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             EM 
            quase todas as línguas do Ocidente, os nomes que designam os dias da 
            semana são de origem pagã. Da Lua, de Marte, Mercúrio, Juno ou de 
            Vénus. Domingo, entre nós, é o Dia do Senhor. Em inglês, é o dia do 
            Sol – «Sunday». Não sei o que se faz em Inglaterra durante o 
            inverno, e mesmo fora dele, para escamotear o equívoco dos domingos 
            chuvosos, quer dizer, dias do Sol de chuva. De qualquer maneira, o 
            domingo é um dia chato. 
            
            
            
             Há 
            vários domingos, claro. Às vezes, há um domingo que arrefece em 
            Amesterdão, enquanto aquece em Nova Iorque. E trata-se do mesmo 
            domingo, imagine-se! Com sol ou chuva, quente ou frio, cristão ou 
            pagão, o domingo dissemina-se, insistentemente (uma vez, por semana) 
            pelo mundo inteiro. Um flagelo. 
            
            Os domingos de Paris têm pombos no 
            Jardim de Luxemburgo. Os de Bruxelas arrastam-se pelas cervejarias e 
            depois dão um pulo às relvas da «Expo». As pessoas aborrecem-se, mas 
            há quem tenha a sorte de poder aborrecer-se com certo frenesim. A 
            civilização empenha-se em arranjar umas emoções fortes, para se 
            gastar nos domingos de Berlim ou de Londres. Nos domingos de Lisboa, 
            por exemplo, ninguém pega. Mesmo que fossem a saldo, a gente 
            deixava-os lá, cheios de pó, na prateleira. Quanto a Luanda, metem 
            um bocado de medo, com os rapazes todos a discutirem coisas bastante 
            impossíveis pelas esplanadas fora. 
            
            
              
            
            No respeitante aos domingos de 
            Nambuangongo, têm eles uma particularidade: não existem. Eu, pelo 
            menos, andei à procura e não encontrei nenhum. Em abono dos 
            domingos, devo elucidar que também me não foi possível encontrar 
            nenhum sábado, ou sexta-feira: ou quinta, etc. Um extenso dia sem 
            nome, inconsútil e indistinto, faz o tempo de Nambuangongo. 
            
            Porque as tarefas e os descansos são 
            sempre da mesma natureza e correspondem a um quotidiano sem qualquer 
            surpresa ou solicitação. Do alto de um morro, a vila desenvolve-se 
            (se assim se pode dizer) inclinadamente, para terminar numa picada 
            que vai desembocar em Gombe, a aldeia dos GE. Mas Gombe já não é 
            Nambuangongo. Sensacional que um lugarejo posto no alto de um monte, 
            cercado de florestas, com uma igreja e menos de meia dúzia de casas 
            de construção definitiva, tenha alcançado a importância que 
            realmente alcançou. A importância em questão é, sobretudo, a de um 
            símbolo. 
            
            Em 1961, a povoação sofreu os maiores 
            horrores da guerra, e nela se instalou a chamada «República 
            Socialista de Nambuangongo». Em Agosto desse mesmo ano, a vila foi 
            reocupada, depois da aventura das colunas-auto, que demoraram mais 
            de três meses a cobrir a distância entre Luanda e essas pequenas 
            povoações perdidas no norte. A história já foi contada, e sê-lo-á 
            decerto outras vezes, de perspectivas várias. Mas Nambuangongo 
            funcionará, em qualquer delas, antes como um significado do que como 
            um lugar, ou mesmo um facto. 
            
            Como em quase todas as povoações da 
            região, vive-se por cima, por baixo, à esquerda, à direita, à frente 
            e atrás de poeira. Quer dizer: a presença dominante é uma poeira 
            avermelhada, leve, envolvente, infiltrante. Os militares gracejam: 
            «Quando escarramos, saem tijolos.» 
            
            Um dos aspectos característicos de 
            Nambuangongo é ser um lugar masculino. Não há mulheres. Também, e 
            consequentemente, não existem crianças. O administrador de posto, 
            António Faria da Silva, é solteiro, vive com os seus livros, os seus 
            apontamentos sobre etnografia, os seus casos administrativos. 
            Dormimos em sua casa, folheámos-lhe os livros, ouvimos-lhe as 
            histórias sobre os nativos. Homem calmo, culto, compreensivo, não 
            tem qualquer problema pelo facto de viver no meio da poeira, num 
            local que se pode descrever assim: barracões pré-fabricados para 
            alojamento da tropa, quatro habitações, duas casas de comércio, uma 
            igreja, e um campo de futebol improvisado. Uma pista para aviões 
            (térrea), que é também estrada de acesso. E pó, claro – quero dizer: 
            pó escuro. 
            
            Não haver mulheres e crianças é 
            (digamos) inquietante. Dá ao lugar uma atmosfera parada, morta. 
            Destitui-o daquela espécie de delicadeza difusa, e alegria sem 
            razão, que aparecem com o elemento feminino e infantil. 
            
            Além dos civis solteiros, há os 
            militares. Que se faz num quartel de onde se não pode sair para 
            fazer qualquer coisa fora do quartel? Não existe lugar para onde. 
            Não se pode sair? Pode. Eles saem para a mata, em operações. A 
            guerra, é, portanto, uma ocupação. Por acaso, um grupo de homens, 
            com alguns dos quais estive a beber e a conversar até tarde da 
            noite, foi passar o domingo à guerra. 
            
            Além da guerra, faz-se comida. Também se 
            lava e passa a roupa. Limpam-se os sítios que, umas horas depois, 
            estão de novo sujos de poeira. Ouve-se rádio. Joga-se futebol e 
            vólei. Possível, do mesmo modo, subir e descer o morro, assobiando 
            ou não. E conversa-se. Mas tudo isto se faz tanto ao domingo como à 
            segunda ou terça-feira. Conversar em Nambuangongo é muito bom. Salva 
            as pessoas de se sentirem tão isoladas. Como não há mulheres, 
            fala-se razoavelmente sobre elas. E como há guerra, fala-se bastante 
            dela. E como se trata de militares, recordam-se acontecimentos dos 
            tempos da Escola do Exército. 
            
            Jogar ao futebol ou ao vólei, excelente 
            coisa. Liberta a pessoa de uma porção de pesos sufocantes, abre a 
            necessidade de um longo duche frio, cansa o corpo. Ler histórias aos 
            quadradinhos e fumar é óptimo. O que eu quero dizer é que, nesta 
            lisura e indistinção de tempo, nesta restrição de espaço, as mais 
            insignificantes ocupações ganham extrema importância. Nelas se 
            coloca toda a atenção – a força e a fantasia que cada um possui 
            dentro de si. E, na verdade, porque se há-de considerar menos 
            importante lavar uma camisa, ou descer um morro assobiando, do que 
            ir ver os pombos do Jardim de Luxemburgo, ou meter-se no «Paradiso» 
            de Amesterdão? Não é tão bom discutir o best-seller «Papillon» 
            (espantosa reportagem, diga-se, enfrentando os intelectuais do 
            pedantismo) com um capitão e um alferes que leram e gostaram, como 
            andar às cotoveladas em Domingo-Cascais? 
            
            Isto para mim, evidentemente que possuo 
            domingos aqui e acolá, e não estou meses e meses metido em 
            Nambuangongo. E então admiro o auto-domínio destes homens arrancados 
            aos seus domingos naturais e transplantados para as poeiras de 
            Nambuangongo, onde o tempo é circular. 
            
            Quando, já tarde na noite, deixo a messe 
            dos oficiais e subo a encosta até ao meu quarto, na casa do 
            administrador, paro a meio caminho, olho nas trevas a floresta que 
            não vejo mas sinto, aspiro o ar frio, situo-me no fim do mundo. 
            
            Amanhã parto para Luanda, daqui a não 
            sei quantos dias encontrar-me-ei não sei onde. A movimentação da 
            minha vida é o contrário da imobilidade de Nambuangongo. Quase me 
            tenho por culpado. Mas a minha consciência ganha vantagem à 
            consciência de outros, com sorte bastante para se aborrecerem 
            dominicalmente em sítios e circunstâncias «ferviscosos». É que eu 
            conheço Nambuangongo e os homens de lá – habitantes de um símbolo, 
            de uma significação. Domingos chatos, os deles, mas muito mais 
            importantes que uma quantidade de domingos que andam por aí. 
            
            
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