| 
         
         
        Em Catete 
        
        Jantámos uma bucha do que o outro pelotão tinha 
        deixado. No final da refeição convidei os meus companheiros a virem 
        tomar café. O Costa Pereira, questionou:  
        
        – Será café de cafeteira, como no mato, ou bica? 
        
        Entrámos no estabelecimento e vimos em cima do balcão 
        a máquina do café. Embora fosse manual, tirava uma excelente bica, que 
        saboreámos com prazer! 
        
        Pouco depois regressámos à caserna, para organizar a 
        escala de serviço para o dia seguinte. Recomendámos ao pessoal que a 
        partir daquele momento deveria andar devidamente fardado, barbeado e 
        limpo – estávamos a regressar à civilização e tínhamos de agir como tal. 
        
        Demos uma volta pela povoação e verificámos com 
        prazer que havia electricidade. Passámos por dois potentes geradores que 
        ficavam a caminho da igreja e da estação do caminho-de-ferro. Só um 
        estava a trabalhar, o outro seria, provavelmente, de reserva. 
        
        Isto aqui é outra coisa, nada que se compare com a 
        Muxima, e muito menos com a Barraca! 
        
        Será um período de descanso, como na Muxima, mas com 
        muito mais civis. Há possibilidades de trocar impressões sobre as ideias 
        dos brancos e dos pretos sobre o que se está a passar em Angola. 
         
        O serviço de inspecção às viaturas que passavam na estrada – estrada 
        principal de Angola e a única saída de Luanda para Este – sempre com 
        muito movimento de viaturas, carga e passageiros, ficou determinado que 
        seria feito a horas diferentes, para evitar a habituação dos passantes.
         
         
        No dia seguinte, fomos fazer a exploração da zona que nos estava 
        atribuída. Duas secções em dois Unimogs, uma para Norte e outra para 
        Sul. A terceira secção ficou no “aquartelamento”, pois não convinha 
        deixar armas e munições sozinhas. Foi um passeio, vendo paisagens 
        desconhecidas, gentes desconhecidas, enfim, novidades para nós! 
        
        Regressámos para almoçar. Durante a refeição cada 
        chefe de secção fez o seu relatório verbal ao Comandante do Pelotão. 
        
        Eu, que segui para Sul, dei conta de sanzalas com 
        lavras nas cercanias bem tratadas, até junto da fazenda do Bom Jesus, 
        fazenda grande de cana-de-açúcar, que segue até às margens do Rio Quanza, 
        com muitos prédios em alvenaria. Parecia uma fazenda modelo! 
        
        Tentámos estabelecer contacto com um grupo de 
        serviçais negros que, de catana em punho, se dirigiam provavelmente para 
        o trabalho. 
        
        – Então como vai? – Pergunto, dirigindo-me ao que 
        parecia o chefe do grupo. 
        
        – Vai. 
        
        E mais não disse. Pareceu não estar interessado ou 
        autorizado a falar. 
         
        As catanas que empunhavam sempre me meteram um certo respeito. Tanto 
        seriam armas de guerra, como instrumentos de trabalho, conforme a 
        “cabeça” de quem as utiliza! A maior parte das catanas que encontrámos 
        tinham sido feitas em Ovar, no “F. Ramada”.  
         
        O Miranda fez o seu relatório. Tinha ido para os lados de Cabiri. Passou 
        pela capela, pela estação dos Caminhos-de-ferro, e seguiu para Norte. 
        Pela sua descrição as sanzalas não estavam tão estimadas como as que eu 
        vi, a terra era seca e as lavras pareciam pouco produtivas. De regresso 
        ouviu um grande alarido ao aproximar-se da estação dos 
        caminhos-de-ferro. Parou a viatura em frente à estação e foi saber o que 
        se passava junto do aglomerado de pessoas que ali estava.  
        
        – Nada de especial – diz-lhe o chefe. 
        
        Eram duas mulheres que andaram à pancada, porque são 
        do mesmo homem, e ele tinha ficado de nessa semana ir dormir com uma, 
        mas foi dormir com a outra, e deu o espectáculo que se viu.  
        
        – O Senhor, como chefe, não devia ter autorizado o 
        espectáculo. 
        
        – Eu sou só chefe da estação, e ainda gozei um 
        bocado. Elas estavam bravas umas com a outra! Necessidades… 
         
        Terminada a refeição e os relatórios, lá fomos à bica. Havia pouca 
        clientela e a maior parte eram militares. O tempo estava morno. Pela 
        porta larga do Café viam-se os habitantes que passavam. 
        
        A mercearia, que ficava ao lado do Café, era do mesmo 
        dono. O pessoal que ia “aviar-se” passava-nos em frente, do lado de fora 
        do Café, e nós víamos mulheres com crianças pela mão, ou com os filhos 
        às costas. 
        
        A miragem da família, agora já mais perto, vem-nos à 
        memória. Como eu gostaria de os ter agora aqui comigo… Não sei quanto 
        tempo estive com o olhar fixo na porta à espera de os ver entrar… pura 
        ilusão! 
        
        Resolvi ir até à caserna, não sei se para me isolar, 
        se para encontrar alguém com quem desabafar. O pessoal entretinha-se a 
        fazer qualquer coisa para que o tempo passasse: limpar a arma, escrever 
        à família, era o que fazia a maior parte das vezes. Outros, estendidos 
        na cama, com o quico à frente dos olhos, dormitavam! 
         
        Dirigi-me ao quarto onde já se encontrava o Miranda, estendido na cama, 
        a descansar. Sentei-me na minha, olhando pela janela para o exterior, 
        tempos esquecidos! O Miranda voltou-se de lado, e ficou a olhar-me! 
        
        – Que há, Ribau? Sentes-te bem? 
        
        – … 
        
        – São os “Ribauzitos” lá na Gafanha, não é? E nós 
        aqui! 
        
        Acenei-lhe positivamente com a cabeça. O Miranda era 
        um bom companheiro. Desde o Regimento de Infantaria nº10, em Aveiro, que 
        andamos juntos na tropa. Companheiro para todas as ocasiões, diga-se!
         
         
         
        Problemas na sanzala 
         
        Um soldado pede licença para entrar, e dirige-se ao Miranda: 
        
        – Ó meu Furriel, está ali um preto que quer falar com 
        o nosso Alferes, mas eu não sei onde ele está. 
        
        – Deixa, eu vou lá saber o que se passa. 
        
        E saiu, regressando pouco depois. 
        
        – Então? – Perguntei. 
        
        – O homem é o Soba da sanzala que fica junto da 
        fazenda do Bom Jesus. Fez uma plantação de milho nas suas terras, e 
        agora o encarregado da fazenda quer arrancar-lhe o milho e obrigá-lo a 
        plantar cana-de-açúcar, que depois lhe comprará ao preço que quiser. 
        
        – É disto que eu gosto! – Exclama o Miranda (sinal de 
        que finalmente sentia que podia ser útil) – Já mandei aprontar o Unimog, 
        levo a minha secção e vou ter uma conversa com o encarregado da fazenda.  
        
        – Chegar lá é rápido – disse eu, que conhecia a 
        estrada, pois já tinha ido para aqueles lados. 
        
        – Quando o Alferes chegar, diz-lhe onde fui – pediu o 
        Sargento Miranda. 
        
        Vi o meu companheiro afastar-se e resolvi sair, com a 
        máquina fotográfica ao ombro. A porta que encontrei aberta foi a do 
        Café. Bem, mais um não faz mal! E entrei. 
        
        Tomei o meu café, acompanhado de um cigarro, e por 
        ali fiquei a olhar para lado nenhum, esquecido… 
         
        Peguei na máquina fotográfica, preparei-a para foto automática e 
        coloquei-a na mesa em frente da minha, accionei o disparador, que 
        preparei para demorar cerca de um minuto e sentei-me na mesa olhando 
        fixamente para a objectiva. Parece que estava a ver a minha mulher com 
        os nossos dois filhos, dentro da máquina. Oxalá ela não disparasse, mas 
        disparou, e o sonho acabou. 
        
        Tentei fazer avançar o rolo para nova foto, só que 
        ele não avançou. Tinha acabado. Logo à noite já teria trabalho a 
        revelá-lo. 
         
        Chegou a noite e, depois de uma volta pela povoação, lá fui eu até ao 
        meu quarto, disposto a fazer o serviço. Pus o rolo no tanque de 
        revelação, frasco do revelador e do fixador ao lado. Só é necessário ter 
        em atenção a temperatura dos líquidos, pois se for elevada terei de dar 
        menos tempo de revelação.  
        
        Revelado o rolo, foi introduzido o fixador. Estes 
        dois “banhos” têm tempos determinados! Uma vez concluídas estas duas 
        operações, os líquidos são guardados nos respectivos frascos, pois podem 
        servir mais uma ou duas vezes. 
        
        Veio então a lavagem, operação muito importante para 
        limpar os sais da revelação e fixação, especialmente o metabissulfito de 
        sódio. Havia água à vontade. Era só meter o tanque debaixo da torneira e 
        deixar correr, ao contrário dos locais onde estivemos, em que se enchia 
        o tanque (cerca de meio litro) e se agitava, para abreviar a lavagem da 
        película. 
        
        Findas estas operações, era a película posta a secar 
        num fio, pendurada por uma mola de roupa, até ao dia seguinte.  
        
        Entretanto o Miranda tinha chegado. 
        
        – Então Miranda, como foi? 
        
        – Nada de especial. Conversei com o encarregado, 
        fiz-lhe ver que “esse tempo” tinha acabado, e disse ao Soba que se 
        houvesse algum problema era só chegar a Catete e avisar… O homem 
        sentia-se feliz e agradeceu muito. Devia haver alguma velha “guerra” 
        entre ele e o encarregado da fazenda! 
         
        No dia seguinte fui observar o rolo. Parecia estar bem. À noite fui 
        fazer as fotos que eram ampliadas, de acordo com o papel disponível! A 
        última foto tirada, a do Café, interessava-me de sobremaneira. Foi a 
        primeira a ser trabalhada. Para meu desgosto estava salpicada de 
        pequenas manchas brancas. A água era em quantidade, mas não em 
        qualidade. 
        
        Posta na palma da mão, deixava ver pequenas 
        partículas brancas, quase microscópicas. Algumas delas tinham-se colado 
        à película, e eu nada podia fazer para resolver este problema! 
         
         
        Uma visita inesperada! 
         
        Havia passado mais de uma semana desde que o Soba tinha estado no 
        Aquartelamento. Voltou a parecer com um ajudante, que trazia um leitão 
        às costas. Um conjunto estranho! Chegaram à porta do aquartelamento e 
        pediram, em jeito de apresentação: 
        
        – Quero falar com o “Furier”.  
        
        Como estava por perto, perguntei: 
        
        – Há algum problema? 
        
        – Não é contigo, é com os tropa que foi na fazenda.  
        
        Compreendi que queria falar com o Miranda, que 
        entretanto apareceu. 
        
        – Que há? – Pergunta o Miranda – O fazendeiro voltou 
        a chatear?  
        
        – Não e está de bem comigo. Venho agradecer-te.  
        
        E deu ordem ao ajudante para depositar o leitão aos 
        pés do Miranda! 
        
        – Não é preciso agradecer. Só fiz a minha obrigação – 
        diz o Miranda. 
        
        – Tens de aceitar – diz o soba. Senão é falta de 
        respeito. 
        
        Ouviu-se o Costa Pereira: 
        
        – Tens de aceitar, pá. É a lei cá do sítio. Se não 
        aceitares pode haver problemas. Ele considera falta de respeito. 
        
        O Miranda aceitou, agradeceu, e avisou:  
        
        – Se houver problema, avisa.  
        
        E assim tivemos leitão assado “à Bairrada” (mais ou 
        menos) num dia, não sei de que mês, do ano de 1964, em Catete.  
         
         
        Remexendo no sótão da memória 
         
        Fui à mala à procura de nada e encontrei uma foto tirada em Pangala, 
        para enviar à família. Comparei-a com a que ontem tirei no Café, em 
        Catete, e pus-me a filosofar com os meus botões: foto tirada na 
        fronteira Norte, onde não sabíamos se para alguns de nós existiria o dia 
        seguinte, e o aspecto era de pessoas risonhas, até parecíamos felizes! 
        “Tudo corre bem”, mandei dizer junto com a fotografia. 
        
        A segunda foto, tirada numa zona de paz mas onde não 
        tinha necessidade de enganar alguém, saiu natural, deixando transparecer 
        o que me ia na alma; não o medo, mas a saudade dos entes queridos! 
        
        Sonhar é fácil. Ter medo não depende de nós, mas 
        normalmente de factos a que somos alheios. Difícil é disfarçar o medo! E 
        isso às vezes foi tão necessário para mostrar segurança perante os 
        outros, especialmente os nossos comandados!  
        
        Quando um dia saímos do nosso acampamento em Pangala, 
        com os quatro corpos dos nossos companheiros dilacerados por uma mina 
        anti-carro, um soldado perguntou-me: 
        
        – Então meu Furriel, estivemos de serviço todo o dia 
        e toda a noite, estamos “todos rotos”, e mandam-nos a nós fazer este 
        serviço? Hoje era o nosso dia de descanso! 
        
        – Pois era, tens razão, mas nós vamos para mostrar 
        aos "outros" que não temos medo. 
        
        No entanto se naquele momento disparassem uma arma 
        contra o meu peito, estou convencido que a bala não conseguiria entrar, 
        faria ricochete e cairia no chão. 
         
        O tempo agora passava a conta-gotas. Fomos informados de que das tropas 
        a chegar havia um pelotão já destacado para nos vir render. Era malta 
        nova que não conhecia o ambiente de Angola, pelo que teria de haver um 
        período de sobreposição. Desembarcariam, passariam pelo Grafanil e, 
        quase de imediato, seguiriam para Catete, onde nos manteríamos com eles 
        cerca de uma semana! 
        
        Isto era o que se dizia, mas esse dia havia de 
        chegar.  
         
         
        Nem sempre é mau ter problemas! 
         
        Até ver, nada de anormal para nós. Mas, naquele dia, quando eu regressei 
        do Café e me encontrava à porta do quartel, passou um carro funerário, 
        com duas urnas dentro. Vinha do lado da Igreja e dirigiu-se para Luanda.  
        
        Deve ser pessoal rico, pensei com os meus botões, 
        dado o aspecto do carro e dos caixões que transportava. Encolhi os 
        ombros e entrei no aquartelamento! 
        
        O Miranda que ia a sair, diz-me filosoficamente: 
        
        – Aqueles já não têm mais problemas. 
        
        No dia seguinte, ao ler o jornal no Café, verificámos 
        que um dos indivíduos que ia no carro funerário era nosso conhecido. Era 
        natural de São João da Madeira, a terra do Miranda. Tinha vindo há 
        muitos anos para Angola, era representante de fábricas de sapatos, que 
        vendia por toda a Província. A sua casa era na Ilha de Luanda, um sonho, 
        onde vivia com a família. Algumas vezes fomos convidados, o Miranda e 
        eu, a passarmos por lá e descansarmos um pouco. Era um paraíso, situado 
        no meio dos coqueiros! 
        
        Foi um acidente de automóvel, quando se dirigiam de 
        Nova Lisboa para Luanda, segundo contava o jornal. 
        
        Coisas da vida. Aqui ou em qualquer outro lugar do 
        mundo! 
         
        Entretanto chegou o Pelotão que veio substituir-nos. O pessoal parecia 
        já cansado! Chamei a atenção de alguns para as condições que eles 
        encontraram e o que nós encontrámos, tentando convencê-los da sua boa 
        sorte, mas… 
        
        Terminada a sua instalação, parece que já começavam 
        as saudades. O Comandante do Pelotão começou a perguntar se haveria 
        alguém que tivesse um gravador de fita. Eu que tinha o meu em Catete, 
        prontifiquei-me a ceder-lho, para ele matar saudades de algum ente 
        querido. Ensinei-lhe a manobrar a “máquina” e imediatamente, a seu 
        pedido, abandonei o quarto… 
        
        Um Sargento miliciano, ao aperceber-se de que eu 
        gostava de música, perguntou-me: 
        
        – Gostas do Zé Afonso? 
        
        – Adoro ouvi-lo, mas há mais de dois anos que não 
        tenho essa possibilidade… 
        
        – Eu trouxe um gira-discos e alguns discos. Um deles 
        foi editado pouco antes de nós embarcarmos. Tem músicas novas e ainda 
        pouco conhecidas. Uma delas é “Num Lago de Breu”, já ouviste? 
        
        – Não. Quando podemos ouvi-la? 
        
        – Não haverá problemas? – Pergunta ele, mostrando um 
        certo receio! 
        
        – Não há problema nenhum. Metemo-nos no quarto e 
        ninguém chateia. 
         
        Já no quarto encostei a porta enquanto ele preparava o gira-discos. 
        Comecei a ouvir aquela voz tão minha conhecida, tão inconfundível. Nunca 
        mais esqueci aquele momento… 
        
        Sonhador, cantar canções de intervenção era, para 
        José Afonso, o seu modo de lutar contra moinhos de vento! Ou talvez não. 
        A alma que punha em tudo o que fazia, levava a pensar que aquelas 
        baladas eram dirigidas a alguém, um inimigo bem concreto, que constava 
        do seu imaginário. O meu espírito ficou saciado. Fiquei a pensar que na 
        primeira ocasião que se me deparasse, compraria uma fita com músicas de 
        Zeca Afonso. 
         
        Há outro assunto que não quero descurar. Quando chegar a Luanda quero 
        ter dinheiro para comprar uma máquina de filmar. Quando chegar ao “Puto” 
        quero filmar o meu pessoal para ficar com imagens para mais tarde ver e 
        recordar. 
        
        Já me estou a ver a chegar ao Grafanil, e começar a 
        tratar de coisas para o meu regresso. O espírito começa a ficar mais 
        desanuviado. Já me sinto mais leve. Já me sinto outro. Esse dia chegará! 
        
        E chegou… 
  
         |