que os lobos, na previsão do
fogo, se afastaram? – ironizou com o medo. Verdade ou não, isso durou
muito pouco tempo. Com o passo apertado, continua a caminhar, mas
sente-se seguido e cercado. Canta, mas a voz sai embargada; mais parece
que vai a chorar alto. Acaba por sentir-se pior só por se ouvir.
Cala-se. Chupa o cachimbo, vigorosamente, como se respirasse por ele.
Os lobos aproximaram-se ainda mais, quando o homem
começou a choramingar na canção. E mais ainda quando ele se calou. Mais
ainda quando ele se apressou e quando ele começou a respirar
ruidosamente pelo cachimbo. Estranham que ele ainda não tenha tropeçado
nos lobos que lhe barram a fuga para a frente. Fazem prodígios aqueles
lobos a andar sempre de lado e para trás. Sentem vontade de prolongar o
cerco só pelo gozo que a perícia lhes proporciona.
O homem chegou ao fim da rua e virou para a viela.
Sentiu-se em segurança, naquele beco sem saída de sua casa. Recomeçou a
cantar, na esperança que algum vizinho o ouça e venha à porta e a viela
se ilumine alguma coisa. Tropeça. Deve ter sido nalguma soleira. Não
pode ainda ser a sua. A sua porta está mesmo pegada ao tapume do fim do
beco. Já não pensa que pode ter tropeçado num lobo. Acelera.
Os lobos fizeram prodígios para dar a curva. Tiveram de
apertar mais o cerco. Sentem o bafo uns dos outros. Um dos lobos
tropeçou numa das soleiras salientes e não pode evitar que o homem
tropeçasse nele. Já não acreditam que o homem não tenha dado por eles.
O homem parou ao fim do beco. Apalpou os bolsos, à
procura das chaves. Vá lá! Ao menos as chaves apareceram. Pega nelas, e
continua o caminho, apoiado à parede.
Os lobos ouviram tilintar qualquer coisa... Não sabem o
que é que o homem tem na mão e o que é que prepara. Desconfiados, tomam
cautelas e preparam-se. Os lobos da frente bateram numa parede. Não
podem recuar mais. Tensos, esperam o sinal.
O homem mete a chave na fechadura. Roda-a. Abre a porta,
entra rapidamente e fecha a porta imediatamente. Acende a luz da
entrada, tira o sobretudo, vai pela casa fora acendendo tudo quanto é
luz. Na mesa, descobre uma caixa de fósforos e acende o cachimbo.
Os
lobos não perceberam. Mas sentem a falta do homem. Metem os rabos entre
as pernas e dispersam-se. Contra a lua, que apareceu no céu, recorta-se
o lobo que uiva. Como se de um sinal se tratasse, os lobos dirigem-se
para a sede do medo. Planeiam o trabalho cuidadosamente na cabeça do
homem. ■
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* Texto
escrito para abertura do programa radiofónico sobre educação e cultura
"Dedo no Ar", produzido e realizado por Arsélio Martins, Esmeralda
Assunção, José Alberto Lopes, José António Moreira e Manuela Seiça
Neves.
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