José Estêvão Coelho de Magalhães
1809-1862
Manuel José Gonçalves Carvalho
Personalidade multifacetada de soldado, orador
parlamentar, politico, jornalista, professor e advogado, José Estêvão
jamais abandonou a primeira linha da luta pela Liberdade, não recuando
perante situações a que poderia ter-se acomodado, antes arriscando
carreira e vida pelos seus ideais.
Filho de Luís Cipriano Coelho de Magalhães e de D. Clara
Miquelina de Azevedo Leitão, José Estêvão nasceu em Aveiro a 26 de
Dezembro de 1809, aqui fazendo os seus primeiros estudos.
Em 1825 encontramo-lo matriculado no primeiro ano de
Direito, na Universidade de Coimbra, curso que interromperá ao sabor dos
grandes acontecimentos políticos da época, e da sua intervenção directa
nas lutas contra o absolutismo.
Em 1828 o Vintismo sofre o último dos grandes golpes de
estado, dirigido por D. Miguel, aclamado rei absoluto em vários pontos
do País. A Carta Constitucional, que D. Pedro outorgara aos portugueses
em Abril de 1826, deixa de vigorar, mas os baluartes do liberalismo
ainda estrebucham, assistindo-se a levantamentos populares e militares
no Porto, Aveiro, Coimbra, Algarve e Terceira (Açores).
José Estêvão alista-se no Terceiro Batalhão Académico,
como aliás o farão Garrett e Herculano. As forças liberais acabarão
vencidas, devido em grande parte à mediocridade dos seus chefes,
desfecho que será sentido de forma aterradora em Aveiro, onde se sucedem
as prisões e perseguições, que culminam na execução de nobres filhos
desta terra, enforcados e decapitados no Porto. As cabeças destes
Mártires da liberdade vieram de seguida para Aveiro, onde os
absolutistas as espetaram no alto de postes, colocados durante dias em
vários pontos da cidade. O obelisco que se levanta na praceta junto aos
Arcos, frente à sede do Clube dos Galitos, é uma homenagem de Aveiro a
estes Homens. Aquelas cabeças foram depois religiosamente recolhidas, e
estão no monumento que a cidade mandou erguer no Cemitério Central. Na
sequência da derrota de 1820, José Estêvão foge para a Galiza e dali
passa para Inglaterra, onde os liberais portugueses procuram
reorganizar-se. Estas forças, que retiram penosamente para a Galiza,
famintas e debaixo de forte intempérie, são acompanhadas pelo velho
conselheiro Joaquim José de Queirós (morador em Verdemilho e avô de Eça
de Queirós), o único elemento da Junta do Porto que recusou embarcar no
vapor Belfast, preferindo acompanhar a pé «as mais de 12.000 almas» que
marcharam para o exílio.
Em 1829, José Estêvão está com as forças que embarcam
para os Açores, onde redige a Crónica da Terceira. Em 1831 assiste à
tomada do Faial e, no ano seguinte, integra as tropas que desembarcam no
Continente, na praia de Arenosa de Pampelido, tomando igualmente parte
na sortida a Vila do Conde. Participa depois activamente na defesa da
cidade do Porto, dirigindo o reforço das fortificações da Serra do Pilar
e destacando-se em combate, o que lhe valeu o grau de cavaleiro da Torre
e Espada, ordem entretanto restaurada por D. Pedro IV, por alvará de 28
de Julho de 1832.
José Estêvão pertencia então ao corpo de artilheiros
académicos, onde tinha o posto de cabo, recebendo aquela alta
condecoração por vontade expressa dos seus camaradas de armas, que se
recusaram a sorteá-la entre si, conforme era hábito e fora superiormente
decidido.
O reconhecimento das altas qualidades militares e humanas
do jovem aveirense levam o respectivo comandante a propor a sua passagem
para o exército de linha, o que vem a acontecer em 4 de Abril de 1833,
sendo integrado com o posto de Segundo Tenente. Cinco dias depois
batia-se corajosamente pela tomada de Covelo, para, em 25 de Julho do
mesmo ano, se cobrir de glória na defesa da Flecha dos Mortos, ganhando
o grau de oficial da Torre e Espada. Em 1834 é promovido a
Primeiro-tenente e, em Fevereiro desse ano contribui mais uma vez para a
vitória liberal, pelo denodo com que combate em Almoster. A guerra civil
termina nesse mesmo ano, pelo que, com a vitória liberal, José Estêvão
regressa a Aveiro, donde segue para Coimbra, para continuar os seus
estudos. O soldo de primeiro-tenente servirá então para financiar a sua
formatura, bem como a de seu irmão António Augusto. José Estêvão termina
o curso de Direito em finais de 1836 e, no ano seguinte, é eleito
deputado por Aveiro às Constituintes. O homem que defendera os seus
ideais com as armas irá agora defendê-los com a palavra, quer no
Parlamento quer na imprensa, nomeadamente no jornal "O Tempo", que
fundou em 1838, ou no jornal "Revolução de Septembro", também por ele
fundado, em 1840, de parceria com o seu amigo, conterrâneo e companheiro
de todos os momentos, Manuel José Mendes Leite.
Ainda em 1840, José Estêvão concorre e ganha o concurso
para leccionar a 1.ª cadeira da Escola Politécnica – "Economia Política,
Direito Administrativo e Comercial". O militar, político, parlamentar e
jornalista é agora também professor do ensino superior. As suas
qualidades pessoais, a sua verticalidade moral e a sua benevolência
estão bem patentes em alguns episódios da sua vida. A generosidade de
José Estêvão ia ao ponto de se envolver, sem conhecimento do
interessado, na consecução de um cargo rendoso para um conterrâneo em
dificuldades, apesar deste ser seu inimigo político e não manter com ele
quaisquer relações.
O seu espírito de tolerância, e a fidelidade aos
princípios que sempre o nortearam, levaram-no, em 1843, a defender em
tribunal o jornal miguelista "Portugal Velho", acusado de abuso de
liberdade de imprensa.
A posição de que desfrutava poderia tê-lo transformado
num homem acomodado, passível de vender-se a interesses políticos ou
económicos, que lhe assegurassem um futuro promissor e desafogado. Mas
na alma deste homem não cabiam interesses mesquinhos, nem ele se
alienava, qual vendilhão do templo, aos interesses materiais, que jamais
sobrepujaram as suas convicções morais e políticas.
A Constituição de 1838, que José Estêvão ajudara a
elaborar, na sua qualidade de parlamentar constituinte, vai deixar de
vigorar em 1842, na sequência do pronunciamento de Costa Cabral. Os
barões do dinheiro venciam assim as forças da Revolução de Setembro de
1836, em cujas fileiras José Estêvão militava, e cujo ideário se
identificava com a esquerda liberal ou a ala democrática do liberalismo
português. José Estêvão conspira e combate em todas as frentes, mesmo
quando o seu jornal "Revolução de Septembro" tem de passar à
clandestinidade, não deixando porém de se publicar e chegar a todos os
pontos do País. E quando, em 1844, a pressão da ditadura cabralista
atenta contra as liberdades fundamentais, o capitão de artilharia José
Estêvão abandona mais uma vez os confortos da vida, para pegar em armas
com o Regimento de Cavalaria de Torres Vedras.
Num dos seus discursos, e em resposta ao Ministro do
Reino, José Estêvão já reconhecera com desassombro, em pleno Parlamento,
«que a resistência armada é, em certas ocasiões, não digo um direito,
mas uma obrigação!» Encurralado na praça de Almeida, demitido do posto
de capitão e de lente da Escola Politécnica, o grande tribuno consegue
romper o cerco e deslocar-se para Trás-os-Montes, onde tenta sublevar
várias localidades.
A notícia da rendição de Almeida fá-lo fugir para Paris,
onde se conservará cerca de dois anos, a viver no n.º 20 da rua Laffite.
Em 16 de Abril daquele ano, Costa Cabral assinava uma portaria pondo-lhe
a cabeça a prémio por um conto de reis.
Em 1846, na sequência da sublevação da Maria da Fonte,
cai o ministério dos irmãos Cabrais. José Estêvão regressa a Portugal,
beneficiando da amnistia que o ministério Palmela decretara para os
revolucionários de 1844. Em 5 de Outubro daquele ano aparece o programa
setembrista redigido por José Estêvão, com o qual a esquerda liberal
pretendia pôr cobro à situação político-militar resultante da ditadura
cabralista e dos acontecimentos da Maria da Fonte.
D. Maria II assusta-se com o evoluir dos acontecimentos e
acaba por promover o golpe de Estado de 6 de Outubro, demitindo o
gabinete Palmela e substituindo-o pelo ministério de Saldanha, que se
apressa a restabelecer a antiga lei eleitoral e a dissolver as Câmaras.
O País vai-se revoltando aqui e ali, do norte ao sul, enquanto José
Estêvão, que tinha retomado a direcção do jornal "Revolução de Septembro",
se vê forçado a homiziar-se para escapar à prisão. Conseguindo, sob
disfarce, fugir de Lisboa, aparece-nos a trabalhar afanosamente na
organização das forças revolucionárias, sucessivamente em Santarém,
Caldas da Rainha, Alcobaça e Nazaré. Em Dezembro encontramo-lo envolvido
na formação da Junta de Setúbal e, no ano seguinte, percorre o Alentejo,
na luta de guerrilha – a Patuleia alastrava por todo o território
nacional. A pacificação virá de seguida, imposta por forças espanholas,
francesas e inglesas que a rainha chamara a Portugal.
Em 24 de Junho de 1847, a Convenção de Gramido põe fim à
guerra civil e José Estêvão, amnistiado, retoma o magistério da Escola
Politécnica, mas fica proscrito do Parlamento na legislatura de 1848-50.
Em 1848, uma intervenção do Duque de Saldanha no
Parlamento, afirmando ser necessário «esmagar com mão de ferro a hidra
revolucionária», deu lugar à chamada Conspiração das Hidras, onde
pontificavam nomes como Oliveira Marreca, Rodrigues Sampaio e José
Estêvão, que, durante algum tempo, defenderam soluções republicanas para
a política nacional. A repressão policial não se fez esperar, o que
obrigou José Estêvão a passar uma vez mais à clandestinidade.
No ano seguinte regressa novamente à regência da sua
cadeira na Escola Politécnica e, em 1851, a Regeneração trá-lo de volta
ao Parlamento, É neste período que se bate pela construção do Liceu de
Aveiro e pela passagem, nesta cidade, do caminho de ferro Lisboa-Porto.
O novo edifício do Liceu de Aveiro, que José Estêvão
exigia, em intervenções parlamentares, desde Julho de 1853, viria a ser
inaugurado em 1860, enquanto a linha do caminho-de-ferro acabaria por
passar em Aveiro, depois de várias peripécias, acusações e pressões, de
diversa ordem, que pretendiam calar a voz do insigne aveirense, Segundo
Luís de Magalhães, filho e biógrafo do tribuno, «Salamanca tentou
suborná-lo para que não insistisse no traçado do caminho de ferro do
Norte, que levava essa linha por Aveiro. Ouvi-o dizer muitas vezes, e
ouvi, até, contar que o emissário do espanhol tivera de galgar
rapidamente as escadas para não receber senão em palavras a recusa da
sua afrontosa proposta.» Talvez por tudo isto, respondendo a torpes
insinuações, José Estêvão, em manifesto de 1861, dirigido aos Snrs.
Eleitores do Círculo de Aveiro, afirme a determinado passo:
«Quanto a melhoramentos locaes nada posso prometter, e
não vos tenho feito mais do que aquillo a que tendes direito. Não lezei
nenhuma província do reino para beneficiar a minha terra. O meu voto foi
sempre prompto a favor de todos os progressos, qualquer que fosse a
localidade do paiz que os reclamasse.»
O exílio em Paris, que certamente permitiu a José Estêvão
observar mais de perto a instabilidade europeia e a insatisfação
francesa, quiçá o germinar dos acontecimentos de 1848, bem como uma
natural inquietação perante a permanente fragilidade política e social
do seu país, onde a recuperação económica se mostrava inadiável e as
reformas de fomento se impunham, devem ter empurrado o tribuno para os
braços da Regeneração. Esta fidelidade à ordem regeneradora, que
aprioristicamente pode ser percebida como uma incoerência do seu
percurso político, só será quebrada em 1860, aquando do gabinete
presidido por Joaquim António de Aguiar, embora já se adivinhe em 1857,
quando, na sessão parlamentar de 23 de Maio, ocupando a sua «antiga
cadeira de deputado da extrema esquerda», discursou sobre o "Contrato do
Tabaco". O ilustre parlamentar parece sentir o peso de uma certa
incompreensão, face às suas opções políticas, e é nesse sentido que
interpretamos as suas sucessivas explicações e justificações. No
entanto, não devemos esquecer que tanto os regeneradores como os
históricos eram facções da mesma família política, o chamado partido
Progressista, nascido da coligação de todas as forças liberais que se
opunham ao cabralismo. Convém igualmente lembrar que, até ao último
quartel do século XIX, não podemos falar de partidos no sentido moderno
do termo. Os diferentes grupos políticos tinham uma débil organização e
eram, frequentemente, muito indefinidos nos aspectos ideológicos e
programáticos.
José Estêvão já em 1857 mostrava o seu descontentamento
pelo crescente oportunismo político, e pelos trânsfugas que se iam
vendendo ao ritmo das mordomias, privilegiando com as suas diatribes o
ministro António José d'Ávila, que o gabinete progressista de Loulé fora
recuperar das antigas hastes cartistas e cabralistas. Aliás, seriam
gabinetes presididos pelo Marquês de Loulé, companheiro político do
grande tribuno ao longo de quase todo o segundo quartel de Oitocentos, o
alvo dos discursos mais famosos e vibrantes do estro estevaniano:
referimo-nos aos discursos sobre as questões do «Charles et Georges» e
das «Irmãs da Caridade».
O probo e distinto orador jamais se vendera! Antes
alardeara sempre uma grande independência intelectual, uma invulgar
coerência cívica e política, que facilmente captamos nas suas mais
importantes intervenções parlamentares. Em 1840 já se insurgia contra a
promiscuidade política, contra o amálgama ordeiro, agrinaldando o
discurso do «Porto Pireu» com algumas comparações de ironia demolidora:
«o centro da câmara é um fidalgo d'aldeia, que se pretende aparentar com
todos os titulares, por consanguinidade, por afinidade, e até por
bastardia!»
Quando se afastou da Regeneração, enveredando, desiludido
mas não vencido, por um certo isolacionismo político, José Estêvão
parece ter sentido necessidade de se explicar perante o eleitorado. Nada
melhor que dar-lhe a palavra: «Era natural, se falássemos, que me
perguntásseis a que partido eu pertenço. E talvez não, que os
genealogistas políticos vão sendo raros, e os eleitores a quem me
dirijo, prezam mais actos de boa governação do que pergaminhos
partidários. (...) Eu pertenço ao partido histórico pela parte que tomei
em todas as suas lutas parlamentares e armadas para sustentar as
liberdades públicas. Pertenço ao partido regenerador por lhe ter dado o
fraco concurso do meu voto nos muitos commettimentos com que elle
despersuadio o paíz d'uma politica de theorias e paixões para o occupar
de melhoramentos reaes e civilizadores. Para o futuro pertencerei de
certo ao partido que começa a formar-se. (...)»
O tribuno casara-se em 1858 com D. Rita de Moura Miranda
e, no ano seguinte, nascera-lhe o seu segundo filho, Luís de Magalhães,
já que Coimbra, quando corria o ano de 1837, lhe tinha trazido um filho
natural, baptizado de Mateus, fruto de amores de estudante.
Em 1860 nasce-lhe a filha Joana, que viria a falecer logo
em Abril do ano seguinte, quando o pai andava em campanha eleitoral.
O ano de 1861 é para José Estêvão um período de forte
actividade política. Para além de trabalhar na organização de um novo
partido, como se pode perceber pelo fragmento do manifesto eleitoral
atrás transcrito, ganha as eleições em candidatura de oposição ao
governo. Neste mesmo ano vende a "Revolução de Septembro", passando a
colaborar activamente, desde o seu primeiro número, no jornal “A
Liberdade". Em Aveiro, perante a hostilidade de Manuel Firmino de
Almeida Maia, proprietário do jornal "Campeão das Províncias" e seu
ex-correligionário, funda, com um grupo de amigos, o periódico "Districto
de Aveiro".
No ano seguinte, para além de continuar a trabalhar nas
habituais tarefas políticas, José Estêvão irá privilegiar a Confederação
Maçónica Portuguesa, da qual acabava de ser eleito Grão-Mestre. Com
tradições maçónicas na família, já que seu pai, Luís Cipriano,
pertencera à Loja que em 1823 funcionava em Aveiro, na Quinta dos Santos
Mártires, José Estêvão foi iniciado exílio de Plymouth, em 1828, com o
nome simbólico de Pórcio. Tendo ascendido ao sétimo grau do Rito Francês
(Soberano Príncipe Rosa Cruz), o tribuno aveirense foi Venerável da Loja
5 de Novembro, de Lisboa.
Entre 1861 e 1862 José Estêvão está ainda envolvido na
fundação do Asilo de S. João em Lisboa, o que faz com meios financeiros
da Maçonaria, bem como, em Aveiro, de um asilo para a infância
desvalida.
Repentinamente, em 4 de Novembro de 1862, José Estêvão
Coelho de Magalhães morre em Lisboa, quando nada o fazia prever,
deixando sua esposa grávida do filho que virá a nascer posteriormente e
que virá a ser baptizado com o mesmo nome do pai.
O duque de Loulé, chefe do ministério histórico que
governará o País de 1860 a 1865, envidava esforços através de amigos
comuns no sentido de o trazer ao governo, pretendendo entregar-lhe a
pasta do Reino. «Privando com o poder, muitas vezes, e n'algumas o
seu maior esteio no parlamento, nunca ambicionou o governo, não
sollicitou nem acceitou mercês ou condecorações. O peito onde pulsava
tão grande coração, só se ornou com a Torre e Espada, ganha no campo de
batalha, e com o coIlar da academia das sciencias, que lhe foi conferido
pelo seu talento oratório. Eram os tropheos que havia conquistado nos
dois campos de lide em que tantas victórias alcançara, e os emblemas da
sua profissão – as armas e as letras.»
Manuel José Gonçalves Carvalho
Professor de História da
Escola Secundária de Jaime Magalhães Lima
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