ESPARTILHO
Catarina Soares Martins
Não posso com o Gomes de Carvalho! E logo fui sonhar com
ele! De todos os que me espartilharam ele foi o pior... O pior também
não; dos piores. De que te ris? Achas piada a que me encolham? Claro que
se não fossem esses Gomes de Carvalho todos que para ai andam, tu nem
sequer existias. Eu ocuparia tudo, livre, brava, solta...
Lembro-me tão bem de como tudo era antes dele chegar! Não
foi o primeiro a aborrecer-me, mas houve uma época em que fui tão
livre... Imagina tu como era, com todos a fugir de mim e do meu lodo!
Muito me diverti; sem pescadores a cortar-me com barcos e redes, sem
agricultores a usar-me, sem salinas a prender-me... Todos barafustavam e
eu ria! Então mandaram o Oudinot prender-me e fazer-me servil: ele fez
uns projectos, iniciou umas obras, mas foi-se embora. E apareceu o Luís
Gomes de Carvalho, em 1803!
Durante 5 anos encheu-me de pedras e espetou-me ferros e
paus. Foi um tempo atribulado, ele contra os outros, todos contra mim.
Ele com a barra fechada a querer domar-me, eles a quererem abrir diques
para me usar. Eu com pouca força para lutar! Acabaram por ganhar as
gentes da terra e do mar que me queriam usar: queriam peixe, sal, boas
colheitas... Sempre foram muito exigentes! E o Gomes de Carvalho
fez-lhes a vontade e abriu um dique, em 1806. Então foi ainda pior;
domada e usada!
Em 1808 acabaram as obras e descansei, chorando de raiva
e ganhando forças. Quando 10 anos mais tarde ele construiu o dique na
margem norte, eu, já recuperada, só precisei de 2 anos para o deitar
abaixo. E pouco depois ele foi-se embora! Disseram que ele os tratava
mal e que não tinha sabido construir o paredão. Nunca acreditaram na
minha força! Mesmo quando eu rompi tudo o que fizeram depois dele, a
culpa era sempre do director de obras; a partir de 34, e num curto
período, tive 8 directores. Mas não evitaram que, por algum tempo, fosse
novamente dona e senhora do mundo!
Agora sou rainha destronada; suja, usada e cada vez mais
espartilhada, para que tu cresças.
Mas corre em mim a mesma fúria de há 200 atrás!
E hei-de recuperar a coroa!
1.º Prémio de prosa do escalão B do
Prémio Literário de José Estêvão ‘90.
Tema: A ria que outrora sorria
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