Partir à descoberta de novas terras ou permanecer
em terras lusas é uma escolha que não requer muito tempo de
reflexão! Principalmente se tivermos em conta que estranhamente,
nos parece sempre mais aliciante uma visita ao estrangeiro do
que uma viagem em solo lusitano.
O curioso é que desde há algum tempo os planos
feitos para uma viagem à cidade de Segóvia acarretaram consigo
situações um tanto bizarras e diversos momentos de atribulação.
Mas nada que uma turma de 11.º ano, aliada a professores
perspicazes, não pudesse resolver. Finalmente, e após vários
momentos críticos, ficou decidido que Segóvia nos receberia como
visitantes por dois dias.
Assim, ficou decidido partir de Aveiro no dia 18
de Março de 1999, uma quinta-feira, pelas 7h:30m. No entanto,
quando chegámos à porta do liceu, local de encontro das três
turmas do 11.º ano e dos professores acompanhantes, o condutor
da camioneta que nos devia levar ao nosso destino, estava
provavelmente ainda a fazer a sua "toilette”, actividade à qual
deve dedicar todo o seu tempo, motivo que nos fez esperar, sob
os primeiros raios matinais, cerca de uma hora. Finalmente,
partimos pelas 8h:30m, confortavelmente instalados, ao encontro
de novos horizontes. Entretanto, uma tendinite iria por momentos
abalar a saúde da minha estimada amiga e companheira de viagem
Vera. Mas, como a indústria farmacêutica proporciona aos seus
consumidores milagrosos produtos, pouco tempo depois Vera
encontrava-se restabelecida e pronta para afrontar o convívio
fraterno dos nossos "amiguinhos” das turmas vizinhas.
A auto-estrada que leva à fronteira oferece-nos
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paisagens essencialmente marcadas pela monotonia e uma luz
demasiado opaca para os nossos olhos ávidos de mudança. Mas, de
camioneta ou de avião, com direito a bilhetes de primeira
classe, acabaríamos por chegar a Espanha da mesma maneira, então
para quê perdermos tempo com lamúrias infantis? Assim, passámos
tranquilamente a fronteira e entrámos em solo espanhol, sem mais
demoras, pois já era tempo de saborear a próxima refeição do
dia: o almoço!
Santo Deus! Que pavorosa visão! Não desejo que os
caros leitores alguma vez deparem com tal! Da janela da nossa
camioneta, em frente a um restaurante espanhol, foi-nos possível
observar um camião estacionado ao nosso lado onde jaziam vacas,
ou membros de seus corpos expostos ao ar livre, servindo de
local de repasto para todos os insectos das redondezas. Estranha
situação alguns anos após o episódio polémico das "vacas
loucas", nomeadamente aqui na terra dos "nuestros hermanos”. Mas
havia que fechar os olhos a esses percalços de viagens, tomar a
nossa refeição e partir, saciados.
O percurso até Segóvia desenrolou-se então sem
mais acontecimentos nefastos. Por volta das 16h:30m avistámos as
muralhas de Segóvia, o que originou uma agitação profunda entre
os nossos companheiros de viagem, que deixavam transparecer,
através dos seus gritinhos histéricos, a sua alegria por chegar
ao destino tão ansiado!
Na cidade medieval, envolta de mistérios,
pressinto ainda planar, ó nobre Alcazar, trágicos destinos
dentro dos teus altos muros, ocultos nas tuas passagens
secretas, torres ao abandono.
Cenário perfeito para as aventuras de Percival e
Lancelote, ou os devaneios de Luís II da Baviera! O que não
dariam muitos românticos para contemplar o voo dos corvos à
volta das torres, atraentemente sinistras, desse castelo de
inspiração alemã! Quadro perfeito para os olhos ansiando por
sedutoras imagens!
Se Gérard de Nerval me pudesse ouvir acusar-me-ia
de tentar vulgarizar o seu estilo tão único de descrição de
locais de embriagante beleza e Waterhouse forçar-me-ia de certo
a levá-lo a tal local para poder assim fazer desse castelo o
cenário onde, certamente, pintaria uma das suas musas, trajada
de longas vestes, envenenando um possível pretendente através de
lânguidos olhares e poções mágicas.
Foi uma pena o castelo só estar aberto aos
visitantes até às 18h:30m, pois quem sabe em quantas mais
aventuras nos poderíamos ter metido e que horríveis segredos
descoberto!; mas havia que recordar que não estávamos a rodar o
"Drácula” de Francis Ford Coppola e nem sequer tínhamos direito
a toda uma equipa de maquilhadores, cabeleireiros e assessores de
moda.
As ruas da cidade não se cobriam de tapetes
vermelhos à nossa passagem, mas encheram-se, sim, de mais
estudantes a brincar aos turistas.
Foi então decretado que as três muitíssimo bem
comportadas turmas tinham autorização para se dispersar e, tal
como borboletinhas selvagens, explorar a cidade à vontade. Desta
forma, aproveitaram para aliviar os seus bolsos das várias
pesetas com que os tinham recheado, nas diversas lojinhas
turísticas, enquanto os vendedores rejubilavam de prazer por ver
tais criaturas inocentes dispostas a serem exploradas.
Estimados leitores, não desejando maçar-vos mais
com estes pormenores, convido-vos a conhecer o hotel para o qual
logo seguimos.
Instalados no EI Corregidor, pudemo-nos aperceber
de que não seríamos invadidos por uma
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legião de baratas ou certos roedores clandestinos durante a
norte, o que a bem dizer apaziguou a camada feminina do grupo.
Após instalação, jantámos para, em seguida, nos dedicarmos a uma
esmerada maquilhagem (sim porque a "night' espanhola
esperava-nos). Depois de inundadas por um frasco de brilhantes
para os olhos, saímos para a rua que, em breve, se veria
infestada por estes curiosos pirilampos.
Foi apenas por volta da meia-noite (sim, pois o
tempo da Cinderela já lá vai!) que pudemos entrar numa discoteca
espanhola, acompanhados evidentemente pelos nossos protectores
professores.
Eu e as minhas amigas decidimos inaugurar
imediatamente a pista de dança ao som dos agudos da Tina Turner,
e assim libertar toda a tensão acumulada pelos testes das
semanas anteriores, o que nos custou alguns olhares reprovadores
do clã adolescente que nos rodeava; mas, felizmente, a pista não
se transformou numa arena e não houve cristãos chacinados, pois
afinal era em Espanha que estávamos. Foi antes um local onde nos
divertimos, animadíssimos. E desta vez, era Ricky Martin que nos
fazia bailar! No momento em que os "barmen” se apressavam a
servir as bebidas pedidas por alguns dos alunos, os professores
entraram em alerta e vieram 'armados dos seus escudos e lanças'
correr em seu socorro! E assim se passaram cerca de duas horas,
após as quais nos viemos arrastando até ao hotel, onde nos
preparámos para uma noite merecida de descanso.
Desgraça! Durante a norte, os telefones internos
começaram a tocar desalmadamente e as portas foram-se pouco a
pouco abrindo, formando em cada quarto reuniões em pijama! O
resto é estritamente confidencial. Se houve conspirações, já não
sei, não quero saber e tenho raiva a quem souber. O que sei é
que ninguém foi assassinado, mas se foi, ressuscitou, pois logo
pela manhã, todos se levantaram e se dirigiram para o
restaurante do hotel, onde desfrutaram de um consistente
pequeno-almoço, que lhes viria a dar forças para o novo dia que
se apresentava.
Após as malas feitas, partimos satisfeitos com o
caloroso acolhimento que recebemos e, evidentemente, com o facto
de não termos de fazer as nossas camas ao levantar!
Próximo destino: Granja de San IIdefonso.
Seguiram-se fotografias em conjunto, individuais,
acrobáticas, enquanto visitávamos uma construção colossal, que
serviu de residência a Filipe V. Mergulhámos no universo dos
cristais, dos veludos, deixámo-nos absorver por aquele espaço
imenso, percorrendo galerias de quadros e tapeçarias, onde pude
mesmo contemplar algumas obras do meu caro Dürer.
Enfim, suspendamos o exame desta questão. O resto
são memórias perpetuadas em fotografias. Durante as duas horas
de repouso que nos foram dadas, encarnámos em aventureiros
destemidos e procedemos a uma minuciosa exploração da
localidade. Aventuras estas que nos permitiram, por mera
curiosidade, assistir a uma missa celebrada em espanhol. E agora
vos digo, caras leitoras, assíduas ouvintes da celebração
religiosa, vós que vos dedicais à vida cristã, com tanto fervor
e boa vontade, mesmo que seja para depois criticar, discriminar
e caluniar o próximo (como de certo não vos foi ensinado no
templo sagrado), renunciai à sesta quotidiana e vinde fazer
parte deste acto logo após o almoço; e assim, nas vossas
cabecinhas ocas, tende a ilusória esperança de que os pecados
cometidos durante a manhã vos serão perdoados à tarde!
Dito isto, regressemos à camioneta que nos espera
de modo a sermos conduzidos ao próximo destino: Ávila.
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Teríamos entrado numa cidade fantasma? Dentro das
muralhas da dita, as estreitas ruas medievais encontravam-se
completamente desertas e o comércio fechado. Mas eis que a visão
de um outro grupo de turistas veio varrer de vez as nossas
suspeitas. Era apenas um feriado, o de S. José. Que pena! Teria
dado um perfeito relato embebido em poesia, mas que se dane! A
visita à Catedral previa-se complicada, pois havia uma grande
afluência de pessoas; e como o sol teimava em nos atingir com os
seus lancinantes raios, decidimos dedicar o resto do nosso
precioso tempo ao repouso. É preciso ver que ainda não estávamos
restabelecidos da noite anterior.
Impossibilitados de fazer compras, pois as lojas
continuavam obstinadamente fechadas, regressámos ao nosso
tradicional transporte, onde permanecemos até Vilar Formoso. Aí,
os ogres mais gulosos puderam reabastecer as suas mochilas com
gigantescos sacos de bombons e enormes tabletes de chocolate na
fronteira de Espanha. Satisfeitos, os mesmos ogres puderam
continuar o seu percurso até Mangualde, onde os seus estômagos
começaram a preveni-los que a hora do jantar se aproximava. E
foi ao avistar uma estação de serviço, já em território
português, que estes seres vorazes começaram a planear um
assalto à cozinha, e possível tortura psicológica ao cozinheiro,
caso este se recusasse a preparar-nos uma sopa "à nossa moda”!
Sim, pois os caros leitores não imaginam decerto
o suplício que é ingerir comida de plástico durante dois dias
consecutivos, após os quais ideias pouco cristãs começam a
invadir as nossas mentes ávidas de um alimento saudável. Não,
não foi necessário recorrer à violência, pois à nossa chegada
foi-nos servida uma sopinha de batata, que saboreámos
deliciados, enquanto alguns colegas acabavam com os restantes
pacotinhos de batatas frijas esquecidos no fundo das mochilas.
Assim, continuámos a nossa viagem até Aveiro, que
se passou agradavelmente entre risos, conversas afáveis e planos
para uma próxima viagem.
Foi então com prazer que passámos o "Feira Nova”,
o canal de Aveiro e chegámos à porta da nossa prezada escola
José Estêvão, pelas 23h:30m, onde os nossos progenitores
ansiavam por verificar se continuávamos inteirinhos, como da
última vez que pousaram os olhos sobres nós.
Neste contexto, a nossa directora de turma pôde
tranquilamente apreciar a partida das suas "criaturinhas
amorosas" sob as asas paternais, ou maternais, aqueles que bem
no íntimo sabiam que, longe das suas crias, tinham tido a rara
oportunidade de desfrutar de dois longos e preciosos dias de paz
e sossego.
Vanessa Autun
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