Mário
Sacramento foi sempre, para a juventude aveirense dos anos 50/60, a
mais activa, o consultor literário e político, portanto de uma geração
que navegava entre o deve e haver de remar ou não remar ao sabor das
ondas e contra elas.
Tinha
a seu favor, desde os bancos do liceu, um comportamento intelectual e
cívico de grande frontalidade e que lhe permitia ser, ao mesmo tempo,
um lúcido crítico e um homem para o diálogo. Costumava dizer: São
meus amigos, mesmo que o não
queiram, todos os que discordam
honradamente de mim. E, particularmente, sobre a juventude não se
cansava de recomendar: Os jovens devem aprender
à sua custa. Catalizá-los, sim; sermoneá-los, nunca.
«Sacramentados»
ou não, como ironicamente então se dizia, estudantes e aprendizes
do trabalho saberiam que, nos interrogatórios pidescos a que fossem
submetidos, dentro e fora daquela organização policial, mais
depressa eram sujeitos a demarcar-se de Mário Sacramento e do Café
Trianon, onde ele se juntava com os amigos, do que forçados a assinar
a velha declaração do «activo repúdio de todas as ideias
subversivas». E os esbirros lá saberiam porquê...
Tido
e havido, pois, como o inimigo político n.º 1 de toda a
região de Aveiro, e não só, porque a sua influência crescia ao nível
das mais diversas camadas etárias daqui e, dalém, Mário Sacramento,
entretanto, e no intervalo das várias prisões (ou dentro delas, como
também aconteceu), agia, congregava, meditava e escrevia... e cada
vez menos só literatura.
Viria
a confessar, em seu Diário: Acomodei-me à praxis
do imediato e do quotidiano e amordacei o pequeno escritor que trazia
em mim, dando a primazia ao político, que talvez inicialmente não
fosse, mas que, à força de experiência, acabei por ser.
Há
uma noite em que um magro jovem do grupo do Trianon o procura, apesar
de ameaçado para o não tentar e estabelece com ele o seguinte diálogo:
—
Venho de ser preso e interrogado pela PIDE acerca de uma reunião
nossa, lá em...
—
E então?
—
Disse-lhes que só de publicistas, para a criação de mais um
suplemento literário...
—
É isso. Enquanto houver literatura está salva a Pátria.
A
literatura, para Mário Sacramento, foi sempre sua paixão e uma fonte
de largas controvérsias consigo e com os outros. Se lhe permitia, por
um lado, mostrar a velhos e novos autores que há uma possível e
outra necessária, não só em função dos padrões estéticos como
sociais (porque o que me
apaixona, no fundo, é a intervenção, a transformação da realidade
como tal), por outro, esse rigor impunha-lhe o medir regularmente
a sua própria eficácia, enquanto crítico e ensaísta, pois que
talvez fosse mais útil aos outros se pela via da criação literária
pura e simples (e não tão simples nem tão pura como isso).
Não
será, de resto, outra a interpretação que se possa fazer deste
naquinho do seu quase esquecido Diário (jornal e memórias): Vivemos numa época dilacerada. Repercuti-la é o nosso normal. Só que
me falta a faúlha que permite realizar o que se intui. O belo
romancinho que acaba de sair do Abelaira (Bolor), quantas vezes me
andou no sangue e em borrões de novelas cruzadas de que acabei
desistindo? As obras de uma época não pertencem aos seus autores
apenas. Já me aconteceu chorar (chorar, repito) ao ver feito por
outros o que eu trazia nas entranhas mas não partejava. Nem todos
compreendem este dramazinho do crítico, nem atingem por que fala ele
do que leu — como se dele
fosse, por vezes.
Já
anteriormente, porém, Mário Sacramento havia dito: As minhas críticas, já autocensuradas
por mim, sofrem novos atropelos, ora da Censura ora da Redacção...
Como poderão, depois disso, agradar seja a quem for?! Não seria
melhor pô-las de parte e preparar, de preferência, os livros que
tenho adiado, adiado, adiado?
Dizia-o e isto apesar de numa única coisa se reconhecer: «no
ensaio da vida e no ensaio da vida enquanto vida, está claro», visto
que «só o ensaio autêntico põe o homem a nu. O que significa sem
pele e, portanto, decente como uma estampa anatómica, mas também ridículo
— se é pequeno. A alternativa, neste caso, põe-se entre o silêncio
e a gaveta. Do silêncio sei eu. Da gaveta sei menos porque nunca a
prezei».
O
desejo de atingir, também pela escrita, o caminho mais curto para
chegar a todos, e afinal aonde era preciso, não haveria nunca de largá-lo
e tanto mais que «os livros de ensaio, acessíveis que são a uma
minoria somente», pouco ou nenhum resultado poderiam dar-lhe, «para
além da fruste “vaidade” e do nome no cartaz. E perguntava-se
então: Muito querer e
pouco fazer? Talvez. Mas... antes isso que «legitimar» o fascismo
vivendo nele como se fosse... natural, humano, aceitável...
Nesse
tempo, os jovens literatos aveirenses, — ou «os páginas», como
eram carinhosamente tratados por um companheiro de pensão e vizinho
de uma mesa ao lado, no Trianon — não poderiam ser indiferentes a
esta e outras problemáticas postas pelo autor de «Ensaios de Domingo»
e igualmente por esse homem dos mais responsáveis no erguer daquela
tribuna ou barricada que a luta antifascista regista sob o nome de
Congressos Republicano e Democrático de Aveiro.
Ter-se,
através da palavra escrita, em folhas e suplementos literários, uma
presença viva e actuante para o fim da «noite salazarenta», era, ou
seria, para a maioria dos tais «páginas» apesar do medo, de certo
lirismo e alguma insegurança pessoal, o caminho lógico para a própria
emancipação. Mário Sacramento somente confessava algumas vezes: Se
a experiência fosse um testemunho que se transmitisse! Mas só a do
foro íntimo é válida. Dói-me pensar que alguns deles vão ficar incompreendidos
ou incompreensíveis pelo caminho, como tantos, tantos outros que os
precederam!
Sorrindo
amargamente, também outras vezes diria: A geração que chega
diz-me: espera aí, que a gente vai arrumar isto num rufo. Mal durmo
uma soneca, à espera dessa aurora, já eles se alapardaram! E eu à
espera. Eu à procura. Condão de burro!
Nem
mesmo a si se poupando, ele ironizava e justificava-se: — Jurei que seria tudo menos crítico que é, afinal, o que sou...
Mário
Sacramento queria ardentemente era a revolução, sendo, aliás, o que
deixa dito, pela última
vez, em sua carta-testamento: Nasci e vivi num mundo de inferno. Há
dezenas de anos que sofro, na minha carne e no meu espírito, o fascismo. Recebi dele perseguições de toda a
ordem — físicas, económicas,
profissionais, intelectuais, morais. Mas, que não as tivesse sofrido,
o meu dever era combatê-lo. O fascismo é o fim da pré-história do
homem. E procede, por isso, como um gangster encurralado. Fiz o que
pude para me libertar, e aos outros, dele. É essa a única herança
que deixo aos meus Filhos e aos meus Companheiros. Acabem a obra!
Derrubem o fascismo, se nós não o pudermos fazer antes! Instaurem
uma sociedade humana! Promovam o socialismo, mas promovam-no
cientificamente, sem dogmatismos sectários, sem radicalismos
pequeno-burgueses! Aprendam com os erros do passado. E lembrem-se de
que nós, os mortos, iremos, nisso, ao vosso lado!
Já
anteriormente a esta expressão dita de última vontade, sendo, como
foi, sempre a principal no decorrer da sua existência, Mário
Sacramento lembraria que «a vida humana é limitada, ai de nós. E as
boas causas são apenas legados que se transmitem entre homens que vão
e homens que vêm», como quem diz: os jovens, toda a juventude
apostada em criar um país novo, para além do que esta frase possa
conter de remotas cantigas ao futuro.
E,
quanto à recomendação que lhe faziam, um dia, de ser preciso
aprender a envelhecer, Mário Sacramento haveria de gritar o seu
protesto: Sou lá capaz disso!
Envelhecer, envelheço, que remédio. Mas aprender?! Sempre pensei que
a minha vida só começaria quando caísse o fascismo. O que estou é
em trabalho de parto, ainda! Que aprenda a envelhecer um raio que os
parta a todos!
Como
o relata em seu «Diário», pela mesma altura, um seu amigo que já não
via há muito, haveria de chegar ao pé de si e dizer-lhe: — «Supunha
que isso das Letras já lhe
tivesse passado!». E dizia-lho por o saber em permanente actividade
política contra o regime, mas é aí que Mário Sacramento igualmente
se revolta e desabafa: Que nos estrangulassem, vá, mas que as
pessoas não dêem por isso (pelas Letras), chiça! E leva então
mais longe o seu martírio: Vem-me à lembrança um dito do Emílio
Costa, tempos antes de morrer: gastei-me em actos, tenho pena
do que não cheguei a escrever...
Ora,
literária e politicamente que mais poderia ter escrito Mário
Sacramento para se afirmar como um dos escritores mais activos e,
seguramente, lidos do seu tempo, apesar da Censura e das muitas
perseguições de que foi alvo?
Ele
o esclarece, também, em dado passo: Englobando numa figura simbólica
a trajectória da minha geração,
o que eu gostaria de fazer, acima de tudo, era um romance cíclico com
o título, por exemplo, de O Homem Que Perdeu a Revolução. Já tenho
escrito capítulos dele, mas sou conduzido, a cada passo, para outros
interesses ou linhas de desvio. E
explica: Seria a história de alguém que se bate pela transformação da realidade, mas é colocado por ela
ora em situações falsas ora em posições nas quais outros o «ultrapassam»,
repetindo erros que ele de sobejo conhece. E concluiria. O que tem graça
é que ainda não me convenci de que jamais o escreverei. O que talvez
queira dizer, afinal, que o estou escrevendo... com o sangue de cada
dia.
É
um facto. Mário Sacramento deixou escrito, em sua própria vida, esse
livro. Mas, se perdeu ou não
a revolução, será caso para lhe pegarmos no exemplo e nas palavras
e tentar saber em que medida todos estaremos em dívida, feito o ponto
da situação...
E,
porque de Literatura se fala ainda neste texto, talvez fosse de
respigar e ter em conta, para irmos em frente e para a meta um outro
fragmento do «Diário», muito remoto, mas certamente oportuno nos
dias que passam: Houve, de
facto, um Mário Sacramento que esteve para ser escritor. Conservo
dele uma grande saudade e alguns farrapos de escrita. A certa altura
desesperou e pior de tudo é que (ainda hoje) não se arrependeu
disso! Em veraneios sucessivos por Caxias e outros lugares turísticos,
durezas de profissão sem «relâche» e tarefas cívicas de homem
comum, cuida ele ter defendido a literatura também. E pretende,
mesmo, que os que puderam dedicar-se-lhe foram protegidos, em seus
redutos, pelo fogo de barragem de homens como ele. Daria daqui
exemplos se isso não fosse inútil...
Também hoje... Só porque
há literatura, estará salva a Pátria?
Pinto
da Costa, 18 de Março de 1989
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