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         Isto 
        não é um discurso, mas eu sou aquele que fala. 
        
        
        Olhem para mim. 
        
        
        Se puderem, vejam como eu estou aqui entre outros, um 
        entre outros. 
        
        
        Não vim fazer um discurso, mas dar palavra às águas que 
        nos atravessam quando a emoção galga das nuvens do peito para se sumirem 
        como as ondas se somem nos areais ressequidos em que nos esculpiram os 
        rostos. Não vim fazer um discurso. Vim dar a um mar de palavras de água. 
        E são as líquidas palavras por dizer que não me deixam calar. 
        
        
        Amanhã o nosso rio retoma o seu curso e com ele partem as 
        palavras em que nos afogámos hoje. Um homem com consciência, que 
        abandonou este nosso mundo para a abraçar a loucura, colecciona palavras 
        na foz deste rio. Ele guarda-as porque guarda a areia em que foram 
        escritas pelos dedos da água no bolso do seu passado sem futuro. 
        
        
        E eu vim aqui para defender a felicidade sem futuro, mas 
        com futuro: a felicidade de hoje. Quem tudo faz em nome da felicidade do 
        futuro, sacrifica a felicidade de cada momento. Em nome da felicidade do 
        futuro, se forjam todas as tiranias do presente que tentam ser tiranias 
        de todos os hojes daqui até ao futuro. Apresentam-nos a felicidade como 
        uma linha do horizonte e a linha do horizonte afasta-se à medida que 
        dela nos aproximamos. Eu vim aqui para defender que a nossa felicidade 
        de hoje é uma parte imprescindível da felicidade do futuro. Pode não 
        ser, mas a escola em cada dia de hoje deve ser escola de pessoas felizes 
        e que é essa a escola que pode construir algum futuro que importe. Uma 
        escola que se faz em nome do futuro sem ter um presente, que valha a 
        pena lembrar, é uma velha tirana a estragar o presente em nome do futuro 
        que está a envenenar. Com um presente envenenado. 
        
        
        Eu quero viajar de hoje até amanhã voando. "A linha do 
        meu voo é uma estaladura que atravessa a chávena. Como um morcego 
        fendendo a porcelana da noitinha, assim eu quero sair do seio, do ninho 
        de hoje. Quem é que assim nos virou, de tal forma que, em tudo o que 
        façamos, estamos sempre na atitude de alguém que parte?" (Rilke) Eu 
        quero viajar pela noite entre os dias, sentindo o ar como quem atravessa 
        as águas, modulando todos os lados do corpo. Como o peixe fusiforme 
        atravessa desde a profundidade até à luz. 
        
        
        Sabemos das tuas partidas. Mas não sabemos que partido 
        tomas. Nem és peixe nem és carne, dizem-me. Professor ou aluno? De que 
        lado da vida te perdes? 
        
        
        Eu sou peixe e sou carne. Sou a carne do peixe. E sei que 
        vivo para ser comido. Não há angústia nisto, é o que vos digo. Quem é 
        que me quer pescar? 
        
        
        Minha mãe pescou-me das suas águas. Olhou as minhas 
        escamas brilhantes ao sol. Limpou-me cuidadosamente e educou-me para o 
        ar. Só por isso não voltei para as águas, neblinas do limbo. Foi a minha 
        fraqueza que me inibiu as asas para os voos que ela planeou para mim. 
        
        
        Não usem anzóis afiados. Podem usar palavras afiadas. 
        
        
        Na escola, (e não será assim nas outras?) as pessoas usam 
        as palavras, sussurram palavras, segredam palavras, disparam palavras. 
        Há palavras para amar, para animar, para repreender, para replicar, para 
        censurar; há palavras para abraçar e há palavras para esmurrar; para 
        esfaquear o vento, as ondas mais altas, o mar. Há palavras para explicar 
        as cores, os odores. A escola é, antes de mais, a galáxia das palavras e 
        das imagens que as palavras desbotam. 
        
        
        Usam-se palavras como calhaus afiados. Há navalhas e 
        palavras para ferir. Há quem as dispare dos bolsos onde as teve sempre 
        escondidas. Eu uso as palavras nas palmas das mãos abertas. Como calhaus 
        rolados pelas águas de mil marés vivas. Palavras lavadas pela água, 
        expostas para corar, ao sol destes projectores. 
        
        
        É a água do mar que escorre pelas linhas da minha mão ou 
        do rosto ou do corpo: pela linha da vida, pela linha da morte, pela 
        linha do coração correm e morrem as águas que galgaram as margens dos 
        olhos. E eu? Que faço eu? Na escola como peixe na água. Deixem-me 
        respirar esta água, este ar. Por estas águas troquei o meu passado e o 
        meu presente de ar anunciado na palma da mão de minha mãe, nos gestos de 
        me educar para o ar. Onde estão os meus amigos? Quase como sombras 
        longínquas, postais de Lisboa e porto escritos apressadamente com tinta 
        de água: Como vais? Que é feito de ti? Que resposta tenho para este 
        passado? 
        
        
        Mãe, minha mãe, que quero eu? Se não voltar ao princípio 
        para que tudo recomece e possa acariciar os meus sonhos, os meus amigos 
        que se perderam nessa sombra espelhada destas águas, em que me movo, em 
        vez de tudo o resto. Mas os caminhos de regresso estão todos fechados e 
        é por isso que a escola é um mundo em que me tenho de reconstruir e 
        reconstruir os castelos no ar, nem que sejam outros os arquitectos, os 
        alcaides, os actores, os estudantes que brilham no escuro e me reflectem 
        no que vale a pena. Ou valeu a pena. É aqui mãe, entre as ruínas deste 
        presente, que das águas desta escola pescamos os filhos da escola, os 
        educamos para o ar e quem nos dera mãe que lhes déssemos asas! 
        
        
        Está descansada, mãe. Já ninguém se ri do teu filho. 
        Porque ele envelheceu demais no discurso da água. E porque ele deixou, 
        por momentos, de ser quem era, o outro, aquele que não está no 
        espectáculo. Olham para ele e não o vêem. As palavras que ele disse eram 
        água pelos dedos abertos. Amanhã, à luz do dia, não haverá lembrança 
        deste gesto insensato. E todos viverão como antes em nome do futuro. 
        
        
        Arsélio Martins  |