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        Rumo ao Norte 
        
        Finalmente chegou o dia da partida para o mato. 
        Tínhamos recebido ordens para avisarmos todo o pessoal de que se 
        precisassem de comprar alguns objectos pessoais o deveriam fazer naquela 
        tarde, pois na manhã seguinte teríamos de sair do Grafanil. Havia outro 
        batalhão a chegar que iria ocupar o nosso lugar. 
        
        Dormimos mal, pois sabíamos que para nós a guerra 
        iria começar. Depois da distribuição das rações de combate, embarcámos. 
        A deslocação era feita por Companhias. Mesmo assim cada coluna, composta 
        por Jipes, GMC, Unimogues, e algumas viaturas civis destinadas a 
        transportar materiais diversos, era extensa. Agora é que era. A minha 
        expectativa era grande! Para que lado iríamos?  
        
        O Capitão ia na frente, na primeira viatura. O Senhor 
        Capitão não poderia apanhar com o pó nas ventas, para isso era Capitão! 
        A viatura onde eu seguia com a minha secção – um Unimog – ia em sexto ou 
        sétimo lugar na coluna. Eu era chefe de viatura, seguindo, de pé, ao 
        lado do condutor, tentando ver a viatura do Capitão, que parou à saída 
        de Luanda. As restantes viaturas foram-se aproximando. Quando a coluna 
        estava toda reunida, o Capitão fez sinal com o braço, indicando que 
        seguiríamos para a direita.  
        
        Senti-me aliviado, não sei porquê! Se fosse para a 
        esquerda se calhar ficaria triste. Mal sabia o que nos esperava… 
        
        A marcha começou lenta. Seguimos pela estrada que dá 
        para Malange. Passados 16Km surge a povoação de Viana; continuámos 
        viagem sem problemas de maior. Íamos olhando a paisagem. Aqui uma 
        sanzala, além, à esquerda, uma plantação de sisal, grande como o país, 
        só comparável no “Puto” a alguma fazenda Alentejana. “País grande”, 
        pensei. E nós em Portugal a cavar pedra em Trás-os-Montes para podermos 
        cultivar qualquer coisa. O ronronar dos motores das viaturas adormecia 
        os sentidos. Hei! Nada disso! Não pode ser! Olho à viva!  
        
        – Condutor, como vai isso? Vais cansado?  
        
        – Não meu Furriel. Isto é chato, mas lá vamos indo. 
        
        Olha! Uma povoação com casas de alvenaria ao longe! 
        Fomos andando e apareceu uma placa na estrada que dizia Catete. Olhei o 
        conta-quilómetros. Tínhamos andado 60Km. 
        
        Lembrei-me do que em Luanda o Sr. Nero me disse: que 
        aos domingos, por vezes, iam tomar a bica a Catete. Eram só 60Km! 
        
        Fomos andando. Passávamos agora pela “Vila Salazar” 
        (no meu tempo de escola primária aprendi que o antigo nome desta terra 
        era N’Dalatando). Salazar tinha o nome em tudo que era sítio. Se ele 
        algum dia tivesse vindo ver esta Província, como ele dizia, teria 
        chegado à conclusão, como Norton de Matos, que o governo devia estar em 
        Angola e o “Puto” ser um local de férias na Europa, para os 
        Ultramarinos. Nunca saiu de “casa”! Só conhecia o Ultramar por aquilo 
        que lhe contavam; tinha ideias fixas e os resultados estão à vista. Só 
        não consigo esquecer o que ele disse um dia: “O Ultramar não se perde em 
        África; se se perder é na Europa!” 
         
        Chegados ao Lucala, houve ordem de paragem para descanso das viaturas e 
        do pessoal. Tivemos ordem para visitar a povoação, muito simpática por 
        sinal. Foi aí que vi pela primeira vez lagostins de água doce, no rio 
        que passava junto à povoação. 
        
        Continuámos. À saída de Lucala voltámos à esquerda e, 
        finalmente, rumámos para Norte. A coluna militar era longa, a “estrada” 
        era de uma espécie de barro vermelho e as viaturas levantavam um pó 
        infernal. Era impossível usar óculos; os óculos iam para o bolso e do 
        bolso saía o lenço verde da tropa que nos fazia muito jeito. Era 
        amarrado por cima do nariz e dava-se um nó atrás da cabeça, o que nos 
        permitia respirar menos-mal. 
        
        A viagem ia prosseguindo sem problemas de maior. Nem 
        as viaturas avariavam, o que nos parecia milagre, pois as GMC, que já 
        eram da Segunda Guerra Mundial. Íamos passando por sanzalas e povoações. 
        De repente, à entrada da Vila 31 de Janeiro, deparo-me com um cenário 
        que me deixou abismado: a escola lá do sítio era igualzinha a uma que 
        havia na Gafanha da Vagueira! Cor e tudo… Como é possível? 
        
        E a memória retrocede, à minha terra... à minha 
        família. “Meu Deus, porquê?” Há momentos na vida em que era preferível 
        não ter memória… 
         
        Onde pára o Furriel Miranda?! 
         
        Chegámos a Camabatela, onde iríamos passar a noite. As viaturas foram 
        chegando e estacionaram. A malta dormiria nas viaturas. De repente o 
        alarme! Falta a viatura do Furriel Miranda. Que é feito deles? O Capitão 
        chamou o Sargento Mecânico Lino:  
        
        – Ouça, ó Lino, o Sargento Miranda não teria tido uma 
        avaria e ficado para trás?  
        
        – Não, meu Capitão. A minha viatura era a última e 
        nenhuma se atrasou.  
        
        Não me afligi muito com o caso. Conhecendo como 
        conhecia o Miranda, certamente chateado com a marcha lenta da caravana, 
        deve ter andado em marcha mais acelerada e estaria à nossa espera mais à 
        frente. Mas como não respondia às chamadas da rádio, todos ficámos 
        preocupados, embora já soubéssemos que as transmissões eram o calcanhar 
        de Aquiles da nossa tropa! “Ah… não há-de ser nada de mal!” Falei com um 
        soldado do aquartelamento de Camabatela que me disse existir outra 
        Companhia aquartelada uns 30Km mais à frente. Era muita distância para 
        uma viatura sozinha, de noite, por estradas desconhecidas! Mas o que 
        teria acontecido ao Miranda?! 
        Nisto aparece um estafeta perguntando quem era o Comandante daquela 
        tropa. 
        
        – Aquele ali. É o Capitão. – Alguém respondeu. 
        
        O estafeta dirigiu-se a ele e entregou-lhe uma 
        mensagem. O Capitão leu-a e começou a gritar em altos berros: 
        
        – O Miranda está num destacamento 30Km mais à frente. 
        Amanhã vai levar uma “porrada” que nem sabe de que terra é!  
        
        Todos respirámos de alívio. O Sr. Capitão esqueceu-se 
        que, com o cair da noite e o pó que as viaturas levantavam, tinha de 
        haver uma maior distância entre elas, e por vezes nem os faróis da 
        viatura que vinha atrás se viam. Enfim, coisas de quem manda. 
        
        No dia seguinte, depois da alvorada, foi organizada a 
        coluna e partimos, andando sempre para Norte. A nossa orientação era o 
        sol. As viaturas pareciam querer colar-se ao solo. A caixa de 
        velocidades tinha de trabalhar em constantes reduções. A velocidade 
        diminuía aqui, voltava a subir além! Mesmo assim andávamos quase sempre 
        muito devagar... 
         
        Encontro com outros companheiros em Maquela 
         
        Mais tarde informaram-nos que iríamos passar pelas minas de cobre do 
        Mavoio! Passámos por bastantes povoações onde se viam poucos habitantes, 
        brancos e pretos, até que chegámos à cidade de Maquela, com diversas 
        casas comerciais que pareciam bem abastecidas. 
        
        Era meio da tarde e a ordem foi para estacionar e 
        aguardar a manhã seguinte. Partiríamos logo que fosse dia, para tentar 
        chegar ao destino algumas horas depois. 
        
        Como sempre sucede, a tropa estacionada procurava 
        entre os “maçaricos” – tropa-nova – se haveria alguém da sua terra. Era 
        uma azáfama. Uns encontravam alguém conhecido e a pergunta era sempre a 
        mesma:  
        
        – Como está fulano? E sicrano? A filha dele já casou? 
        
        Outros não tinham tanta sorte e ficavam desapontados, 
        tristes.  
        
        – Deixa lá pá! Amanhã vem outra Companhia do nosso 
        Batalhão e pode ser que venha alguém da tua terra. Agora diz-me. Como é 
        isto por aqui?  
        
        – Olha – responde-me o outro – andamos na 
        psicossocial mas nunca sabemos quando estamos a falar com um amigo ou um 
        inimigo. Somos do batalhão do Spínola e ele tem a mania da psicossocial. 
        Tem resultado, com muita paciência. É um trabalho moroso, mas já 
        conseguimos recuperar meia dúzia de sanzalas, que ficam aqui à volta da 
        cidade e para Sul, por onde vocês passaram. 
        
        Estranhei a conversa do militar e as informações que 
        me estava a prestar. O fato de combate que vestia estava sujo, além de 
        ter a barba comprida.  
        
        – Qual é o teu posto? – Perguntei: 
        
        – Alferes Miliciano Garrido – respondeu, 
        estendendo-me a mão.  
        
        – Sargento Miliciano Ribau – apresentei-me, 
        retribuindo o cumprimento.  
         
        Conversámos algum tempo. Fiquei a saber por ele que a sede do nosso 
        Batalhão iria ficar em Cuimba, mas a distribuição das Companhias era da 
        responsabilidade do Comando do Batalhão, pelo que não soube adiantar 
        mais sobre o assunto. Disse-me ainda que iríamos passar pelo menos dois 
        rios, cujas pontes estavam em muito mau estado ou mesmo destruídas. 
        Recomendou-me que avisasse o “pessoal” de que os pretos que 
        encontrássemos nas sanzalas deveriam ser respeitados. Poderiam ser 
        inimigos mas também poderiam ser amigos e, se bem tratados, poderiam 
        mais tarde dar-nos informações preciosas sobre o IN.  
        
        Coisas desta guerra. Nunca se sabia onde estava o IN! 
        Provavelmente alguns estariam em Maquela do Zombo, onde nos 
        encontrávamos, vigiando os nossos movimentos para passar a informação 
        para o outro lado da fronteira, a uma escassa meia dúzia de quilómetros.  
        
        Despedimo-nos, desejando recíprocas felicidades, indo 
        cada um para seu lado. 
        
        Dirigi-me para a minha viatura onde o condutor, 
        cansado de tantas horas agarrado ao volante, dormia profundamente. Na 
        caixa do Unimog outros soldados conversavam, tentando aconchegar-se para 
        passarem a noite o melhor que pudessem. Teriam de dormir ali. Sentei-me 
        ao lado do condutor e devo ter adormecido por muito tempo, pois quando 
        acordei já a aurora raiava. O pequeno-almoço, um copo do cantil cheio de 
        café com bolacha da ração de combate, e estava feito. 
        
        Houve ordem para pôr os motores em marcha; começaram 
        a ouvir-se, primeiro um, depois outro até que estava tudo preparado para 
        arrancar. E o meu condutor mal abria os olhos – era um pouca-tripa e 
        estava “todo roto” – como se diz na gíria. “Valha-me Deus” pensei.  
        
        – Queres que eu conduza um bocado?  
        
        – ‘Tá bem meu Furriel. O nosso Capitão não se 
        chateará?  
        
        – Não, deixa isso comigo. 
         
        À vergastada! 
         
        Quando me sentei ao volante notei que à minha frente vinha o Capitão aos 
        gritos com uma vergasta na mão!  
        
        – Oh pá, daqui para a frente é que é perigoso; não há 
        mais tropas nossas! Cuidado com a condução!  
        
        E dava uma vergastada no condutor de cada uma das 
        viaturas por onde passava. 
        
        Pareceu-me tão mal o que ele andava a fazer – os 
        homens não são nenhum rebanho – que me pus de pé em cima do banco do 
        condutor. Peguei na FBP e puxei a culatra atrás! A arma estava em 
        posição de fogo! Entretanto o Capitão foi-se aproximando da viatura onde 
        estávamos. Ouvi o Cabo Pombal dizer:  
        
        – Meu Furriel, veja lá o que é que vai fazer?! 
        
        O Capitão passou pela nossa viatura olhando de 
        través:  
        
        – Cuidado com a condução Ribau. 
        
        E seguiu para outros carros onde continuou com o 
        mesmo serviço. 
        
        – Se ele me fizesse o mesmo – respondi ao Pombal – eu 
        tinha-lhe descarregado o carregador todo no bucho!  
        
        – Pois é! E depois? 
        
        Interiormente dei razão ao Pombal. Pus a arma em 
        segurança e guardei-a. 
        
        Houve ordem de avançar. Começámos a andar e com o 
        trabalhar dos motores comecei a ficar mais descansado. Meu Deus o que eu 
        teria feito se o homem me tivesse agredido?! É que naquele momento eu 
        teria disparado mesmo! Há alturas na vida em que até nós mesmos nos 
        desconhecemos. 
        
        Avançávamos mais. Passámos por matas, estepes com 
        árvores raras, aqui e acolá saltava um animal por cima da vegetação 
        baixa. Terras que em Portugal seriam óptimas para cultivo, aqui eram só 
        mato. Junto às cubatas ainda se notavam vestígios de cultivo de 
        subsistência – fubá e milho – e pouco mais. 
         
        Atravessando a ponte 
         
        Chegámos ao primeiro rio. A ponte, se assim lhe poderemos chamar, era 
        composta por quatro grossos troncos de árvore amarrados dois a dois, 
        para não se desviarem quando a viatura passasse. O rio era baixo e tinha 
        bancos de areia junto à margem.  
        
        Primeira coisa a fazer: examinar a “ponte” por baixo, 
        pois podia estar minada. Desci da viatura e acerquei-me da ponte. Quando 
        já estava próximo, ouço um grito de cima do nosso Unimog: 
        
        – Cuidado, meu Furriel!  
        
        Olhei para a viatura e indaguei o que se passava. 
        Então, apontando na direcção do rio, um tropa disse: 
        
        – Um “corcodilo”! 
        
        Olhei na direcção indicada e o “dito cujo” deslizava 
        vagarosamente na areia onde se encontrava a tomar banhos de sol, 
        meteu-se na água, calmamente, como se o tivessem chateado ao 
        acordarem-no da sonolência em que se encontrava. Tomei mais cuidado, 
        desci ao rio e observei a ponte por baixo. Não vi nada de anormal. 
        Avançámos. Dois tropas passaram para o outro lado da ponte donde 
        orientavam a progressão da viatura: 
        
        – Mais para a esquerda. Agora a direito, sempre a 
        direito e devagar; avança, avança… pronto. Já está. 
        
        Já na outra margem avançámos um bocado para que todas 
        as viaturas pudessem passar e montámos segurança. Esta segurança era 
        muito relativa. No caso, dois homens de pé em cima do Unimog, de costas 
        um para o outro, tentando proteger-nos contra qualquer ataque 
        inesperado. 
        
        Pouco depois a coluna retomou a sua marcha. Passámos 
        o segundo rio cuja ponte se encontrava em muito melhor estado que a 
        primeira. Chegámos finalmente a Cuimba, onde iria ficar o Comando do 
        Batalhão e a Companhia de Comando e Serviços. Povoação indicada no mapa. 
        Concelho, cidade, não sei. Posto Administrativo tinha sido. Olho bem. A 
        povoação, meia dúzia de casas, se tanto, do tipo colonial, de 
        rés-do-chão, varanda a toda a volta, umas com telhado de zinco, outras 
        com telhado de colmo, que avançava para fora das paredes, protegendo 
        assim as varandas e o interior das casas do sol, que em certas épocas do 
        ano é tórrido. 
         
        Destino final: Pangala 
         
        Mais uma paragem. Só no dia seguinte seguiríamos para o nosso destino. 
        Na reunião que houve à noite soubemos, finalmente, que a Companhia 306, 
        a nossa, vai para Pangala. Procurei afanosamente no meu mapa. Tínhamos 
        de seguir pela estrada que vai de Cuimba para São Salvador do Congo 
        onde, mais ou menos a meio desse trajecto, virávamos à direita na 
        estrada para a Buela. Andaríamos mais umas horas até que apareceria na 
        estrada, à direita, uma casa comercial de um branco, abandonada, onde 
        ficaria instalado o Comando da Companhia.  
        
        
        Partimos no dia seguinte, bem cedo. O tipo de 
        paisagem era sempre o mesmo: mata e vegetação baixa. Passadas umas horas 
        de viagem o sol torrava-nos as costas. 
        
        Começámos a descer. Era uma descida suave mas 
        extensa. Ao longe viam-se árvores; mais uma mata, pensei. Só que esta 
        era muito verdejante, sinal de que ali devia haver água. Serviria para 
        lavar a cara à vontade, coisa que já não fazíamos há muito tempo. Parte 
        da Companhia tinha passado o riacho chamado “Cuilo” que, embora levando 
        muita água, permitia a passagem das viaturas sem problemas de maior. Não 
        foi autorizada a paragem e a companhia seguiu o seu caminho calmamente. 
         
        O primeiro ataque do IN 
         
        Sem o menor aviso, começaram a ouvir-se rajadas de metralhadora do outro 
        lado do riacho. A mata que ficava à nossa direita!  
        
        Cornos no chão, foi o que fizemos sem esperar 
        qualquer ordem. Eu tive azar porque a minha aliança ficou presa num dos 
        ganchos que seguram o toldo da viatura. Aflito lá consegui 
        desenrascar-me. Ainda não tinha chegado ao chão quando uma bala cantou – 
        segundo mais tarde observei – exactamente no gancho onde eu tinha ficado 
        preso. Tive sorte... 
        
        Respondemos àquela metralha durante algum tempo, até 
        que da frente veio a ordem de parar o fogo. Ficou um silêncio de morte. 
        Ninguém se mexia.  
        
        – Embarcar e avançar – foi a ordem ouvida.  
        
        Assim fizemos. Um de cada vez tomou cautelosamente o 
        seu lugar no Unimog, com a arma apontada, pronta a fazer fogo. As 
        viaturas avançaram e continuámos viagem. Quando o nosso carro passou 
        pelo riacho, uma fresquidão saborosa assaltou os nossos corpos suados. 
        Aqui as árvores eram altas e frondosas. Havia canas da Índia com seis ou 
        sete metros de altura, e um diâmetro igual ao da minha coxa. Neste sítio 
        a natureza foi pródiga, talvez por a zona ser pouco habitada. Faltavam 
        aqui os maiores destruidores da natureza, os homens! 
        
        Prosseguimos o nosso caminho. Sempre a mesma 
        paisagem: mata, capim, capim, mata. Hei! O que é aquilo?! Finalmente um 
        indício de civilização. Um sinal de aproximação de estrada sem 
        prioridade e os dizeres: “Gasolina Sphinx” e por baixo “Vacuun Company”, 
        isto no meio de uma imensidão de terreno, onde já tínhamos desistido de 
        encontrar qualquer sinal da dita “civilização”. Era impensável. 
        Aproximação de estrada sem prioridade! 
        
          
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        Um sinal de civilização  | 
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        Provavelmente seria aqui o desvio para Pangala, onde iríamos ficar 
        aquartelados. Mas aproximação de estrada no país onde nos encontrávamos 
        não nos dizia muita coisa. De maneira que o melhor era ir andando e 
        esperando.  
         
        Pangala, finalmente... 
         
        Fomos avançando às cegas e, às tantas, lá apareceu um desvio para a 
        direita, por onde seguimos até ao nosso destino. Um pouco antes de 
        chegarmos a uma sanzala chamada Pangala, encontrámos uma casa comercial 
        abandonada que em tempos pertencera a um branco. Era nessa casa que iria 
        ficar instalado o Comando da nossa Companhia.  
        
        Tínhamos chegado ao local onde se dizia que iríamos 
        ficar mais ou menos um ano. Que tristeza! Que desconforto! Havia outras 
        Companhias que, destacadas em fazendas, tinham instalações que 
        comparadas com o nada que encontrámos, eram um luxo. Era preciso 
        construir de raiz as instalações que nos iriam acolher. O capim era 
        alto, quase da altura de um homem. Tivemos que começar logo a descapinar 
        a zona para arranjar espaço para montar as tendas já nessa noite. 
        
        A primeira obra que fizemos, foi arranjar um 
        “armazém” para os mantimentos. Estes não podiam estragar-se. 
        
        Depois cortámos árvores, fizemos estacas, delimitámos 
        o perímetro do acampamento. A área interior foi totalmente descapinada. 
        Ficou limpa. Uns instalaram o arame farpado, enquanto um pelotão saiu do 
        Aquartelamento à procura de uma nascente de água. Dela dependia a nossa 
        subsistência. Não havendo água, não havia comida cozinhada, não havia 
        café, e de ração de combate estávamos nós mais que fartos. As únicas 
        coisas que se lhe aproveitavam eram as latas de conserva – de chouriço 
        ou de sardinhas – com as quais fazíamos sandes. Mas para fazer sandes 
        era preciso pão e para o cozinhar era preciso água…! 
        
          
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        Casa de Pangala  | 
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        Em busca de água 
         
        Chegámos a trazer dois pelotões à procura de água. O acampamento ficava 
        num alto, de maneira que tínhamos de procurar nas ravinas. Havia na 
        Companhia uns “habilidosos” que diziam que na sua terra a água se 
        procurava com uma varinha verde dobrada em arco. Quando houvesse água 
        debaixo da terra a varinha tremia. Qual quê! Nem com tremuras nem sem 
        elas aparecia água. 
        
        Quando o Furriel Soares, que era Regente Agrícola, 
        estava de serviço de segurança ao acampamento, subiu ao posto de 
        observação montado numa árvore cerca de cinco metros acima do solo e, 
        observando o horizonte, notou para nascente do acampamento uma zona mais 
        verde de capim. Desceu do posto de observação e, cheio de esperança, 
        disse ao oficial de serviço: 
        
        – Meu Alferes, vou descobrir onde podemos encontrar 
        água. Destaque um pelotão para vir comigo. 
        Disse isto com tal convicção que todos o que o ouviram se ofereceram 
        como voluntários. 
        
        – Calma – disse o Soares – bastam dois Unimogues e 
        duas secções. Tragam barris que nós vamos trazer água.  
        
        Ouvi esta conversa e perguntei ao Soares: 
        
        – Andaste a beber?  
        
        – Não mas vou beber ainda hoje ÁGUA à vontade!  
        
        – Deus te ouça – respondi.  
         
        Foram o Furriel Soares e o Furriel Blica, cada um na sua viatura e um 
        jipe com atrelado, onde levava os barris vazios para trazer cheios de 
        água. “Que fé!”, pensei. Oxalá tenham sorte. 
        
        Passadas umas horas vimos aparecer as viaturas, 
        aproximando-se devagar. Chegados ao acampamento, disseram onde tinham 
        encontrado a água, numa ravina muito funda, e com a ajuda do guincho da 
        viatura tinham arrastado os barris até cá acima. Era difícil; os barris 
        podiam partir-se. Logo ali se resolveu fazer uma espécie de padiola, um 
        trenó, que arrastaria pelo chão evitando assim que os barris se 
        danificassem. 
        
        – Eu faço, meu Furriel, – disse o Cabo Barriguinha, 
        carpinteiro de profissão – amanhã vou aparelhar madeira para isso. 
         
        No dia seguinte, ao fim da tarde, a padiola estava pronta a ser 
        utilizada. 
        
          
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        Abastecimento de Água  | 
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        Escriturário promovido a electricista  
         
        Deixámos de nos preocupar com a água e começámos a pensar na segurança 
        do acampamento. Havia que montar o resto do arame farpado e fazer a 
        instalação eléctrica nos postes onde estava o arame com as lâmpadas 
        voltadas para fora. Era necessário montar o fio eléctrico nos postes o 
        que foi prontamente feito. De seguida era necessário fazer os 
        projectores (uma espécie de chapéu chinês feito em chapa, em cujo 
        vértice se abria um buraco por onde entrava o suporte da lâmpada) para 
        cada lâmpada. Era. Tudo foi feito e instalado com a ajuda e boa vontade 
        da malta. Chegou a altura de fazer as ligações. Eu, que estava 
        encarregado de passar os cabos e fazer o resto, não percebia nada de 
        electricidade. Não queria fazer asneiras, e porque havia na Companhia um 
        técnico especializado – o Furriel Gastão – dirigi-me ao Capitão 
        confessando a minha ignorância em ligações eléctricas. Sugeri que fosse 
        o Gastão, técnico-electricista, a fazê-las, o que evitaria problemas 
        futuros. A resposta não se fez esperar: “Não!”O encarregado do serviço 
        era eu e portanto eu é que teria de fazer as ligações. O Gastão 
        continuaria com o serviço que lhe tinha sido destinado, abrir um abrigo 
        para a metralhadora “Breda”, que enfiava na estrada que vinha de Buela e 
        eu, empregado de escritório, teria que fazer as ligações eléctricas! 
        Coisas da tropa... 
        
        Apreensivo chamei o pessoal “electricista”, expliquei 
        o que se passava, e logo um homem que já tinha trabalhado em 
        electricidade disse que não ia haver problemas, que faria as ligações. 
        Só precisava de quem o ajudasse a segurar o escadote e que lhe passassem 
        os materiais. Assim foi; as ligações foram feitas, as lâmpadas 
        atarraxadas nos suportes. Só faltava a ligação da instalação ao gerador, 
        para ver se ele tinha força para aguentar com aquilo. Ligado o gerador 
        na presença do Capitão, após ter sido foi feita a ligação à rede de 
        segurança (mesmo sendo de dia, era necessário ver se funcionava). As 
        lâmpadas eram tão fraquinhas que a luz mal se via, mesmo estando todas 
        acesas! 
        
        O Capitão sentenciou: 
        
        – Estás a ver pá, eu sabia que tu conseguias! Agora o 
        Gastão é que vai fazer a instalação da casa do Comando. Chamem-no para 
        vir ter comigo. 
        
        Na casa do Comando estavam instalados a messe dos 
        oficiais, os quartos dos oficiais, a enfermaria e a secretaria. O Gastão 
        apareceu todo suado, e recebeu ordem para no dia seguinte dar início aos 
        trabalhos. 
         
        Construção do acampamento 
         
        Por todo o acampamento viam-se enormes quantidades de adobes feitos do 
        barro da própria terra que, depois de amassado, era colocado em formas e 
        ficava a secar ao sol. Depois de secos eram empilhados até serem 
        utilizados na construção das casernas. E nova remessa era amassada, 
        metida nas formas e seca. A cena repetia-se. 
        
          
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        Construção de mais uma caserna. Ao fundo, o forno, sem o qual não seria 
        possível sobreviver.  | 
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        As operações de reconhecimento e as emboscadas começaram, sem que 
        parasse a construção do acampamento. Embora duro, tinha que ser assim. 
        Os soldados dormiam no chão das tendas e os sargentos na tenda da 
        enfermaria. Como havia melhores instalações para a enfermaria na casa do 
        Comando, foi-nos distribuída esta tenda, onde dormíamos no chão em cima 
        de um colchão, por baixo do qual colocávamos tábuas para que não 
        apodrecesse! 
         
        São Salvador do Congo 
         
        Além de tudo isto havia ainda o abastecimento, que era necessário ir 
        buscar a São Salvador do Congo. Era mais um pelotão destacado para a 
        segurança dessas viaturas. Havia uma escala para desempenhar esse 
        serviço. Sempre se via outras gentes. Parávamos por vezes na Companhia 
        nossa vizinha, pertencente ao Batalhão do Spínola. Dois dedos de 
        conversa, e sempre um pedido de informação: “Como está o caminho para a 
        frente? 
        
        Seguíamos viagem e chegávamos ao nosso destino. O 
        Vagomestre – Furriel Cura – ia tratar do abastecimento, depois de se 
        marcar a hora de regresso. Quanto mais cedo melhor, pois nunca sabíamos 
        o que nos podia esperar no caminho; uma avaria numa viatura, uma 
        emboscada, ou qualquer outro azar, que atrasasse a chegada ao 
        acampamento. 
        
        A tropa de segurança podia então passear pela cidade, 
        dar umas voltas, beber uma bebida fresca. Nunca fomos autorizados a 
        visitar a sanzala que ficava junto à cidade, do lado-de-lá da pista de 
        aviação, onde havia as “minina” mas onde podia haver “makas”. 
        
        O “Nord-Atlas” – a quem nós chamávamos, pelo seu 
        feitio, “Barriga de Ginguba” – avião que transportava de tudo, desde 
        farinha, batata, carne fresca, etc., etc., aterrava finalmente. Agora o 
        Vagomestre já podia aviar-se. 
         
        Fotografias 
         
        Os meus rolos fotográficos, o papel para fotografia, os reveladores e 
        fixadores tinham acabado. Só os podia arranjar numa casa comercial de 
        São Salvador, que vendia de tudo. Teria de me deslocar lá na próxima 
        coluna que fosse à cidade. 
        
          
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        À direita na foto o “Comércio” onde o autor comprava os artigos para 
        fotografia.
        (A casa Salvador Beltrão)   | 
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        Regressámos com as GMC a abarrotar de comida, cerveja e 7Up, bebidas 
        refrescantes. A cantina já havia sido montada na casa do Comando. Lá 
        estava o tão desejado frigorífico, sempre cheio de bebidas frescas! Como 
        só havia electricidade parte da noite, o frigorífico era alimentado a 
        petróleo.  
        
        A chegada ao acampamento era um descanso para quem 
        vinha da “rua”. E para quem estava! Só nessa altura conseguíamos 
        descontrair. O espírito de equipa quer a nível de pelotão quer a nível 
        de Companhia era tal que quando um indivíduo era ferido parece que todos 
        sentiam essa dor. 
        
          
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                              Única foto aérea do 
                              nosso acampamento (Companhia 306). Foi tirada pelo Alferes 
                              Miranda, durante um reconhecimento aéreo. É uma 
                              imagem ténue como a ideia que agora fazemos 
                              daquele local.  | 
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        “Sete Up” 
         
        Descarregadas as viaturas, o Bifanas acerca-se de mim:  
        – É meu Furriel, estou cheio de sede; não me paga uma sete up”? 
        – O quê? Uma “sete up”, o que é isso?!  
        – “Atão” o meu Furriel não sabe?  
        Olhei-o desconfiado!  
        – É aquela garrafa verde.  
        Era uma garrafa de 7Up... 
        – Ó pá – respondo – aquilo é seven-up! 
        – Ó meu Furriel não goze comigo, eu sei muito bem ler: sete+up é “sete 
        up”!  
        – Pronto, está bem. Manda vir duas que eu pago. 
        A conversa com o pó do caminho também me tinha secado a garganta… E lá 
        bebemos uma “sete up” cada um. 
         
        O jantar costumava ser cedo, ainda com a luz do sol. Nesse dia era 
        dobradinha brasileira com feijão branco. Estava apetitosa. Confesso que 
        tivemos sorte com o cozinheiro da Companhia. Era um profissional que, 
        antes de ser tropa, trabalhava na casa de uma família abastada da Linha 
        do Estoril. Bom cozinheiro, e, como era necessário naquelas paragens, 
        cheio de imaginação. Arroz ou feijão, eram feitos de mil maneiras. O 
        Comandante da Companhia delirava com os cozinhados do Zé Cozinheiro! 
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