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        Regresso 
        
        Veio finalmente uma ordem explícita. O pessoal de 
        cada Companhia teria que pôr, em local determinado, indicado por uma 
        tabuleta, todos os seus haveres que seriam transportados e colocados no 
        porão do navio. Cada militar só poderia levar quando embarcasse, um saco 
        de mão com os seus objectos pessoais, necessários para a sua higiene 
        pessoal e diária.  
         
        Agora sim! Era hora de despedida. No dia indicado lá estavam os montes 
        nos lugares para cada Companhia. E as viaturas começaram no seu 
        vai-e-vem. Os montes iam diminuindo. Só esperávamos que não esquecessem 
        nada. Íamos vigiando, até para não haver desvios, não fosse algum 
        estranho passar por ali e gamar uma mala. Embora na altura fosse coisa 
        de somenos importância, mais tarde o seu conteúdo poderia vir a 
        fazer-nos falta! 
        
        Quem tinha dinheiro normalmente não comia no rancho. 
        Ia até Luanda e jantava por lá. Os almoços eram substituídos por uma 
        sandes e uma cerveja, na cantina do Grafanil.  
        
        Naquela tarde, tocou a formar. Há que séculos que eu 
        não ouvia aquele toque! “Que haverá agora?” Pareceu-me muito estranho! 
        “Vamos a formar”, pensei. E as companhias formaram. Ouviu-se o toque de 
        sentido, quando o Comandante de Batalhão apareceu! 
        
        Foi lida a “ordem de serviço” do dia seguinte: 
        
        – Toda a tropa deve estar pronta para embarcar 
        amanhã, a partir das 14 horas, no Grafanil, e serão transportados em 
        viaturas militares para o cais de embarque de Luanda. A ordem de 
        embarque será a inversa dos números das companhias: a CCS, a 307, a 306, 
        a 305 e a 304. 
        
        Tocou o “à vontade” e depois o “destroçar”. 
         
        Ouviu-se por aquele Grafanil fora um bruááááá… que parecia não ter fim! 
        Nalguns daqueles homens de barba rija, que já tinham desaprendido de 
        chorar, viam-se os olhos húmidos! 
        
        – Ó Ribau – chamou o Silveira – tem de ser hoje que 
        vamos dar a despedida. À noite vamos ao L’Etoille beber uns uísques de 
        despedida. 
        
        – É pá, não posso. Tenho que me ir despedir de um 
        amigo. Agradeço, mas se não for esta noite, já não tenho tempo. 
        
        – É pena – disse o Silveira. Já combinei com o Blica 
        e mais uma malta. Então vamos nós. 
        
        – OK. Eu não me chateio. Vão e divirtam-se. 
        
        Confesso que até fiquei satisfeito por não ir com 
        eles. Sabia que aquilo ia dar barraca pela certa. E logo na última 
        noite! Acho que era meu dever ir despedir-me do Sr. Nero e da família.  
        
        No dia seguinte quis saber pelo Silveira como tinha 
        corrido a noitada. 
        
        – Olha – diz-me ele, apontando para a sua cabeça 
        rapada, como sempre usou. 
        
        E eu vi um hematoma do tamanho de uma bola de 
        pingue-pongue. 
        
        – O que foi isso, pá?!  
        
        – Eu sei lá! – Respondeu o Silveira. Tivemos um mau 
        encontro no L’Etoille com uma dúzia de pára-quedistas, que ao terem 
        conhecimento de que nós éramos dos Caçadores Especiais e que no dia 
        seguinte íamos embarcar para o “Puto”, resolveram começar a 
        achincalhar-nos. O Blica, com os uísques bebidos, e com aquele físico 
        que lhe conhecemos, não se calou e ripostou. Deu asneira. Tivemos de ir 
        em seu auxílio. Foram mesas, foram copos, foi tudo pelo ar. O dono do 
        bar chamou a Polícia Militar. Ao ouvir o telefonema um dos nossos avisou 
        “Vem aí a PM e nós embarcamos amanhã! Vamos embora”. Era quem mais se 
        desenrascava. Para não sermos apanhados cá em baixo à saída do elevador, 
        descemos a correr pelas escadas. Só que ninguém se lembrou que eram doze 
        andares que tínhamos de descer. Eu, que vinha atrás, levei com uma 
        frigideira ou lá o que era aquilo na cabeça. A escada passava junto da 
        cozinha e um cozinheiro quis molhar a sopa, e eu é que paguei! 
        Safámo-nos à justa. Chegados à rua apanhamos táxis que esperavam 
        clientes, e nos deixaram nos nossos quartos – concluiu o Silveira. 
         
         
        Na hora do embarque 
         
        No dia seguinte, à hora marcada, estava toda a gente no Grafanil. Falhar 
        o embarque não lembraria a ninguém! 
        
        Pouca gente almoçou nesse dia. Uma bucha e uma 
        cerveja na cantina, e estava feito. 
         
        Chegou finalmente a hora. As Companhias começaram a embarcar. Cada um ia 
        saber onde era o seu camarote. Aí deixávamos os sacos e íamos “conhecer” 
        o navio. Cada vez ia entrando mais pessoal. O navio era enorme! Não se 
        cansava de engolir gente, até que pareceu saciado! Não havia mais 
        ninguém para entrar. 
        
        Em terra ainda estava o Comandante do nossa Batalhão, 
        a receber os cumprimentos de despedida de um Oficial General qualquer. 
        Depois de o nosso Comandante ter subido, estava tudo pronto para zarpar 
        rumo a Lisboa. Faltava só retirar as escadas do portaló, para o navio 
        poder começar a navegar. 
        
        Chego-me ao bordo do lado de terra e lá estava a PM 
        alinhada e uns quantos estivadores prontos a soltar os cabos. Pouco 
        depois o navio começou a tremer. Era a máquina principal a arrancar. 
        Depois de estabilizada deixaram de se ouvir e de se sentirem as 
        “tremuras”. Tudo pronto a largar. Olho mais uma vez para a cidade de 
        Luanda, como que a despedir-me, com um sentimento que não consigo 
        descrever. Saudade, não era; tristeza também não. Era uma estranha 
        melancolia que me invadia o coração – Até nunca mais... ou um até 
        sempre! 
        
        As escadas são tiradas. Agora sim. Já ninguém entra 
        nem sai! Vamos partir… 
         
        Começámos a afastar-nos lentamente. Nem uma palavra nos deckes onde os 
        militares se encontravam a assistir à manobra do navio. Era um silêncio 
        ensurdecedor. Olhávamos uns para os outros... Um encolher de ombros e 
        era tudo. 
        
        Entardecia. O navio afastou-se e saiu a barra. Não 
        tardaria muito que estivéssemos no alto-mar. Daqui a pouco começariam a 
        acender-se as luzes em Luanda, que veríamos já ao longe, por entre a 
        neblina que se levantava. 
        
        Dirigimo-nos aos lugares que nos foram destinados 
        para a viagem e cada qual arrumou por fim as suas coisas. Se fosse como 
        na ida estaria próxima a hora do jantar, para quem o quisesse fazer. 
        Havia que ter cuidado com os balanços do navio, que embora lentos, agora 
        em alto mar eram constantes! E o estômago, não habituado, poderia não 
        aguentar… 
        
        Tocou a campainha, sinal de que deveríamos 
        dirigir-nos à Sala de Jantar. O pessoal ia-se sentando, sem muita 
        pressa. Comia devagar, dirigindo-se depois aos camarotes, onde já 
        encontrei alguns companheiros estendidos no beliche. Chamei-lhes a 
        atenção para não se deitarem sem fazerem a digestão, e que deviam antes 
        caminhar um bocado pelos corredores, até o estômago se acostumar ao 
        balanço do navio. 
         
        De noite dormíamos, de dia passeávamos pelo navio, íamos até à proa ver 
        os peixes voadores que saltavam, e conversávamos. Assim passávamos os 
        dias, enquanto nos íamos aproximando do “Puto”. 
         
        Recebemos então uma notícia que correu célere – O navio iria parar na 
        ilha da Madeira, para desembarcar o pessoal dali que trazia. 
        
        – É verdade – diz o Costa Pereira. O Tenente Moniz e 
        o padeiro da nossa Companhia são da Madeira! 
        
        – Poupar nos gastos – observou. 
        
        Aproámos no Funchal. Houve autorização para que, quem 
        quisesse desembarcar, o fazer durante duas horas. 
        
        Era pouco tempo mas, bem aproveitado daria para ir 
        beber um cálice de Vinho da Madeira. Havia táxis (abelhinhas) no cais, 
        juntámo-nos meia dúzia de Sargentos em dois táxis e lá fomos ao Golden 
        Gate, a convite do Carvalho, provar o precioso néctar. Valeu a pena. É 
        na verdade uma maravilha e parece não ficar a dever nada ao nosso Porto. 
        
        Passeámos um pouco, apanhámos novamente táxi na 
        cidade e fomos para bordo, não fosse o navio lembrar-se de sair antes da 
        hora marcada. 
        
        Já só falta um dia para chegar a Lisboa... 
         
        O navio saiu novamente barra fora. Amanhã entraremos em Lisboa. Creio 
        que nesta noite ninguém vai dormir bem a bordo. Alguns encostavam-se, 
        “passavam pelas brasas”, mas logo se punham de pé. Outros já preparavam 
        o saco para sair o mais rápido possível.  
        
        Finalmente o sol deu-nos as boas-vindas. Já se 
        descortinava a entrada da barra de Lisboa, ao longe. Enquanto o navio ia 
        andando, agora mais devagar, íamos observando as povoações da Linha do 
        Estoril. Depois um barco pequeno cruza-se com o nosso. A malta faz 
        barulho e acena-lhe. O barco responde com uma buzinadela. Leio o seu 
        nome: “João Manuel Vilarinho”. Era um arrastão costeiro. Era da Gafanha, 
        a minha terra… 
        Esta imagem impressionou-me muito. Não sei porquê! 
         
        Agora já se via o cais de desembarque. O Cais de Alcântara ou a Rocha 
        Conde de Óbidos, não sei, ia-se aproximando. Já se divisava o pessoal 
        que nos esperava. Quando desembarcasse como iria encontrar a minha 
        mulher, no meio de tanta gente? 
         
        O navio atracou. Levou tanto tempo a atracar… 
         
        Finalmente houve autorização de desembarque, operação que teve de ser 
        feita com a calma possível, pois as escadas estavam muito a pique, e 
        podia alguém cair à água! Tanto tempo a tentar sobreviver e ter agora 
        chatices à porta de casa. Não podia ser... 
         
        Desembarcámos com cautelas. O pessoal ia saindo e olhava tentando 
        encontrar algum familiar! Um grito daqui, outro chamamento dali, mas 
        ninguém conhecido. “Ela tem que estar nalgum lado. Prometeu-me que 
        viria…” 
         
        – Ângelo! 
        
        Reconheci aquela voz. Era ela! Dirigi-me à zona que 
        separava os militares dos civis, demarcada por uma rede de arame. 
        Abraçámo-nos longamente. Há tanto tempo que não sentia aqueles doces 
        braços a envolver-me… 
        
        – Ouve lá – perguntou-me, um tanto transtornada – 
        morreram muitos? 
        
        – Morreram muitos como?! – Perguntei, sem entender a 
        razão da pergunta! 
        
        – É que aqui, enquanto esperávamos a vossa chegada, 
        correu o boato de que tinha havido uma explosão a bordo e que tinham 
        morrido militares! 
        
        – Quem disse uma barbaridade dessas?! 
        
        – Foram uns tipos que estavam aqui a dizer isso... 
        
        – Pois é – respondi – são “eles”. No Ultramar passam 
        informações aos terroristas sobre as nossas tropas. Aqui aproveitam 
        ocasiões como estas para lançar atoardas e fazer sofrer os outros. 
        
        -Não, mulher, não houve nada. São mentiras dos 
        inimigos do povo, que até se dizem seus amigos. 
        
        – Não percebo?! 
        
        – Nem vale a pena tentar perceber agora – disse eu. 
        Um dia entenderás!  
        
        – ... 
        
        – Políticos de esquerda… 
         
        O Batalhão de Caçadores Especiais 357 formou pela última vez, para a 
        despedida. Nesse dia, o Comandante fez a chamada daqueles que a ela não 
        podiam responder… o corpo tinha ficado em Angola, em defesa daquela 
        Província. O espírito deles talvez estivesse pairando por cima das 
        nossas cabeças, num último adeus... 
        
        Houve o toque de silêncio, um silêncio que nos 
        apertava a garganta, em homenagem aos ausentes. Depois, o toque a 
        destroçar. Foi como se nos tivessem soltado da prisão. Despedidas deste 
        e daquele, um adeus até à vista, até sempre, e cada um foi para seu 
        lado.  
         
        Cheguei a casa. No silêncio daquela primeira noite passada junto da 
        família, o corpo estava cá, mas o espírito voava para o Sul, as 
        recordações não me deixavam descansar, e não eram recordações dos locais 
        onde estivemos e onde não havia barafunda, onde não se ouvia o “Tango 
        dos Barbudos”, era para o Norte de Luanda: Cuimba, São Salvador do Congo 
        e Pangala! Tentei, como tentava em Angola, esquecer os momentos maus por 
        lá passados. Mas qual quê! Lá conseguia fazê-lo, porque no dia seguinte 
        teríamos outros momentos provavelmente piores. Aqui era mais difícil 
        esquecer, porque o dia de amanhã será, por certo, um dia normal! 
         
        Não me sentia bem. Quase todas as noites sonhava com o que passei em 
        Angola. Pedi na empresa para começar imediatamente a trabalhar, para ver 
        se esquecia mais depressa o meu amargor.  
        
        O gerente chamou-me e disse-me para eu ir gozar um 
        mês de férias. Expliquei-lhe o motivo porque queria começar 
        imediatamente a trabalhar. Queria esquecer o que passei. Pelo menos, 
        enquanto trabalhava, a cabeça tinha de estar no trabalho e não se 
        distrair com o passado. Ele compreendeu. E eu agradeci-lhe. 
        
        Mesmo assim, as emboscadas em Angola continuam. 
        Triste sina... 
  
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