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Banda Amizade


Os primórdios
 

“Resolveu a “Banda Amizade”, de Aveiro, comemorar festivamente, no ano em curso (1), o seu sesquicentenário; é justo que todos nos congratulemos com a efeméride de uma prestimosa colectividade que, desde há muito, faz parte do nosso panorama citadino e social; é louvável que o Rotary Club de Aveiro lembre também o faustoso acontecimento… mas talvez pudesse ter escolhido orador mais capaz para falar sobre quem mereceria um melhor tratamento. Oxalá que a “Música Velha” vos apareça, ao menos, sem as rugas das canseiras e sem as brancas da velhice; que ela, apesar dos anos que já são tantos, se vos apresente no vigor da idade sempre jovem e na juventude da pujança sempre vigorosa.

Cento e cinquenta anos da Banda Amizade”! Todavia, por incrível que pareça, a data da sua fundação não é testificada com rigor histórico. Acontece assim frequentemente. Um homem não se torna herói ou uma colectividade não se enobrece logo ao nascer; são-no passadas dezenas de anos. Depois, ao procurar pormenores dos seus primórdios, deparamos com dúvidas insolúveis ou com interrogações sem respostas convincentes. É o caso.

Segundo João Calisto Grilo, de Lisboa, que se dedicou ao estudo das sociedades filarmónicas, a nossa “Banda Amizade” haveria iniciado a sua marcha histórica em Novembro de 1834. “Terá sido – diz ele – a primeira filarmónica aveirense com carácter popular.” António dos Santos Lé, conhecido e credenciado professor de música e regente em Aveiro, tendo sido solicitado por Pedro de Freitas a dar a sua opinião autorizada, apenas se limitou a informar, em 1942: “A Banda Amizade é a mais antiga desta Cidade, pois tem mais de cem anos de existência”. Nesta ocasião – em 1942 – havia em Aveiro, além da referida, a Banda do Asilo-Escola Distrital, a Banda da Escola de Música de José Estêvão e a Banda dos Bombeiros Novos.

Se estendermos o nosso olhar pelo Distrito de Aveiro, verificaremos que “Banda Amizade” está efectivamente no grupo das filarmónicas mais antigas das nossas terras. Vejamos estes exemplos: A de Figueiredo do Burgo, no concelho de Arouca, foi fundada em 1740 e primeiramente regida pelo padre Custódio José Gomes, pároco da freguesia de Burgo, a que pertence aquela povoação; a de Arrifana já é referida em documentação de 1770; da de São Tiago de Riba-Ul se diz que tomou parte nas guerras napoleónicas, acompanhando as tropas anglo-lusas; a de Ovar iniciou a sua actuação em 1811; a da vila de Arouca conta os anos a partir de 1825; finalmente as de S. João de Loure e da Fábrica da Vista Alegre nasceram em 1826.

Quem se debruçar carinhosamente sobre a actuação e a vida de tantas filarmónicas e grupos musicais que se mantêm em cidades, vilas e aldeias, à custa dos maiores sacrifícios e dedicações, descobrirá certamente, por um lado, o extraordinário contributo que eles dão na educação musical de inúmeras pessoas, e, por outra parte, o grande papel que o espírito popular tem desempenhado nessas modestas mas simpáticas colectividades. Como escreveu Pedro de Freitas, são pedaços da alma portuguesa que falam directamente ao público, apresentando-lhes claro o seu íntimo para lhes dizer que constituem uma parte importante de utilidade pública e de força viva da Nação; representam a sinceridade de um povo, as penetrantes vibrações de uma força dinâmica que não pode nem deve ser obliterada por um plano de inferiorização que ateste vergonha, falta de civilização e de cultura.

Mas… Falar da “Banda Amizade” leva-nos a abordar o tema da Música; e falar sobre Música é discorrer sobre uma expressão de Arte cuja definição objectiva, válida e tranquilizadora não é fácil nem cómoda. Desde sempre, filósofos e estetas o têm tentado com expressões que falham por incompletas, parcelares ou unilaterais, não abarcando a totalidade do conceito.

No século V, Santo Agostinho dizia ser a Música a “Arte de bem movimentar os sons” mas tal definição apenas se fixa num aspecto da questão. Descartes, no século XVII, escreveria que “o fim da Música é deleitar-nos e despertar em nós diversos sentimentos”; mas o filósofo atendeu à sua finalidade e não tocou na sua essência. Leibnitz, mais tarde explicou-a como “um exercício inconsciente de Aritmética de uma alma que não sabe como se enumerar”; tais palavras, porém, parecem-nos obscuras e, de maneira vaga, respeitam ao aspecto matemático da Música. Para Rameau, ela é “a Arte de combinar os sons de uma forma agradável ao ouvido”; eis aqui um critério não muito rico, antes hedonístico e pobre. Vendo na Música uma “arquitectura de sons”, Madame Stäel escapava-se à dificuldade, afirmando o mesmo por outras palavras.

Por seu turno, os psicólogos – como Kant, Hegel, Wundt… –, tratando a Música como “linguagem do sentimento e da emoção”, viam-lhe os efeitos sem cuidarem do seu mecanismo. Os metafísicos – como Schopenhauer – consideram a Música como manifestação de um realidade ultra-sensível e ultra-racional, colocavam-na, sem o pretender, acima da sua condição humana. Para Combarieu, ao contrário, a Música é “a Arte de pensar com os sons” – definição ambiciosa que possui o mérito de reivindicar para ela uma qualidade “racional”.

Em face desta flutuação de critérios, destas tentativas de definição, logo nos apercebemos da dificuldade em dizer o que é a Música – movimento racional e combinação agradável de sons, que nos deleita os sentidos e nos desperta sentimentos interiores. Enfim, a Música é ciência e arte; como ciência pertence aos domínios da acústica e vive da sua matéria específica, que é o som e a escrita; como arte, situa-se no âmbito das manifestações do espírito, cuja interpretação pertence à estética, e, realizando-se sob o signo do espírito, nasce da inspiração e afirma-se na exteriorização.

Estudando as origens da Música, deparamo-nos diante de enigmas sem solução. A quem dar razão? Às teogonias antigas – e até a certas metafísicas modernas – que consideravam a Música de origem divina ou transcendente? Aos que a filiam em práticas mágicas? Aos que afirmam ser ela uma simples imitação da natureza? A Rousseau e a Spencer que a derivam da linguagem humana? A Stumpf que a entroncava nos gritos de guerra do homem primitivo?

Talvez algumas teorias tenham parcelas de verdade. O que é certo, porém, é que, desde a Alta Antiguidade, senão mesmo desde o mais recuados vestígios do homem sobre a terra, se considerou a Música como manifestação artística. Dos tempos pré-históricos vêm-nos documentos fósseis que testemunham a sua presença. Depois, as mais velhas civilizações dos tempos históricos não só estimaram como ainda praticaram Música; isso nos é atestado pelas figurações dos monumentos, pelas lendas e pelos escritos que nos chegaram, referentes aos Egípcios, aos Sumérios, aos Babilónios, aos Chineses, aos Hindus, aos Hebreus, etc. Em todos estes povos, a Música teve mesmo um lugar marcadamente sagrado e os seus dois mais importantes ramos – o vocal e o instrumental – já neles se encontravam representados.

Fixando-nos na Grécia Antiga, vemos como grandes filósofos – como Platão e Aristóteles – chamaram a atenção para os efeitos da Música na formação da pessoa humana e focaram o seu valor educativo. De facto, tal era a importância na educação que o seu ensino fazia parte das disciplinas pedagógicas. Além disso, a Música ocupava outrossim lugar primordial no culto religioso e era imprescindível nos jogos, que os Gregos cultivavam com tanto entusiasmo. A sua função era ainda prioritária na tragédia ateniense – a maior criação do génio Grego. A Música coral desempenhava em toda a vida social um papel de grande relevo; mas não esqueçamos que os Gregos também conheceram a música instrumental. Conferindo-lhe um lugar secundário, contudo serviram-se dela para acompanhar o canto, a recitação e a dança. Os instrumentos predilectos eram a flauta, a lira e a cítara.

Séculos passados, na chamada Idade Média, a Música é, quase exclusivamente, a Música da Igreja Católica, que foi a instituição sob cuja égide ela, como outros valores culturais, tomou um incremento em que veio a assentar todo o desenvolvimento posterior da arte dos sons, pelo menos na Europa. As três principais fontes da Música da Igreja Latina foram: a Música hebraica, através dos salmos bíblicos adoptados pelos primeiros cristãos; a música oriental, que lhe forneceu suas características inconfundíveis de espiritualidade; e a música grega, que lhe transmitiu a teoria e as bases científicas. A grande reforma levada a cabo por S. Gregório Magno, papa de 590 a 604, fez com que se designasse com o seu nome a mais importante criação da música cristã litúrgica, que é ao mesmo tempo um dos maiores monumentos da história da Música, pela sua perfeita constituição e pela sua expressividade – o canto Gregoriano. O reportório dos cânticos era vastíssimo e adaptado inteiramente a todas as múltiplas cerimónias e festas do ano, tanto para os textos do Missal como para os do Ofício.

Por volta do século IX, dá-se um abalo na secular estrutura musical da Igreja; não se sabe bem por que factores começou a generalizar-se o hábito de cantar em várias vozes. Marca-se assim um passo importante e registava-se uma revolução decisiva no processo musical; ao lado da Música monódica, apareceu a polifonia, ou seja, a sobreposição de vários sons ou mesmo de várias melodias, num relacionamento sistemático.

Não me vou perder nos diversos pormenores da história da Música nos últimos séculos… mesmo dessa Música popular que concomitantemente de desenvolveu ao lado da Música oficial da Igreja. Mas não posso deixar de anotar a presença das correntes do Renascimento Italiano, que rapidamente irradiaram  pela Europa e acabaram mesmo por influenciar a Música da Igreja e por motivar um verdadeiro renascimento desta, o qual culminou na grande escola dos polifonistas dos séculos XV e XVI, a chamada escola franco flamenga ou estilo “a cappella” – composição só para vozes, sem qualquer espécie de acompanhamento instrumental.

Posteriormente, nos finais do século XVI e no princípio do seguinte, a Música consegue de novo aliar instrumentos e voz e avançar afoitamente no caminho da Música Moderna.

Sem conhecimento nem sensibilidade que me autorizem a familiarizar com os grandes expoentes da Música, mal ouso pronunciar e recordar os nomes de Palestrina, Victória, Vivaldi, Bach, Haendel, Rocccherini, Haydn, Mozart, Beethoven, Schubert, Shumann, Mendelssohn,  Berlioz, Liszt, Chopin, Brahms, Rossini, Wagner, Verdi, Strawinsky, Debussy, Ravel … Lorenzo  Perosi, na música sacra polifónica… e de toda uma riquíssima teoria de compositores, maestros e intérpretes da Música, cujo número nos surpreende e cuja obra nos causa compreensível admiração e nos provoca sentimentos inenarráveis.

Circunscrevendo-nos à nossa Pátria e perscrutando um pouco o ambiente em que a Música se desenvolveu entre nós, nomeadamente a música instrumental, forçoso é lembrar Duarte Lobo, que passa por ser um dos melhores músicos portugueses, Marcos António Portugal, considerado o nosso maior compositor de ópera, Scarlati, organista e cravista excepcional e grande impulsionador da introdução da música italiana em Portugal, Francisco António de Almeida, autor de música religiosa e de óperas que alcançaram grande popularidade, Carlos de Seixas, autor de música instrumental e afamado compositor de tecla para cravo e órgão, João Domingos Bontempo, pianista, compositor e pedagogo notável, fundador do Conservatório de Lisboa, criador da nossa moderna música instrumental e fomentador da cultura sinfónica e de câmara em Portugal, Alfredo Keil, compositor de ópera, a quem se deve o nosso hino nacional.

Na música instrumental dos últimos tempos do século passado e dos princípios do actual, distinguiram-se os nomes de José Viana da Mota, pianista de reputação europeia, que procurou criar um estilo nacional mediante o recurso à música popular, de Rui Coelho, que emergiu também como compositor de ópera, de Lima Fragoso, músico de reais qualidades que faleceu na flor da idade, e de Luís Freitas Branco, que pertence já aos nossos dias. E não seria imperdoável esquecer Miguel de Oliveira e Sousa Morais, exímios compositores de rapsódias portuguesas, e outrossim, Ilídio Costa, felizmente ainda vivo, cujas obras as nossas filarmónicas conhecem e executam?

Mas … desculpem-me o devaneio; talvez ele tenha a utilidade de pano de fundo ao desenvolvimento do tema a que me propus: a “Banda Amizade” no contexto musical de Aveiro.

Uma outra curiosidade do século XVI foi o aparecimento da música militar – designação corrente das bandas regimentais, constituídas então unicamente por instrumentos de palheta, sopro e percussão; lembremos, porém, que já o cronista Fernão Lopes citou os trombeteiros de el-rei D. Pedro I, como componentes de grupos musicais, compostos por instrumentos de sopro, que o monarca português do século XIV tinha ao seu serviço.

Durante muito tempo, a música militar não conheceu organização nem repertório próprios; reduzia-se a certos toques breves e empregava apenas os instrumentos de percussão. Foi nos finais de seiscentos e durante o século XVIII que tal música tomou forma e se individualizou, surgindo então as primeiras bandas, sobretudo com, pífaros, oboés, trombetas e tambores, cujo leque instrumental se foi alargando aos clarinetes, às trompas e aos fagotes. As marchas, as aberturas, os passo dobles faziam parte dos seus repertórios nos concertos públicos. Vieram depois os flautins, as flautas, as requintas, os baixos, os saxofones, os cornetins, os bombardinos, os trombones, os contrabaixos, o bombo, os rufos, os pratos, os ferrinhos … Todos esses instrumentos, acrescidos aos anteriores, vieram constituir as bandas militares, que se vulgarizaram em todo o século XIX; quase não se concebia um regimento ou um simples destacamento que não tivesse o seu agrupamento musical.

Para o gosto da Música no Exército concorreu muito a presença das tropas britânicas em Portugal. Deve-se até a Beresford um novo regulamento que mandava pagar trezentos réis por dia ao mestre da música nos corpos militares e duzentos réis a cada músico, uns e outros com direito a farda, soldo e pão, enquanto durasse o tempo de ajuste. Todavia, para cercear despesas, em 1813 entendeu-se manter apenas as bandas nos regimentos de Infantaria e nos batalhões de caçadores.

As bandas militares foram uma das formas – e de grande importância -  da divulgação da música sinfónica instrumental e das filarmónicas civis e populares.

Fixando-nos em Aveiro, sabemos que em todos os conventos, na Igreja da Misericórdia e na matriz da vila – mais tarde cidade -  se cultivava a música litúrgica. É disso valioso e inegável testemunho a bela colecção de antifonários de coro setecentistas, escritos à mão, que foi propriedade do Convento do Carmo e hoje se encontra na nossa Catedral; também nos ficaram dois livros musicados de antífonas, ambos provenientes do Convento Dominicano de Nosso Senhora da Misericórdia, com data de 1795; e, mais antigo, precisamente do século XV, é o mais “temporale” coral, Madre Maria de Ataíde, que foi do Mosteiro de Jesus e se conserva no Museu de Aveiro. E não sabemos nós que a Princesa Santa Joana, já vivendo em Aveiro, comprou ao Convento dos Dominicanos de Benfica um magnífico breviário de estante e um “Diurnale”, ambos escritos à mão e em pergaminho, para servirem na estante no Coro do Mosteiro de Jesus? E quem não recorda, ao menos por ouvir contar, a extrema beleza e a harmoniosa melodia com que se cantava, ao anoitecer, nos conventos da Ordem dos Pregadores, a última oração da tarde – a Salve Regina –  dirigida à Mãe de Cristo? Assim era por aqui.

Mas Aveiro não se deliciava apenas com o canto gregoriano, nos templos conventuais. Vem de longe a notícia da existência de agremiações musicais entre nós. Segundo a Crónica dos Carmelitas, em 1622, na festa que se fez no Convento do Carmo, por ocasião da canonização de Santa Teresa de Ávila, participou a melhor música da terra, sem dúvida de orquestra ou de capela, uma vez que nesse tempo, como vimos, os agrupamentos musicais somente eram constituídos por pífaros e tambores. Em 1688, havia em Aveiro uma corporação de charameleiros que ganhara na Festa de S. Miguel, a irrisória quantia de quatrocentos réis. Em 1742, existia na Igreja Matriz uma colegiada que tinha uma música, de que um dos mestres um tal Padre Luís Simões. Desta data até 1817, nenhum documento ou referência revelava a existência de qualquer grupo musical em Aveiro. Neste ano, contudo, instituiu-se uma capela de padres, regida pelo Padre José Joaquim Plácido – o Padre Parracho – irmão do hábil jurisconsulto aveirense Joaquim António Plácido. Essa capela organizou-se para se fazerem com solenidades as festas litúrgicas na sé de Aveiro, que era então na Igreja da Misericórdia; imitava certamente a charamela do Arcebispo de Braga, criada para abrilhantar as festividades religiosas, à míngua de bandas populares Foi aquele sacerdote que deu as primeiras lições de música ao então menino de coro da Igreja da Misericórdia (onde também havia uma colegiada), José Pinheiro Nobre – o marcela – que depois foi discípulo do espanhol Cléder, exímio tocador de trombone de varas.

Mas … voltamos atrás.

Por um documento de 8 de Janeiro de 1675, sabe-se que, já antes desta data, se realizava em Aveiro a procissão das cinzas, que viria a fazer-se pela última vez em 19 de Fevereiro de 1969; dificuldades da Ordem Terceira de S. Francisco, em consequência da falta de irmãos ou de voluntários para a organização do cortejo, levaram a respectiva direcção, no ano seguinte, a suspender este acto litúrgico tradicional. Por outro documento, de 1 de Abril de 1683, julga-se que, desde o seu início, a referida procissão costumava sair da igreja do Convento da Madre de Deus, em Sá, de religiosas da mesma Ordem Terceira, mas de clausura, onde também recolhia.

Entretanto, a Ordem Terceira Secular lançou-se na construção do seu templo primitivo, junto ao Convento de Santo António, o qual foi benzido em 1682; e, por um inventário dos móveis da mesma Ordem, parece que em 1726 já a procissão saía deste templo, ia ao das religiosas atrás mencionadas e voltava para o de S. Francisco. Extinto o Convento de Sá em 1885, então o cortejo religioso passou a ter como limite a Igreja do Carmo.

A que propósito, porém, é para aqui chamada a secular procissão das cinzas? Isto apenas. É que tomava parte no préstito uma charanga, de pouquíssimos instrumentos como era uso, formada por alunos actuais e antigos, das aulas que os frades franciscanos de Santo António mantinham nos baixos do seu claustro. Como se coadunava bem com o espírito de S. Francisco de Assis um agrupamento musical, mesmo que ele casualmente se incorporasse numa procissão de penitência!...

De facto, o Poverello não compreendia como pudesse alguém deixar de ser alegre, cumprindo os seus deveres para consigo, para com os outros e para com Deus, numa atitude pronta de constante serviço. Achava que, vivendo assim, os homens deviam mesmo deixar transparecer o júbilo interior na sua maneira e ser e de viver, sem qualquer sombra de hipocrisia. Cristianismo é mensagem de amor; a alegria deve distinguir aquele que faz da vida um perene sorriso bom e acolhedor. S. Francisco sorria aos desamparados e os tristes, levando-lhes, num gesto de carinho fraterno, a manifestação do seu grande afecto; e dizia aos companheiros que não vivessem na tristeza para nunca a manifestarem, que fossem alegres como as aves do céu para abrirem horizontes aos deprimidos e aos desesperados. A música na expressão vocal ou instrumental, entrava assim no leque de actividades dos franciscanos, como auxiliar importante na vivência da alegria; uma charanga no cenóbio dos frades menores não secularizava o ambiente, antes lhe emprestava um ar de festa.

…Até que, em Maio de 1834, foi extinto compulsivamente o Convento de Santo António pelo implacável e inapelável decreto de Joaquim António de Aguiar – o “Mata Frades”. Com a expulsão dos religiosos franciscanos, suspendiam-se em Aveiro não só curso de teologia que por eles era ministrado, mas também a única escola de instrução primária da Cidade, as aulas de latim, filosofia, retórica, francês, geometria, geografia e história, as lições de música para rapazes da charanga, e o ensino de gregoriano destinado aos que seguiam a vida conventual.

Em princípios de 1834, organizou-se, em diversas localidades do País, a chamada “Guarda Nacional” que, em Aveiro e Ílhavo, teve existência jurídica por decreto de 29 de Março desse ano. José Pinheiro Nobre, o tal menino do coro da Igreja da Misericórdia e pequeno discípulo do Padre Parracho, contava agora treze anos e era um já apreciável executante de trompa; nesta qualidade, fazia parte da banda daquela “Guarda Nacional”, ao mesmo tempo que prosseguia no estudo da música com D. Rumán Avias, de naturalidade espanhola, que foi mestre da banda do regimento de Caçadores n.º 28. Como este e como Cléder – outro espanhol já referido como seu professor – foi depois José Pinheiro Nobre notável executante de trombone de varas.

Nem todos os corpos militares tinham bandas privativas; por vezes, as filarmónicas eram contratadas por períodos anuais. José Pinheiro Nobre, findo o contrato com a “Guarda Nacional”, foi para o Regimento de Viana do Castelo; todavia, transferida esta unidade para Viseu, ele continuaria naquela cidade, ao serviço do novo regimento, aí instalado. Contudo, após os sucessivos contratos que ali assinara, José Pinheiro Nobre regressava a Aveiro, em 1844. Dois anos depois, juntando-se ao Padre João de Pinho, reagrupou a antiga “Filarmónica de Aveiro”, com os elementos saídos da “Guarda Nacional”, então dissolvida; eram quase todos espanhóis e entre eles contava-se o célebre André Navarro – segundo o depoimento de José Ferreira Pinto de Sousa.

Lamento não apresentar aqui qualquer dado histórico que apoditicamente nos certifique a data exacta da fundação da “Música Velha”. Se não fosse a afirmação de que José Pinheiro Nobre, em 1846, reorganizou a antiga “Filarmónica de Aveiro”, concluir-se-ia que esta teria sido fundada em 1846 e não em 1834, como se supõe. Teria sido José Pinheiro Nobre, aos treze anos de idade (1834), o elemento preponderante na fundação da “Música Velha”? A afirmativa não é muito de acreditar.

Conta-se que nos primeiros tempos os músicos, quando saiam para fora de Aveiro, viajavam a pé, em diligência ou a cavalo, conforme podiam arranjar-se. Por esse tempo, eram mais frequentes as idas para o sul. Ao voltarem, a noite ia muito adiantada.

Diz-se que, mesmo não existindo já a porta da vila – ou porta da Cidade – em frente da Rua do Espírito Santo, aí estava pelo menos o guarda nocturno para fiscalizar as entradas. Então, os bons dos músicos, disciplinados, esperavam uns pelos outros junto da Fonte dos Amores; todos reunidos, encaminhavam-se para Aveiro e, em silêncio para não perturbarem o sossego do burgo, recolhiam a suas casas. Havia a certeza de que nenhum faltava e respeitava-se o descanso dos habitantes da Cidade.

Em 1844, no dia l4 de Maio, rebentara a revolução chamada da “Patuleia” ou da  “Maria da Fonte”. Para a apoiar, formaram-se “corpos populares”, que logo fundaram bandas privativas ou contrataram bandas civis. Em Aveiro, a banda da “Maria da Fonte” foi organizada e regida por José Pinheiro Nobre. Apesar de esse batalhão de populares ser extinto em 23 de Junho de 1847, a filarmónica prosseguiu, sob a mesma batuta, até 26 de Outubro de 1840, data em que José Pinheiro Nobre foi para Anadia dirigir a filarmónica local, de que era protector o Dr. Alexandre Ferreira Seabra, afamado jurisconsulto de renome nacional e internacional e o primeiro presidente da Câmara Municipal da sua terra. Entretanto a “Música Velha” lá ia continuando, pior ou melhor, embora sem a batuta de José Pinheiro Nobre.

O batalhão de Caçadores nº 28, formado em 1837 – que em 1842 passou a ter o nº 7 – possuía, além da banda, uma charanga, composta por corneteiros e por um ou outro músico que comparecia ao toque do recolher. Neste batalhão, que aqui se manteve até Agosto de 1850, houve um mestre de música – um tal Armada – que em Aveiro deixou alguns discípulos de clarinete, ente os quais Francisco da Costa – o “Francisco Serralheiro” – e José Vieira Guimarães.

Em 1 de Junho de 1853, José Pinheiro Nobre regressou a Aveiro e reassumiu a regência da antiga filarmónica que dirigira – a tal organizada com elementos da “Guarda Nacional” de 1834. Era a que se chamava “Filarmónica de Aveiro” – para nós desde há muito “Música Velha” – que tem conhecido, entre outros, os seguintes regentes: José Pinheiro Nobre, Armada, José da Silva, Manuel de Abreu, Gastão, José Matias dos Santos, Guilherme Maria Santana (o autor do hino de José Estêvão), Manuel Carvalho, Padre José Joaquim de Carvalho e Góis (que foi vigário-geral de Aveiro, António Maria Valério de Sousa Brandão (de Ovar), Padre Manuel Ferreira Pinto de Sousa (pároco da freguesia da Vera-Cruz), José Serrano, Manes Nogueira, Alfredo dos Santos, João Pinto de Miranda, Dr. Vasco Rocha, Alfredo Martins Leal, Armando da Silva, Abel da Silva Lebre, Severino dos Anjos Vieira, António Limas Júnior, Américo Gomes do Amaral e, actualmente, o Prof. António Duarte Neves. Contudo, se aqui digo em voz alta estes nomes, não é para esquecer os componentes da banda desde João de Pinho das Neves Aleluia – que habilmente tocava contrabaixo de cordas – até aos mais humildes executantes de pratos, ferrinhos ou bombo; se aqui digo estes nomes é porque neles quero sintetizar todo o esforço comum de uma Colectividade.

Entretanto, surgia um contratempo em 1855. Alguns elementos da “Filarmónica de Aveiro” recusavam-se a tocar gratuitamente na festividade que a Ordem Terceira de S. Francisco tomara a iniciativa de levar a efeito em honra da Imaculada Conceição de Nossa Senhora, cujo dogma pontifício havia sido solenemente proclamado em 8 de Dezembro do ano anterior. Em face disso, José Pinheiro Nobre e diversos componentes da referida banda uniram-se à filarmónica da Vista Alegre. Pouco depois, José Pinheiro Nobre, continuando desligado da banda donde saíra, fundava e regia em Aveiro uma nova filarmónica, cuja estreia seria a 12 de Maio de 1856 e à qual dera o título de “Filarmónica Aveirense”. Em face da ocorrência, e para evitar confusões, a “Filarmónica de Aveiro” passou a designar-se por “Banda Amizade”.

Compreende-se a designação escolhida. Os homens que continuaram fieis à “Música Velha”, apesar de outras solicitações e de novos ventos, sentiram-se bem unidos em fraterna amizade e não deixaram a colectividade que serviam. Ficou-lhes bem o epíteto que escolheram; ainda hoje – estou certo  disso  -  lhes fica bem o mesmo apelido.

Por motivos que se ignoram, José Pinheiro Nobre, em 1870, abandonou a “Filarmónica Aveirense” que, após várias regências, extinguir-se-ia mais tarde. A “Banda Amizade”, por seu turno, também esteve incorporada na Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de (Bombeiros Velhos) desde 1890 a 1918, usando o fardamento dos bombeiros.

Entretanto, a “Música Velha”, no desempenho das suas específicas funções, ia tomando parte habitual nas nossas festas religiosas e cívicas e nas nossas manifestações sociais. Muitas dessas presenças foram registadas pela imprensa; apenas se lembram algumas:

●  Na inauguração do lanço do caminho de ferro Porto-Taveiro, no dia 10 de Abril de 1864;

●    No funeral de José Estêvão Coelho de Magalhães realizado em Aveiro, no dia 16 de Maio de 1864;

●     Na recepção aos conhecidos políticos Fontes Pereira de Melo e Casal Ribeiro, nos dias 17 e 18 de Dezembro de 1864;

●     Na passagem da Família Real pela estação ferroviária, no dia 15 de Setembro de 1866;

●     Na grandiosa manifestação do Rosário, presidida pelo bispo-conde de Coimbra D. Manuel Correia de Bastos Pina, no dia 28 de Outubro de 1883;

●     Na soleníssima recepção ao núncio apostólico Mons. Vicente Vanutelli, em 14 de Agosto de 1884;

●     Na chegada do Regimento de Cavalaria nº 10, em 18 de Janeiro de 1885;

●     Ainda no mesmo ano, no festivo acolhimento a Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens que, 1877-1880 indo de Benguela  às terras de Iaca, haviam desvendado os segredos do sertão angolano, procuraram balizar para Portugal as nossas terras africanas, estudaram detalhadamente o litoral da Província e, em viagem anterior, chegaram a Quelimane, na costa do Índico;

●      Na recepção ao Dr. Bernardino Machado, ministro da Obras Públicas, em 30 de Agosto de 1893;

●      Nas festas de implantação do Regime Republicano, em Outubro de 1910;

●      Em 1928, nas comemorações do primeiro centenário do Movimento Liberal de 16 de Maio de 1828;

E… fico-me por aqui, sob pena de enumerar uma série de datas e acontecimentos – série enfadonha, mas datas e acontecimentos que foram horas altas da história de Aveiro e na história da “Banda Amizade”.

Outras bandas musicais apareceram e desapareceram em Aveiro – o que prova, pelo menos, uma extraordinária afeição dos Aveirenses pela arte dos sons. Foi a charanga do Asilo-Escola Distrital, organizada em 1889 por José Pinheiro Nobre e depois, em 1908, transformada em banda marcial por António dos Santos Lé;  foi a banda da Escola Musical de José Estêvão, de António dos Santos Lé, criada em 1908 após a dissolução da “Filarmónica Aveirense”; foi a banda dos Bombeiros Novos – a Banda dos Guilhermes” -  fundada em 1933 por António de Pinho Nascimento e primeiramente regida por Delfim Matias. Além disso, também nasceram diversos agrupamentos, como a pequena orquestra, organizada em 1878 e regida pelo padre Manuel Ferreira Pinto de Sousa, para abrilhantar as festividades religiosas da Associação do Sagrado Coração de Jesus, - ou como o grupo musical, de duração efémera, dirigido pelo tenente Júlio Augusto Ferreira, formado em 1888 por amadores, com fins unicamente recreativos, denominado “Recreio Musical” ou, como o grupo coral dos alunos do Liceu, incentivado e regido pelo padre António Augusto Gonçalves Estêvão, que também chegou a orientar, por algumas vezes, a “Capela” da “Música Velha”, - ou ainda como o “Coral Aleluia” , fundado e dirigido por Carlos Aleluia desde 1944. Não falamos dos recentes corais, cujo alto valor nós todos conhecemos por experiência.

Por estas palavras desconexas, rápidas e tão indigestas nesta ocasião, podemos facilmente concluir que tem sido relevante em Aveiro o gosto, o carinho e o culto pela Música, ao longo dos últimos séculos. Muitas associações musicais viram a luz do dia e aqui viveram com maior ou menor duração; contudo, a “Banda Amizade” – a filarmónica mais antiga de Aveiro – apesar de momentos de crise e de grandes dificuldades, tem-se mantido, porque alguns carolas – dirigentes, executantes e amigos – deram-se e dão-se as mãos para conservá-la e fazê-la progredir. Conta 150 anos … se é certa a data que se convencionou marcar para o seu nascimento: ano – 1834; dia – 22 de Novembro, festa litúrgica da mártir Santa Cecília, a celeste padroeira dos músicos.

Entre as vitórias da “Banda Amizade”, na linha das estruturas básicas, releva-se sobremaneira a construção da sua sede privativa, em cuja campanha de angariação de fundos se lançaram generosamente tanto os corpos directivos como os membros da Colectividade. Projectado propositadamente para o efeito, o novo e condigno edifício, no Largo do Conselheiro Queirós, no Bairro do Alboi, foi inaugurado em 22 de Janeiro de 1961. O acontecimento não podia deixar de ser celerado com festas invulgares, pois a nossa banda deixava definitivamente as velhas e precárias instalações alugadas nas Rua dos Galitos, sucedâneas de outras acanhadas – estas na Rua de 31 de Janeiro. Concretiza-se a maior aspiração da “Musica Velha”.

Mas não foi só desta vez que a Cidade e as povoações vizinhas auxiliaram a prestimosa associação. As diversas campanhas lançadas para a aquisição de instrumentos ou para a compra de novos fardamentos ou ainda para outras finalidades, sempre encontraram eco no coração e na generosidade dos Aveirenses. É bom que isto se recorde, para que os presentes e os vindouros imitem os seus antepassados, quando for necessário.

Por seu lado, a “Banda Amizade” tem prestigiado o nome da nossa terra. Entre as mercês honoríficas e prémio alcançados, possui o diploma de sócio benemérito da Companhia Voluntária de Salvação Publica e Guilherme Gomes Fernandes (Bombeiros Novos), concedido em 11 de Dezembro de 1950; o diploma de sócio benemérito da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Aveiro (Bombeiros Velhos), concedido em 30 de Janeiro de 1960; o terceiro prémio na segunda categoria no Grande Concurso Nacional de Filarmónicas e Bandas de Musicas Civis, Organizado na Cidade de Lisboa em 23 de Setembro de 1960 pela Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho; a Medalha de Prata da Cidade de Aveiro, atribuída em 1961 pela Câmara Municipal, da Presidência do Dr. Alberto Souto. Finalmente, tendo participado no VI Festival Internacional de Musica, em Budingen, na Alemanha Federal, realizado nos dais 25, 26 e 27 de Maio do ano em curso, onde ficou integrada na II Divisão, a nossa banda conseguiu: em concerto, o primeiro prémio - medalha de prata - por ter alcançado a pontuação de 115,7 pontos (a medalha de ouro não foi atribuída por lhe faltarem três décimos na pontuação exigida); em marcha o terceiro prémio - medalha de bronze - por ter alcançado 109,6 pontos; e ainda o prémio da melhor representação de Portugal.

No decorrer deste ano de 1984, o que de melhor podemos augurar à “Banda Amizade”- a velha “Filarmónica de Aveiro”- no dia em que lhe apresentamos as nossas congratulações pelo seu sesquicentenário… o que de melhor lhe podemos augurar é que os seus elementos constituam verdadeiramente uma Associação de Amizade em família, que testemunhem amizade aos outros e que difundam amizade á sua volta. Eu, por mim, dou razão ás palavras de António Feliciano de Castilho, quando escreveu nas “Escavações Poéticas”:

– “A Musica, essa harmónica linguagem,

Única universal, e sempre clara,

Bem que diversa entre as nações diversas,

É a porteira que franqueia a entrada.

Do encantado universo dos delírios…”

Não será isto o que pretendem, como supremo desejo, os componentes da “Musica Velha”, nas suas andanças pelo País e pela Europa, ao mesmo tempo que levam consigo o nome de Aveiro?

Que a “Banda Amizade”, agora e nos tempos futuros, alcance os melhores triunfos. Os seus sucessos são sucessos da cidade de Aveiro; quando está de parabéns, a Cidade de Aveiro sente-se honrada; ela é imprescindível nas nossas festas, nos nossos cortejos, nas nossas procissões. Temos o dever de a acarinhar; é obrigação das Autarquias, na sequencia do sentir popular, ir ao encontro dos legítimos anseios desta colectividade Aveirense, com notável folha de serviços e pergaminhos brilhantes, e auxilia-la a superar as suas dificuldades.

Parafraseando palavras da liturgia católica, que a “Banda Amizade” viva por muitos anos, progrida cada vez mais, seja feliz para dar felicidade e que o espírito do mal ou da discórdia não destrua a boa vontade e trabalho de tantos Aveirenses.”

João Gonçalves Gaspar

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(1) - Em 25 de Junho de 1984, o Lions Clube de Aveiro promoveu uma sessão de homenagem à Banda Amizade para comemorar a passagem dos 150 anos da sua existência. Na circunstância, convidou o ilustre aveirense Monsenhor João Gonçalves Gaspar para proferir uma palestra que desenhasse a vida da Instituição desde os seus princípios. É esta palestra que aqui se transcreve na íntegra.

 

 

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08-05-2019