O PRAZER DE LER - II

 

Deveria ter uns oito anos quando, durante as minhas incursões à livraria do Sr. Sousa, em Espinho, travei conhecimento com cinco jovens aventureiros. Uma escritora inglesa, Enid Blyton, lembrara-se dos mais novos. As aventuras dos cinco começaram a ser publicadas em português por esta altura. A partir de então, tornei-me a visita mais assídua do estabelecimento.

Naquela época, as aulas na escola primária ocupavam dois períodos: das 9 às 12 e das 13 às 15 horas. Até então, acabadas as aulas às três da tarde, fazia rapidamente os deveres e juntava-me aos outros, para brincarmos até à hora do jantar. A brincadeira só era interrompida pelas quatro ou cinco horas da tarde. Era a hora sagrada do lanche. Engolia de um trago a caneca de café com leite e metia no bolso o pão com manteiga, que depois dividia com os colegas.

A descoberta acidental dos cinco alterou-me o esquema da brincadeira. Troquei temporariamente os colegas da escola e os vizinhos, com quem costumava brincar.

Mal largávamos os bancos da escola, sentava-me nos degraus de granito, à porta de casa, e fazia os deveres. Comparava os resultados com os colegas, para evitar erros. Arrumava a tralha na sacola. Metia-a em casa. E descia a rua 19, até à livraria.

Cumprimentava o Sr. Sousa. Dava um beijo à esposa, que me acariciava o cabelo e me chamava velhote, porque descobrira uns cabelos totalmente brancos no meio dos louros. Pedia autorização para ler mais um livro. Escolhia-o na prateleira e ia enfiar-me lá dentro. Lá dentro era o armazém. Era a zona entre o estabelecimento comercial e o quintal.

Sentava-me na minha secretária. Na minha secretária?! No armazém não havia secretárias, nem de pau nem de carne e osso. Tudo o que lá havia era um montão de coisas arrumadas: caixotes, estantes com livros, material diverso de papelaria, e um escadote para chegar às estantes mais altas. Mas instalava-me o mais comodamente possível na minha secretária, o escadote de madeira. Um degrau era a minha cadeira sem braços; outro era o tampo da secretária, onde colocava o livro, nas raras ocasiões em que o Sr. Sousa me chamava, para lhe ir fazer um recado.

Geralmente, sentava-me na secretária e só me levantava quando os seis acabavam de desvendar o mistério. Os seis?! Sim, os seis! Aos cinco tinha-se juntado mais um. Na minha imaginação, eu estava lá no meio do grupo, tão interessado como os outros em desvendar os mistérios.

Esta foi uma fase de curta duração. Durou enquanto não esgotei a leitura de toda a colecção, que ainda ia no começo.

Voltei à companhia dos meus colegas da escola e dos meus dois vizinhos, companheiros de todas as horas livres, o Cinto e o Locas. Mas, curiosamente, passei a sentir a falta do cumprimento  do Sr.  Sousa e, sobretudo, das carícias daquela senhora, que me desalinhava o penteado e me chamava velhote. Por isso, de vez em quando, deixava os companheiros de brincadeira. Descia a correr a rua 19. Entrava esbaforido na livraria. Cumprimentava os donos. Conversava um pouco com eles. E voltava a sair, correndo apressadamente no sentido ascendente.   >>>

 

 

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08-04-2019