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Em Praga, diálogos com Kafka, ao som apenas imaginado de Mozart


 

“I´m sitting in the Kavarna Slavia, people-watching” (Michal Ajvaz, 1991)

 

Habitantes do Paraíso Terrestre, talvez como Kafka e Milena, livres e seguros cidadãos do céu. Deslizamos nas águas de um lago. Ou no arco celestial de um céu. Placidamentemente, porque doces são os pensamentos que me levam. Afectos.

O odor quente e macio da canela no chá de maçã com rum.

Vejo-te através de um olhar risonho, perdido talvez, num momento outro, (ir)recuperável. Sorrio-te, ausente. Recosto-me no presente cheio de cores, vazio de sobressaltos.

Ao arrepio do sonho, sonho ilhas em sombras de ouro existente na manhã fria cingida em amoroso manto branco de neve.

Os ruídos chegam-me, rompem sobre a cidade de deuses invisíveis, através dela, assente em duas margens de um rio misterioso. O longínquo zumbido de vozes, em uníssono, tentando chegar como sonoros reflexos coloridos ao coração.

Um estremecimento no horizonte. É ronceira a mancha vermelha do eléctrico que rasga a janela, ao passar. Delicada parede de vidro. Ciosa transparência, resguardo de nada.

Na elevação ao fundo, o Castelo, límpido, claro, leve, ascendente. O vazio aparente da névoa já desaparecida. O toque do sino, um toque alado e alegre.

Corvos enormes e gordos, saltitando num pequeno largo, em concerto disperso.

Falas-me neste tempo em que pareço não me reconhecer, estranha de mim. E evolo-me em movimentos que te excluem, apenas meus. E evolas-te em movimentos que me excluem, apenas teus.

Respondo-te, pairando nas pontes que nos unem. E as palavras e os gestos desenham o contorno de imagens convergentes e radiosas, translúcidas. Cantarolamos. Eu e tu. Devagarinho.

Alquimias. Golem e Fausto.

Jesus Menino traquina num barco brincando com as cinco estrelas de Nepomuk.

Mágica Lanterna. Václav Hável esboçando peças de esperança  em verde Veludo de Primaveras, Einstein debitando a fórmula, poetas burilando versos, Mucha absorto pintando Sara Bernard, Mozart compondo para Josefina, compondo sempre.

Amo a cidade, cintilante, absorvente de luz  meio coada, a que a porosidade dos edifícios imponentes e belos transmite tonalidades etéreas. Bebo-lhe a meticulosa beleza.

Olho-te e não te vejo? Tu, eu e esta cidade. Esta que percorremos, a do luxo, calma e volúpia, e as outras onde nos situamos porque nos habitam o pensamento.

Com a ligeireza de pássaro, suavemente vogamos, empurrando pensamentos. Colocando laços, desfazendo outros. Sem nos importunarmos. Tranquilamente. Protegidos no regaço da quietude e do enlevo. Da (re)descoberta.

A vaguear por praças, parques, ruas e becos… Pináculos, telhados, fachadas. Janelas, colunas, estátuas. Gente.

Refugio-me nos sons e nos silêncios. Não nos teus, por momentos a esses não os oiço. Naqueles que escolho como meus. Aventuras interiores. Em Praga as religiões perdem-se: como as pessoas.

Apetece-me o côncavo aconchego do teu braço. Aí repousarei o desassossego dos meus dias. Aí sossegarei a insónia das minhas noites.

O negrume prateado do teu cabelo, onde roça a doçura dos meus dedos. Estendes-me a mão, puxas-me a ti. Deixo-me envolver nesse terno amplexo.

Fecho os olhos. Que te diz a intensa liquidez quente do meu olhar?...



ALICE  (Carnaval, Fevereiro de 2005)

 

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