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            Aveiro e Cultura» perde um dos 
            primeiros e melhores colaboradores 
            
            I 
            
            
             A 
            minha amizade com José Henrique de Almeida Neves começou em Abril de 
            2006. Aliás, não sei se poderei dizer, para ser rigoroso, que 
            começou nesta data, na medida em que ele era amigo de pessoas que 
            faziam parte do meu círculo de amizades e já tínhamos contactado por 
            diversas vezes. Mas esta amizade ganhou raízes a partir do momento 
            em que verificámos que possuíamos os mesmos gostos pelas coisas da 
            nossa terra. E fortaleceu-se quando ele me trouxe, para partilhar no 
            espaço «Aveiro e Cultura», todo o espólio fotográfico do sogro, 
            Américo Carvalho da Silva. 
            
            O 
            que podemos afirmar com rigor, porque tivemos o cuidado de o 
            registar, é que as fotografias começaram a ser acessíveis a todos os 
            que gostam das novas tecnologias, especialmente da Internet, a 
            partir do dia 14 de Abril, data registada, embora invisível para o 
            público, antes da codificação em HTML do índice de conteúdos. 
            
            Ao 
            espólio demos o nome de «Colecção Carvalhinho». Porquê esta 
            designação?  
            
            
            «Carvalhinho» era o nome por que era mais conhecida esta figura de 
            Aveiro, na primeira metade do século XX. Ele era o único que em 
            Aveiro fazia o serviço de recoveiro. Hoje ninguém sabe o que isto 
            significa. No entanto, a profissão ainda se mantém. Multiplicou-se 
            por muitas empresas, que começaram a substituir os correios no 
            transporte de mercadorias, mas que ninguém conhece por este nome. 
            
            A 
            partir de Abril desse ano, Henrique Neves tornou-se um amigo 
            indispensável, cuja companhia era sempre agradável, e um dos 
            melhores colaboradores na procura e preservação de material com 
            interesse cultural, que ele ia trazendo. 
            
            Em 
            2020, num período marcado por uma pandemia que abalou o planeta e se 
            encontrava em plena força, poucas ou nenhumas vezes nos encontrámos. 
            Tive eu e todos os que passaram por isto um período de vida difícil. 
            Pela minha parte, estava não só sujeito a um período de quarentena, 
            como também parte do meu tempo passou a estar repartido entre Aveiro 
            e Matosinhos, devido à actividade de «neto work». 
            
            «Neto 
            work» é a expressão que passei a usar, a partir do momento em 
            que, devido à crise pandémica, se começou a ouvir falar 
            constantemente em «Net work» ou teletrabalho. Somente a minha 
            é uma actividade que muitos de nós temos o prazer de conhecer, 
            especialmente quando os filhos começam a preservar a continuidade da 
            família e a pedir-nos para tomarmos conta dos netos. 
            
            Ora 
            a perda de um dos meus melhores amigos, a segunda maior perda desta 
            actual fase da minha vida em menos de uma década, ocorreu na altura 
            em que regressava de Matosinhos a Aveiro. 
            
            Mal 
            acabado de chegar à cidade dos canais, para recomeço da actividade 
            lectiva na Academia de Saberes de Aveiro, ainda eu não tinha enfiado 
            a chave na fechadura da porta de entrada no prédio e já estava a ser 
            chamado por um casal de amigos e vizinhos. 
            
            
            Fiquei com a chave em stand-by e voltei-me. Quase em frente à 
            porta do actual Convívio estava um casal, cujo elemento masculino 
            foi um antigo jogador do Sport Clube Clube Beira-Mar, também ele colaborador, em 
            tempos, com a partilha de fotografias relativas ao clube pelo qual 
            jogou durante vários anos. 
            
            
            Atravessei a rua e fui apanhado desprevenido. Estava longe de 
            imaginar a notícia que me queriam dar: 
            
            – 
            Faleceu ontem, dia 4 de Maio, o amigo Henrique Neves. Está na Igreja 
            de Santo António, ao lado da Polícia Judiciária. O funeral é logo, 
            por volta das 15 horas. 
            
            
            Agradeci ao casal Azevedo a triste notícia e entrei em casa, com a 
            sensação de ter ficado mais pobre. Entrei com a sensação de que o 
            meu universo de amigos está a ficar cada vez mais reduzido e eu cada 
            vez mais pobre e isolado. Não fora o prazer da companhia quase 
            diária da neta e o apoio da família, mesmo com os netos isolados 
            devido a uma estúpida pandemia que, desde finais de 2020, nos tem 
            obrigado a um isolamento forçado, esta etapa da vida começaria a 
            ficar muito parecida com um deserto, onde a caravana, aos poucos, 
            vai perdendo os elementos desta caminhada, que é a vida de todos 
            nós. 
            
            Há 
            anos, levei uma valente cacetada com a perda de um amigo, cuja 
            presença diária me era indispensável. Estivesse eu num café da 
            cidade, estivesse em casa, ou desse-se mesmo o caso de estar fora de 
            Aveiro, diariamente, quase sempre à mesma hora, recebia o telefonema 
            do amigo Gaspar Albino a perguntar-me onde é que eu estava, para ir 
            tomar o café na minha companhia. E numa fatídica tarde, uma queda em 
            casa foi o começo da separação. Ainda o consegui ver no hospital de 
            Aveiro, para onde foi levado. Ele é que já não conseguiu ver-me. E, 
            num sábado (?!) de manhã, estava sentado num café a tomar a bica, 
            tive o pressentimento de que ele me havia definitivamente deixado. 
            
            
            Hoje, dia 4 de Maio de 2021, quase quatro anos depois, volto a 
            passar por outra situação pouco agradável. 
            
            
            Agradeci a informação. Voltei a atravessar a rua. Abri a porta. Subi 
            as escadas e entrei em casa, depois de nova porta aberta. 
            Libertei-me do peso da pasta com o computador e material para a aula 
            da tarde e preparei-me para assentar. Era praticamente hora de 
            almoçar. E assentei, sentando-me à mesa. Frequentemente, é sentados 
            à mesa, com ou sem companhia, que melhor conseguimos assentar ideias 
            e decidir o que fazer. 
            
            Que 
            fazer? Ir ao funeral não é possível. Vim de propósito de Matosinhos 
            para Aveiro para dar, às catorze e trinta, a primeira aula, após 
            semanas de ausência devido ao confinamento provocado por esta 
            maldita pandemia, que os chineses espalharam por todo o planeta. E 
            os companheiros de academia estão a contar comigo para o recomeço 
            das actividades. Sair a meio da aula para o funeral também não é 
            viável. Há alterações a fazer na capa da publicação que a Academia 
            de Saberes de Aveiro tem de mandar para a tipografia. E isto é 
            trabalho para ocupar a maior parte da aula, até porque o que vamos 
            fazer está relacionado com a actividade que tem vindo a ser 
            aprendida. 
            
            
            Faltava mais de uma hora para o começo da aula. Lavei rapidamente a 
            louça, peguei na máscara, na viseira e na pasta. Saí de casa, depois 
            de ter voltado a desligar a Net, a água e o gás, porque depois da 
            aula iria directamente para a estação apanhar o comboio e regressar 
            a Matosinhos. Desci as escadas e fui directamente para a igreja de 
            Santo António. 
            
            Na 
            entrada da igreja apenas a carrinha e os senhores da agência 
            funerária. Perguntei-lhes se era o funeral do meu amigo Henrique 
            Neves. Que sim, mas que eu não poderia rever o amigo. E os 
            familiares também ainda não tinham chegado. Mesmo assim, entrei na 
            igreja e pedi-lhes se não tinham nada para dar às pessoas. Que sim. 
            Entregaram-me uma pagela com a fotografia e as datas dos dois 
            limites da vida e perguntaram-me o nome. Que ficasse descansado, que 
            não se esqueceriam de informar os familiares de que estivera 
            presente e que não podia ficar para o funeral pelos motivos que lhes 
            tinha exposto. 
            
            II 
            
            
            Feito o preâmbulo introdutório, como são todos os preâmbulos, 
            recordemos, através de um simples episódio, a figura do amigo que 
            deixou de estar fisicamente entre nós. 
            
            Em 
            tempos idos, muito antes da pandemia que nos manteve fisicamente 
            separados, estava eu a trabalhar no gabinete que me foi atribuído 
            por altura em que as obras de renovação da escola terminaram(1), 
            apareceu-me o amigo Henrique Neves muito preocupado. Olhei para ele 
            e perguntei-lhe: 
            
            – 
            Então o que o traz por cá? Vem com cara de caso! 
            
            – 
            Professor, – era assim que ele sempre me tratava quando estava 
            comigo – um amigo criticou-me, tendo-me dito que eu colaborava 
            assiduamente com o espaço «Aveiro e Cultura» e que o meu nome nem 
            sequer figurava entre os colaboradores… 
            
            – 
            Como? Quem lhe disse semelhante disparate? 
            
            – De 
            facto, Professor, eu fui à listagem dos «Colaboradores», procurei o 
            meu nome e não o encontrei! 
            
            – 
            Como é que não o encontrou? O meu amigo teve a curiosidade de 
            percorrer toda a página de cima a baixo? 
            
            – 
            Eu, não! Corri a listagem com as miniaturas dos colaboradores e 
            respectivos nomes e não encontrei o meu. 
            
            – 
            Esses que percorreu são aqueles que produzem trabalhos escritos, 
            tais como poesia, obras publicadas, trabalhos artísticos, e têm as 
            suas páginas neste espaço. O meu amigo também pode aqui figurar, a 
            partir do momento em que comece a escrever e a publicar artigos. 
            Mas, se percorrer toda a listagem, verá que no fim da página existe, 
            mesmo junto à barra de navegação horizontal, uma hiperligação que 
            diz «Outros colaboradores». Alguma vez teve a curiosidade de clicar 
            aqui? Faça a experiência e veja na listagem alfabética se o seu nome 
            aparece. 
            
            
            Recorrendo à tablete que utilizo para navegar na Net e verificar a 
            qualidade e funcionamento das páginas em suportes que não sejam um 
            computador, mandei-lhe clicar na hiperligação e verificar se o nome 
            dele lá se encontrava. E acrescentei: 
            
            – O 
            meu amigo não tem tido a curiosidade de ler os textos que eu tenho 
            escrito para apresentação do material que me tem trazido. Se fizesse 
            a leitura, verificaria que está presente em alguns deles, 
            funcionando como um dos meus interlocutores. 
            
            – 
            Não o estou a entender. Eu sou um dos seus interlocutores? 
            
            – 
            Claro que sim! Ao fazer a apresentação do material, numa página 
            geralmente intitulada «Acerca de...», e apresentada antes da 
            listagem dos conteúdos, eu tenho o cuidado de falar acerca da forma 
            como o material de índole cultural chega até mim. E, se nem sempre 
            faço uma breve evocação da história que está por detrás, recorrendo 
            à reprodução das nossas conversas, tenho sempre o cuidado de indicar 
            a quem se deve o material recuperado. 
            
            Para 
            o convencer, porque não me parecia estar, disse-lhe: 
            
            – 
            Indique-me um dos muitos materiais que me fez chegar. 
            
            – 
            Por exemplo, Professor, o último, foi um livro que nós resgatámos de 
            uma cave. 
            
            – 
            Estou a lembrar-me perfeitamente. Está a referir-se ao livro acerca 
            do Convento de Mafra. Ora vamos lá ver o que se diz nessa rubrica. 
            
            
            Voltei a recorrer à tablete e pesquisámos na página inicial do 
            «Aveiro e Cultura», na secção «Acesso Directo», o título «Mafra, 
            Convento de –». 
            
            E o 
            meu amigo começou a leitura do que lá estava, ao mesmo tempo que 
            mostrava um ar de espanto: 
            
            «(...) 
            Certo dia dos começos deste ou finais do ano 
            anterior, já não posso precisar rigorosamente a data, porque os meus 
            neurónios já se encontram gastos devido a um ADN elevado (ADN = 
            Afastamento da Data de Nascimento), e, além do mais, a falta de 
            rigor cronológico não altera em nada o interesse desta verídica 
            história, entrou-me no café onde estava um amigo e colaborador deste 
            espaço, onde vou depositando para a comunidade alguns documentos com 
            interesse. Era ele, por que não dizer o seu nome e para que fique 
            para a História, o amigo e colaborador meu homónimo, quase parecido 
            nos registos escritos do baptismo com o meu, mas com as palavras 
            trocadas, porque tem o José antes do Henrique; e, já agora, também 
            com Neves, que só tem no nome. Ao contrário de mim, que as tenho 
            abundantemente no cabelo, que perdeu o doirado acastanhado com a 
            passagem do tempo, as Neves dele são só no nome, porque na cabeça 
            apenas lhe restam alguns vestígios do cabelo. 
            
            Pois 
            é! Entra-me no café o amigo José Henrique Neves e diz-me: 
            
            – Professor, está 
            interessado nuns livros antigos?» 
            
            
            Interrompi a leitura espantada do meu amigo e perguntei-lhe: 
            
            – 
            Então, amigo Neves, quem é este Neves de quem se fala no texto? Não 
            será o meu amigo? Quer melhor do que isto? Já viu que através deste 
            texto passou a figurar para a posteridade? Já viu que não só figura 
            na listagem dos colaboradores, como também é uma figura de Aveiro de 
            quem se fala! 
            
            – Ó 
            Professor, eu nem imaginava que era uma personagem nos seus textos… 
            
            – 
            Isto significa que o amigo Henrique Neves, tal como quem lhe 
            procurou meter algum veneno, não tem tido o cuidado de ler o que eu 
            tenho escrito e referido a seu respeito. 
            
            Não 
            vamos aqui referir todos os textos em que se faz referência ao amigo 
            Henrique Neves. O que acabou de ser dito é suficiente para 
            aquilatarmos da importância que ele teve para nós. E, se tiverem 
            curiosidade, leiam o resto do texto. Poderão através dessa leitura 
            avaliar o trabalho a que alguns salvados nos obrigam. 
            
            Para 
            que fique devidamente registado como memória de um amigo que, para 
            mim, apenas deixou de existir fisicamente, eis uma breve listagem: 
            Colecção Carvalhinho; Galitos 1960; Convento de Mafra; Eva - Revista 
            de 1934; etc. E a sua importância não se mede apenas por aquilo com 
            que ele contribuiu para o enriquecimento de um espaço de cultura na 
            Internet. Nunca poderemos esquecer o amigo que, volta e meia, nos 
            procurava e sempre, em todos os encontros, trazia consigo uma 
            anedota nova para nos fazer rir, como que dando o lamiré para que os 
            momentos de convívio se mantivessem num ambiente de boa disposição. 
            
            Para 
            um conhecimento mais aprofundado acerca do que foi a vida de José 
            Henrique de Almeida Neves, têm à disposição o texto de índole 
            biográfica escrito pela filha. 
            
            
            Aveiro, 28 de Outubro de 2021 
            
            
            Henrique J. C. de Oliveira 
            
            
            ________________________________________________ 
            
            
            (1) 
            – Antes das obras de renovação da escola, 
            iniciadas no ano lectivo de 2010/11, eu tinha o prazer de trabalhar 
            numa Biblioteca Histórica, que  nunca deveria ter sido destruída. A 
            partir do momento em que começou a destruição deste património, o 
            meu local de trabalho foi mudando sucessivamente de espaço. O 
            gabinete foi-me atribuído após a inauguração do edifício remodelado, 
            para que o Projecto Prof2000 pudesse ser continuado. E aqui me tem 
            deixado continuar a trabalhar a Direcção do AEJE, dando todo o apoio 
            à manutenção do espaço «Aveiro e Cultura».   |