Artigo publicado no suplemento de "O Diário" de 1 de Junho de 1990, pp. 12-14.

A propósito de um génio picado das bexigas

Sabe-se o quanto Camilo, em seu tempo, foi alvo de grossa bordoada porque, no entender dos opositores, o corpo lhe puxava para isso e estava mesmo a pedi-las, se não em todos os momentos, quando lhes dava jeito provocar alguém para mais uma polémica, não rigorosamente à moda de Fafe.

Ocasiões nunca lhe faltaram e, por isso, a história está cheia, também, desses seus predicados, pouca gente lhe contestando, hoje, o ressabiado pendor para umas tiradas bem assentes no costado fosse de quem fosse, desde que isso lhe aguçasse a pena, e o bico retirasse do escudo contrário nem sempre pingando somente tinta...

Muitas das suas estocadas foram, realmente, para matar e, de alguma forma, os inimigos o feriram também, e algumas vezes de morte, só não tendo baqueado — ao que dizem os trasmontanos — por, em pequenino, e outras vezes na vida, haver profundamente respirado os ares do Marão...

Imagem referente ao Centenário do Nascimento de Camilo.

E esta referência serve exactamente para o que aqui nos traz, em apressado apontamento sobre uma outra faceta de Camilo, já que o escritor, também em seu tempo, foi sobretudo alvo de grandes manifestações de afecto e admiração.

Lá chegaremos mas, antes disso, talvez seja oportuno recordar o testemunho poético que adiante se transcreve e partir de um autor transmontano, praticamente esquecido, de seu nome Afonso de Castro, com dois ou três livros publicados, o primeiro dos quais, pelo menos, justamente saudado por poetas desde Teixeira de Pascoaes e Mário Beirão a Júlio Dantas, além de prosadores como Ferreira de Castro.

Pois esse «poeta de sangue», como lhe chama Júlio Brandão, retrata assim, em bons relampejos maranenses do seu tempo, um razoável pedaço da história genuinamente camiliana, precisamente sob o título CAMILO, nas páginas do seu segundo livro, chamado Antifonário Pagão, em cujo limiar aponta esta frase de Camões: «Homem feito de carne e de sentidos», não necessariamente por acaso:

 

A Dor e o Riso, o Amor e a Morte, o Bem e o Mal,
O desespero humano, em gritos de aflição.
O sarcasmo a explodir no verbo genial,
Marés vivas de choro a arder no coração.
A ironia e a tristeza ingénitas da raça...
Mórbido fatalismo, em rasgos de aventura,
Num tropel de paixões, a soluçar, perpassa
No teu génio onde a luz é sombra que murmura.

Sombra de astrais clarões do Universo inteiro,
Que trouxe à nossa terra o poder criador
De quem soube pintar o drama verdadeiro
Dos que morrem de amor sem conhecer o amor.

Quando os teus livros leio, é quando me comovo,
Tendo de suspender, por vezes, a leitura.
Oiço neles vibrar a grande voz dum povo
Que viveu e sofreu calvários de amargura.

«Amor de perdição» foi, desde a mocidade, 
Tua existência audaz, de revés em revés.
E «amor de salvação» para a imortalidade
Da nossa língua enquanto houver um português.

(...) Vejo-te em Vila Real, na loja Zé da sola,
Aos vinte anos de idade, a discursar às turbas.
E mais tarde, no Porto, a zangarrear na viola,
Um magnetizador com que as mulheres perturbas.

Na rude Samardã, o teu primeiro afecto
De amoroso infeliz, com o transe final
Da macabra visão do alvíssimo esqueleto
Da Maria do Adro, ossada escultural.

E em S. Miguel de Seide, àquela hora triste
Do redentor suicídio, a que a cegueira leva
Teu cérebro de luz, como nenhum existe,
A mergulhar na eterna e enregelada treva.

És o símbolo vivo e romântico desta
Terra santa de exílio, onde a saudade mora.
A ausência é a nossa cruz, sombria nuvem mesta
Que faz da nossa vida um dia sem aurora.

 

Vila Real como terra santa de exílio, é o que diz o poeta, mas não só para Camilo, o que pode, em nossos dias, levantar sérios problemas aos poetas de hoje como, por exemplo, António Cabral e outros demais «homens que cantam a Nordeste»...

E note-se a forma como, em 1925, por alturas das comemorações do primeiro centenário do nascimento de Camilo, Albino Forjaz de Sampaio reclamava, em discurso inflamado, o regresso do famoso novelista (seus restos mortais) à terra amada da sua infância; não como lugar de exílio, mas de eterna morada:

«Agora move-se novamente a questão de se Camilo deve continuar no jazigo do cemitério da Lapa (Porto), se deve vir para os Jerónimos. Quanto a mim, a mais grossa partida que podem fazer a um morto é pregarem com ele nos Jerónimos e sem o meu protesto nunca Camilo virá. Os Jerónimos são a festarola de um dia, não são a devoção, nem o culto. Os Jerónimos são a indiferença gélida, bafienta, húmida, risível. Os Jerónimos são o abandono e nós não podemos abandonar Camilo. Se o quiserem deslocar algum dia do jazigo onde ele repousa, muito por sua vontade, não o levem para os Jerónimos, levem-no para Vila Real de Trás-os-Montes. Aí, sim. Aí tudo se conjuga para a sua morada eterna. O local entre serranias, com o Corgo aos pés rugindo espumas, o caminho até lá, das mais belas coisas que existem em Portugal. E foi ali que ele passou a sua mocidade. Agora, para os Jerónimos, não. Bem basta o que basta. Mas Camilo continuará no jazigo do seu amigo (Freitas Fortuna) e quando o queiramos visitar sempre o cemitério da Lapa é mais cheio de ternura do que o abandono do Pantheon improvisado».

Neste naco de prosa sentimental e duramente cáustica, a pedir meças à truculência do próprio Camilo em seus hábitos de polemista, Albino Forjaz de Sampaio troca os passos aos acérrimos defensores de «sempre a mesma morada final» para todos os que, nesta Pátria Lusitana, «se vão das leis da morte libertando» e prova (como pretendemos neste mau dactilografado) a grandeza de Camilo, para os seus indefectíveis admiradores.

Mas o melhor está para vir, já que nesse campo de idolatria por alguém, o poeta brasileiro Gonçalves Crespo (muito português pela ascendência e por seus hábitos), deve ter passado a perna a muito boa outra gente, visto que assim relata, ou melhor, faz o retrato, não só do primeiro instante em que, de longe, avista o grande «Athleta do Romance» (aí por 1864 ou 65), como da própria figura física de Camilo, desde o rosto picado das bexigas às mãos, para o retratista, espantosamente femininas desse «artista prodigioso».

E assim, tal e qual a grafia da época para melhor os leitores se aperceberem de como um poeta pode perder as rimas, mas nunca as estribeiras se humildemente, por admiração sincera, deixa expandir o estro a respeito de um grande vulto das letras, em cujas águas afinal navega a poder dos seus frágeis remos ainda nessa altura...

Eis, pois, o retrato do autor do Amor de Perdição, segundo Gonçalves Crespo e, no dizer também de Albino Forjaz de Sampaio, um «poeta de altíssimo valor prematuramente roubado às letras»:

 

«Camillo Castello Branco

A  primeira vez que o vimos foi na casa Moré do Porto.

Há que tempos isso foi!

Parece, porém, que o vemos ainda esbeltamente embuçado em um capote espanhol, farto e elegantíssimo, calçando botas forcadas que lhe subiam acima do joelho, e trazendo na cabeça inquieta e nervosa um chapéu alto preto, sem lustro de abas direitas e largas.

Sem este último acessório poderíamos tomal-o por um d’aquelles cavaleiros do século XVI que os felizes admiram nas telas do grande Ticiano.

A sua voz era abemolada, e com ligeiras inflexões ironicas.

Quando fitava o seu interlocutor vimol-o por mais de uma vez cerrar o olho esquerdo, e toda a força de observação de que é capaz este Athleta do Romance como que se concentrava intensamente no olho direito, indagador, cheio de lava coruscante.

— Barnave, dizia Mirabeau, tens os olhos frios e fixos; em ti não habita a divindade.

Ah! se o grande orador podesse ver os olhos peninsulares de Camilo!

Ha mezes vimol-o de novo em Braga e eis como elle se nos apresenta deante dos olhos:

O rosto é vivo, moreno, gracioso, ainda que flagelado pela varíola; a bocca é benevolente, e risonha, e todavia quando elle falla, afigura-se-nos que n’aquelles labios finos e levemente desbotados se nos entremostra uma vaga expressão do doloroso cançasso e de indizível melancolia.

Os cabellos da côr de azeviche, de onde, como de uma cidadella inexpugnável, a neve dos annos refoge, vão-se empobrecendo, não chegando contudo a desnudarem aquella cabeça febril e poderosa de poeta e  de creador.

O bigode negro e transparente, à semelhança do de Soares de Passos, descae-lhe negligentemente arqueado sobre o labio inferior.

As mãos d’este prodigioso artista são delgadas, mimosas e aristocraticas.

E, foi com estas mãos femininas, que elle, a par de tantas creações adoravéis, fundiu em uma hora de immorredoura inspiração a figura obesa, vermelha, quadrangular e grotesca do Chatim da America, deante da qual as gerações por vir soltarão uma risada colossal e enorme como a dos Deuses à vista do satyro hediondo, hirsuto e deslumbrado no meio dos explendores do Olympo.»

 

Não nos parece que estas linhas estejam muito divulgadas, sendo também essa a razão porque as julgamos úteis à curiosidade dos camilianistas mais jovens, neste 1990 em que se completam cem anos sobre a morte de Camilo Castelo Branco, e isso sem que precisássemos de repetir novas palavras do comovido e irónico Forjaz de Sampaio, mas lá vão, para acabar.

«Cada vez que se olha a obra de Camilo é que se vê como ele é grande. O que se escreveu, o que se escreve, o que se escreverá, Santo Deus. Todos os dias afloram à superfície páginas esquecidas, coisas que ninguém conhecia e creio que por muito tempo ainda essa tarefa continuará»... mesmo conhecendo-se — acrescentamos nós — o exaustivo Dicionário de Camilo Castelo Branco, de Alexandre Cabral, felizmente desde há um ano e tal nas livrarias.

Mas reincidiremos na lembrança doutros textos porventura mal conhecidos...

 

De perdição em perdição

Juntemos mais umas quantas prosas alheias para que os leitores mais jovens se apercebam do impacto que certos contos e ditos de Camilo Castelo Branco (ou de alguns seus admiradores por ele) tiveram na sociedade do seu tempo e também depois que, por cegueira, meteu uma bala na cabeça.

Comemora-se este ano o primeiro centenário da sua morte e a passagem de uma conferência de Albino Forjaz de Sampaio, a que agora voltamos, tem a particularidade de haver sido dita por ocasião do primeiro centenário, sim, mas do nascimento do notável homem de letras, que ainda hoje faz correr muita tinta e está como que em pelourinho para ser amado e desamado.

Um homem como Camilo, sempre na liça batendo-se por muitas e variadas damas, desde a literatura ao jornalismo, à política e outras formas de ganha-pão com que sempre se debateu, deixou, por isso, monumentos de cultura, mas também alguns rabos de palha, a que seus inimigos ou meros críticos em todos os tempos se agarraram com unhas e dentes, porque a palha é mole e dá acamação...

Camilo Castelo Branco, segundo a caricatura de Rafael Bordalo Pinheiro, no «Álbum das Glórias».

Isso é dos livros e da vida corrente, e muito especialmente do próprio autor de A Corja que, assim, por exemplo, se atirava (salvo seja) às canelas de seus parceiros mais chegados:

«Este Chagas que eu nunca vi, é um lebréu do Castilho, espécie de Soromenho do Herculano e Gomes de Amorim do Garrett. Aqui, cada prócere tem o seu cão.»...

Ele não poupava, nomeadamente, o próprio Gil Vicente que apodava de «criador (apenas) da gordurosa chalaça lusitana em diálogo», assim se limitando às «chocarrices plebeias» somente da arraia-miúda, desconsideração, aliás, semelhante à de um Fialho de Almeida, quando disse que «quatro milheiros de vinha bem postos, valem todas as estâncias de Os Lusíadas»...

Albino Forjaz de Sampaio nunca se conformou foi com o facto de alguns se terem atirado à obra de Camilo como gato a bofe, isto é, menosprezando-lhe o pano e o feitio ou, melhor dizendo, a carne e o espírito, o sangue vivo dos seus enredos, feitos escrita da melhor, em língua portuguesa.

Por certo, batendo as palavras como punhos, o conferencista enchia, assim, de murros, a sala da Biblioteca Nacional de Lisboa: «Eu tenho ante os meus olhos ainda uma página que li ontem e que vem na Revista de Estudos Livres, de Teófilo Braga e Teixeira Bastos. E um artigo sobre Camilo e foi escrito em 1884 (seis anos antes da morte do prosador). Nesse artigo, todo ele motivado porque Camilo fora proclamado o primeiro romancista português num plebiscito literário, se diz que a sua literatura é pura fancaria. E mais: que ao fraco conhecimento da vida, o estilo quase sempre afectado, a nenhuma elevação de espírito nem o menor intuito filosófico; nada disto, enfim, que constitui a grandeza do género literário a que nos referimos, prova evidentemente que o romancista é duma impresciência deveras lamentável nos talentos que aspiram à glória e à imortalidade. E que o Amor de Perdição não passava de uma história inverosímil e doentia, que parece inspirada dos extraordinários dramalhões antigos, etc., etc.»...

 

Forjaz de Sampaio não se contém que não diga das muitas contrafacções porque o Amor de Perdição passou e isso provando tratar-se de uma obra querida de toda a gente, para além de um roubo, um «escarninho martírio» da bolsa pobre do escritor em glória, também, e sobretudo, no Brasil.

E o conferencista, certamente vermelho de indignação, prosseguia: «O Amor de Perdição foi impresso no tipo e nos papéis mais ignóbeis, em velhíssimos prelos lazarentos. O português era quem quase sempre roubava o seu patrício. Nem sempre o faria na intenção de o defraudar, não. É que perdido naquela imensidade ele era ainda coração de português e a tragédia de amor de Mariana, era um pouco a sua tragédia de amor.

Dizer que o Amor de Perdição é um mau livro, lá porque é romântico, é tão tolo como dizer que o Paulo e Virgínia, ou a Manon Lescaut deviam ser naturalistas. Não. O Amor de Perdição é e será sempre um grande livro. Camilo mostrou nele o seu enorme coração. Na Corja há mais a forma literária, vocabulário preciso, boleio de período, mas a Corja é o livro de um escritor.

No Amor da Perdição há mais sentimento, mais ternura. É a obra-prima de um grande homem. Quantas lágrimas ele não tem feito chorar, quanta mulher sobre as suas páginas se não tem compadecido pelas suas personagens!»

Era o conde de Maistre, autor de Viagem à Roda do Meu Quarto, quem dizia, há muitos anos, uma coisa que também hoje parece estar na moda: «Há uma regra para julgar dos livros, como a há para julgar dos homens; basta saber por quem eles são amados e por quem odiados». Mas a esse respeito e, pelo menos, ao Portugal do seu tempo, o próprio autor do Amor de Perdição usava outra receita, muito mais envinagrada do que a do engenhoso escritor francês e assim, sem papas na língua, mas talvez esporões nos calcanhares, para sangrar bem a barriga do bicho: «Neste país só faz estrondo o escândalo ou a chalaça. Um livro bem pensado e bem composto apenas impressiona os dez literatos inteligentes que por aí vivem lurados na sua obscuridade. O restante é a malta dos noticiaristas, gentio que os porteiros de Paris levariam na vassoura para as carroças. O senso público — a gente que compra — como fica dito, quer que Offenbach colabore no livro»...

Zombando do escândalo e da chalaça, também com eles o destemido polemista não prescindia, em ocasião nenhuma, dos seus estrondos e, por isso o Amor de Perdição talvez lhe tenha saído num período de assumida quarentena para as lágrimas, principalmente do público com senso bastante para lhe esgotar a obra...

Mas isto são suposições e ainda bem que sem paralelo com as que, primitivamente, o levaram a escrever a célebre Maria, Não me Mates que Sou Tua Mãe; e, além disso, para os leitores de hoje, os amores são outros.

Escrevendo, muito recentemente, sobre o seu «meu bendito País, ronceiro e manhoso como não há outro», Agustina Bessa-Luís não deixaria de frisar o seguinte: «O Amor de Perdição é água passada e mesmo aquele sempre me deu que pensar. Não era amor, era raiva, e Simão tinha mais vocação para a guerra que para o casamento».

Aqui chegados, pois, é lógico entender-se da nossa própria mancebia ou amigância com as prosas que vimos de transcrever a favor ou contra o Amor de Perdição, de cujo suposto choradinho o próprio autor viria, mais tarde, a falar em termos já então pouco afectivos para essa obra considerada máxima ainda em 1879 (ano dessas faias) e muitas décadas após, não positivamente apenas pelos leitores de lágrima fácil.

Não se ignora que o país corre facilmente atrás de uma bem enchouriçada e romântica história de amor (que nunca foram as de Camilo, nos livros e na vida real) e bastará que, de permeio, entre uma princesa, para que todos se esqueçam do republicanismo, e pior que isso, dos seus próprios dramas. Só que, de repente, as badaladas, até no sino da aldeia, são do século vinte, o que se não sabe ao certo o que é, mas não de certeza o toque de finados que perpassa por um livro antigo, embora de amor... e, no conceito de alguns ensaístas, «o mais bem estruturado de Camilo» e o que melhor define «os valores íntimos do temperamento português» (António José Saraiva e Jacinto do Prado Coelho).

Mas vamos ao prefácio do autor, expressamente escrito para a quinta edição dessa sua obra e que, por esquecido, até pode assombrar os leitores mais antigos, enquanto admite que o Amor de Perdição possa ser, agora, de leitura para o cómico e, de novo, embrulhado em lágrimas nos tempos que vão correndo — o seu habitual costume de dar uma no cravo e outra na ferradura, quase ao estilo, ou à imagem e semelhança, de João da Cruz, o ferrador...

 

«Se comparo o Amor de Perdição, cuja 5ª. edição me parece um êxito fenomenal e extralusitano, com o Crime do Padre Amaro e O Primo Basílio, confesso, voluntariamente resignado, que para o esplendor destes dois livros foi preciso que a Arte se ataviasse dos primores lavrados no transcurso de dezasseis anos. O Amor de Perdição, visto à luz eléctrica do criticismo moderno, é um romance romântico, declamatório, com bastantes aleijões líricos, e umas ideias celeradas que chegam a tocar no desaforo do sentimentalismo. Eu não cessarei de dizer mal desta novela, que tem a boçal inocência de não devassar alcovas, a fim de que as senhoras a possam ler nas salas, em presença das suas filhas ou de suas mães, e não precisem de esconder-se com o livro no seu quarto de banho. Dizem, porém, que o Amor de Perdição fez chorar. Mau foi isso. Mas, agora, como indemnização, faz rir: tornou-se cómico pela seriedade antiga, pelo raposinho que lhe deixou o ranço das velhas histórias do Trancoso e do padre Teodoro de Almeida.

E por isso mesmo se reimprime. O bom senso público relê isto, compara com aquilo, e vinga-se barrufando com frouxas de riso realista as páginas que há dez anos aljofarava com lágrimas românticas.

Faz-me tristeza pensar que eu floresci nesta futilidade da novela, quando as dores da alma podiam ser descritas sem grande desaire da grannitica e da decência. Usava-se então a retórica de preferência ao calão. O escritor antepunha a frequência de Quintiliano à do Colete-encarnado. A gente imaginava que os alcouces não abriam gabinetes de leituras e artes correlativas. Ai! quem me dera ter antes desabrochado hoje com os punhos arregaçados para espremer o pus de muitas escrófulas à face do leitor! Naquele tempo, enflorava-se a pústula; agora, a carne com vareja pendura-se na escápula e vende-se bem, porque muita gente não desgostosa de se narcisar num espelho fiel.

Pois que estou a dobrar o cabo tormentório da morte, já não verei onde vai desaguar este enxurro que rola no bojo a ideia Novíssima. Como a honestidade é a alma da vida civil, e o decoro é o nó dos liames que atam a sociedade, lembra-me se vergonha e sociedade ruirão ao mesmo tempo por efeito de uma grande evolução-rigolboche. A lógica diz isto; mas a Providência, que usa mais da metafísica que da lógica, provavelmente fará outra coisa. Se, por virtude da metempsicose, eu reaparecer na sociedade do século XX, talvez me regozije de ver outra vez as lágrimas em moda nos braços da retórica, e esta 5.ª edição do Amor de Perdição quase esgotada».

 

Assim mesmo, porque só ingenuamente se poderia pensar que o extraordinário narrador e polemista fosse capaz de abjurar um livro seu, assim o dizendo com referência a outro escrito e da seguinte maneira: «... e já que jurei comigo defender bem ou mal o que da minha pena saísse, aí está reconhecido esse filho, dou-o por meu, e nada se me dá que ele seja feio, e desajeitado».

Feio seria ele de feições, mas não desajeitado ou podão na escrita, sendo aliás de lembrar quanto à feiura da cara que a própria Ana Plácido dizia para a criada: — Olha, se o não conheces, entrega a carta ao mais feio que lá estiver... E a empregada não se enganou!...

Mas, ainda sobre o prefácio e para acabar esta abordagem a tanto Amor de Perdição, é bom não esquecer que em tal prefácio Camilo apoucava o livro só para, mais veladamente, gozar os seus rivais do romance naturalista, tendo-lhe os mesmos pago essa afronta em estranha outra moeda, visto que não fizeram sequer figura de corpo presente no seu enterro.

 

Um tiro como ponto final

Foi depois de ter sido observado por um médico oftalmologista de Aveiro que lhe receitou as termas do Gerês (por não ter remédio. para a sua cegueira) que Camilo Castelo Branco ou, porventura, o autodenominado «cadáver representante de um nome que teve alguma reputação gloriosa neste país, durante quarenta anos de trabalho», sacou do revólver e pôs termo à vida.

Literariamente, à moda de um outro suicida, chamado Mário de Sá-Carneiro, muito mais tarde, prevendo o mesmo fim, a coisa poderia ter-se passado da seguinte maneira:

«Sim, sim! Sou eu o primeiro homem que não morre... (indo ao encontro da morte). Colombo descobriu a América, Vasco da Gama a Índia... eu descobrirei a Morte... Um pensamento me atravessou agora o espírito: serei um louco? Talvez, é possível... Sou um louco, um louco... Que me importa?... Quero saber, quero saber!...

......................................................................................................................................

Os ponteiros avançam... Um minuto... trinta segundos... quinze segundos... um tiro»...

E, ainda literariamente, viria Fernando Pessoa para ajudar à missa: «Estou morto: E contudo, por caminhos não conhecidos dos homens, tem a minha história que ser contada aos homens para que aprendam. Por caminhos que não são da terra, cada dor que sofri tem que ser escrita, para que eviteis o que eu não evitei e vos afasteis daquilo de que eu me não afastei. Estudai a minha história com atenção, pois há nela mais do que sabeis».

Tão tétrica como literariamente, poderiam também estar por perto Os Canibais de Álvaro do Carvalhal, e logo o morto: «Medistes — diz —, medistes toda a grosseira fragilidade, toda a. acanhada contextura da comédia humana em que, por zombarias do acaso, tivemos o nosso papel. Aprendestes de mais para rir na adversidade. Coragem, pois! A vida é um sangrento escárnio, que se paga com outro escárnio. Deixai as lágrimas às mulheres, para que se não diga que tudo lhes tiramos.

Eu estou sereno. Que importa que...? Margarida (outro nome qualquer)... o visconde... Sabeis!... / Comemo-lo — respondem os outros com voz de dentro. / — Comemo-lo — repete o venerando ancião»...

Nada, porém, se passou assim, ainda que, neste chorrilho de considerações literárias, pudéssemos recorrer ainda a um naco poético de Ernest Hemingway, outro mais inesperado suicida:

 

«Dorme ele agora
Com essa cabra velha, a Morte,
Que ainda ontem três vezes se negou.
Repitam comigo
Dorme ele agora
Com essa cabra velha, a Morte
Que ainda ontem três vezes se negou...
Esperem. Aguardem que eles terminem.
Continuemos,
Negaste-a?
Sim.
Três vezes?
Sim.
Repitam comigo.
Aceita esta cabra velha, a Morte,
Por legítima esposa
Diante da lei?
Sim.
Sim.
Sim»...

 

Alexandre Cabral já tudo relatou acerca das circunstâncias em que ocorreu a morte de Camilo e, sobre poesia, o próprio autor do soneto Amigos, cento e dez e talvez mais, deixou claramente dito que ela «não tem presente — ou é saudade ou esperança», logo passado e também futuro, o que, na prática, pode ser que não, conforme os casos...

O apagamento físico de Camilo foi o que se sabe, mas o seu funeral não correu melhor. E, de novo, recorremos, nesta última série de transcrições, ao testemunho falado de Albino Forjaz de Sampaio que, por ocasião da primeira comemoração do nascimento do grande escritor, produziu um agreste e furibundo discurso contra os seus detractores presentes e passados, e do qual extraímos mais a seguinte passagem:

«No seu tempo, o Porto, que hoje o celebra, odiava-o. O seu enterro foi menos concorrido do que o do mais modesto juiz de paz. E houve impas de satisfação. Morrera o homem temeroso, o gigante capaz de esfarelar os homúnculos que o povoavam»...

Os jornais pouco falaram dele; e para dizer que «o cortejo atravessou a cidade, no meio da indiferença geral e quase despercebido», para mais que sem a presença de um só notável, seu confrade das letras, a quem a morte trágica de um homem infeliz pudesse causar o esquecimento de algumas afrontas.

Numa carta a Tomás Ribeiro, citada por Alexandre Cabral, Camilo só desejaria tornar a ter a vista que lhe faltava «para poder trabalhar até morrer», o que, aliás, terá feito, já em mortificação completa, até que se deu um ponto final de pólvora e chumbo em toda a escrita, não podendo, nunca mais, saber que o seu corpo chegaria «ao Porto num furgon de mercadorias, sem tochas, nem pano negro nem cortejo na gare», conforme descrição feita, mais tarde, por Fialho de Almeida, em carta ao poeta António Feijó.

Também, de todo em todo, não sabe que ao seu enterramento «não compareceu um único escritor ou artista» e que isso também agora acontece em vida de muitos escritores contemporâneos, para quem servirá, na emergência, uma certa cantiga popular, que reza assim:

 

Quem a mim ouvir cantar,
Cuidará que estou alegre;
Tenho o coração mais negro
Que a tinta com que se escreve.

 

A respeito de tinta (da tinta de que os escritores se entornam verbo), talvez venha a propósito conhecer a de Vitorio Nemésio, precisamente sobre a maneira como o torturado de Seide mal a poupou em tão vasta obra: «Camilo teve o condão de imolar o seu infeliz destino à tinta de escrever. E, quer contando-se às claras — como nas Memórias do Cárcere, no Bom Jesus do Monte e em tantos outros livros —, quer insinuando-se no perfil de galãs e heroínas a sua própria silhueta e a sombra das mulheres que amou, criou uma autobiografia intermitente, como que irresistivelmente brotado dos lances da novela entre mãos, que é um dos ingredientes da sua aura incomparável, mais viva talvez que a de Camões».

E de rios de tinta, para e sobre Camilo, falava ainda Forjaz de Sampaio, por assim dizer pretendendo antecipar-se a um dito de Torga sobre os seus próprios gastos nessa matéria: «O meu espaço de liberdade é o mapa de Portugal subentendido na folha de papel onde escrevo».

Esta a frase do autor dos Contos da Montanha, porque as do autor das Palavras Cínicas e mesmo da obra Porque Me Orgulho de Ser Português, gastavam assim suas tintas a favor desse tão incomparável génio das letras e da desventura:

 

«Camilo Castelo Branco, considerado bibliograficamente, não é uma espécie livresca, uma etiqueta bibliográfica, é uma bibliografia inteira. Ele é no mapa desta Biblioteca (Nacional de Lisboa) repositório de tudo quanto há impresso em Portugal, um rio de tinta como o Amazonas, um monte de livros como o Himalaia. Em qualquer ponto da carta que nos coloquemos não podemos deixar de dar por ele. Pelo rugir da sua torrente como o Amazonas, pela sombra da sua grandeza como o Himalaia. E, todavia, a projecção da sua obra é ainda insignificante. À medida que Camilo entra no tempo a sua sombra cresce. Parece que a Morte está dando quinau nos vivos, como aqueles entendedores de arte que comprando por macuta e meia preciosidades de que, para comprar, desdenhavam, depois as mostram em plena riqueza, numa beleza estonteante. A Morte está agora a dizer-nos que tem lá, que é todo seu o homem ante o qual a gente se prosterna. E, que em nossas mãos, tão mal compreendido foi. Porque Camilo, o grande, só por grandes pode ser compreendido».

Na sua incomensurável admiração pelo «número um» das letras e tretas deste país, Forjaz de Sampaio, também ele, não faz contas à tinta e, depois, à saliva que consome em tão frenético panegírico escrito e oral, que julgamos perdido na memória, dos biógrafos de Camilo e, daí, que o tragamos, parcialmente, à baila, também para que os mais moços tomem o pulso a esta antiga forma de se falar acerca de certos vultos do nosso pequeno-grande mundo literário, cada vez menos de trazer por casa...

A conferência a que nos reportamos foi pronunciada em 15 de Março de 1925, eram decorridos cerca de 35 anos sobre o dia em que o grande profissional das letras, por vontade própria, se finou (1 de Junho de 1890) e o conferencista passava a pente fino todos os sucessos e recessos da vida e obra de alguém que, popularmente, é dito ter sido «génio e figura até à sepultura».

Desta maneira, ainda: «Camilo é grande em tudo. Grande no amor, grande no sofrimento. Grande pelo génio, grande pela obra que deixou. Esta, que V. Ex. irão ver noutra sala (exposição bibliográfica camiliana), é que é o seu verdadeiro monumento. O alicerce está nos Pundunores Desagravados, no Juízo Final, no Agostinho de Ceuta, na Maria Não Me Mates, o remate encontra-se no voluminho Nas Trevas. Toda esta fábrica um braço levou da mente ao tinteiro e do tinteiro ao papel. De 1845 a 1890, quarenta e cinco anos a embrulhar o coração em mortalhas de linguados! E não havia ele de cegar! E não havia de meter uma bala na cabeça!»...

Quando isto passamos à máquina, tendo a mesa pejada de papéis e alguns retratos de Camilo, chega alguém que nos lembra vir O Seringador deste ano carregadinho de anedotas «à moda de Bocage, desse senhor das letras e antigo caceteiro de Vila Real». E quem diz o Seringador diz também o Borda d’Água, «com pensamentos bonitos de Camilo sobre as mulheres, que ele tratou com quatro pedras na mão»...

Será a lenda e vamos, depois disso, ao encontro da senhora Margarida de Lobrigos, lá do Douro, cuja fresca memória para as redondilhas do seu tempo é um portento. Mas não se lembra de nada de Camilo, que, aliás, era lá mais de cima, do Marão, onde, por certo, nunca correu o folheto do Ó filha, não me esfaqueies que sou tua mãe. Tem, porém, sobre amores de perdição, outras cantigas como, por exemplo, estas duas, mais ou menos ligadas entre si:

 

Batatas e castanholas,
Bacalhau, peixe do rio,
Raparigas de Além-Douro,
Rapazes de Mesão Frio.

Em Além-Douro anda a guerra,
Eu bem oiço cá os tiros,
Já os sinto combater:
Os teus ais com meus suspiros!

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