UM MIÚDO E A MAGIA DO CINEMA - IV

 
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As ideias são fascinantes, são tentadoras. O desejo de ir cada vez mais longe dá-nos asas e leva-nos, por vezes, a realizar o que parece impossível. Mas, para que os filmes de amadores passem de mudos a sonoros, é necessário possuir os meios técnicos. Possuindo-se um projector e um gravador de fita magnética, será possível fazer cinema sonoro? Sim, se houver meios que permitam acoplar o projector ao gravador, obtendo-se uma perfeita sincronização das cenas com as respectivas locuções.

 

No mercado surgem dispositivos que permitem acoplar as duas máquinas. Custam dinheiro. Mas juntando-se esforços, os obstáculos económicos podem ser ultrapassados. E foi isto o que sucedeu. Em breve, os ingredientes necessários para a confecção de um filme sonoro estão reunidos. É só ocupar alguns serões fazendo a montagem e a locução das cenas.

Durante vários dias, acompanhei a preparação da primeira sessão de cinema em local público. Curiosamente, entrei facilmente nos aspectos técnicos e fílmicos e, a certa altura, era um crítico feroz. Um fedelho de oito anos não deixava passar nenhum deslize! E quando as coisas não batiam certo, o miúdo dava logo a solução, perante a surpresa dos mais velhos, que começam a verificar que as bocas do fedelho batem sempre certas. E, a partir de então, não fazem nada sem o ter na equipa.

Vi-me, subitamente, perfeita e agradavelmente enquadrado numa equipa de adultos. Em todos os momentos, quer para trabalhar, quer para dar umas escapadelas, aos fins de semana à noite, ao restaurante e bar da Fábrica de Cerveja, no Porto, as uns duzentos metros do Palácio de Cristal, o miúdo acompanhava os graúdos. E parece que o catraio tinha faro! Naquelas noites de convívio, aos sábados, no «Nosso Café», o miúdo pressentia quando os adultos estavam para sair para o Porto. Largava os companheiros de brincadeira e juntava-se aos mais velhos, para não perder o passeio e os agradáveis momentos de convívio na Fábrica da Cerveja.

Pois é verdade! Pouco tempo depois, a longa metragem estava montada e a locução feita. 

Uma das cenas mostrava uma partida amigável de ténis em Espinho, no campo em frente à escola e à nossa casa. Eram pessoas conhecidas. Entre elas, um engenheiro ligado às obras de defesa de Espinho, que tinha o ténis como principal desporto. Na cena seguinte, umas brasas tomavam banhos de sol na praia. Uma delas tinha umas pernas magníficas, dignas de fazer inveja às Marlenes Dietriches do cinema. Na locução, creio que feita pelo meu pai, fazia-se a apresentação do jogo e, logo a seguir, no momento da entrada da cena seguinte, chamava-se a atenção para os encantos femininos: «Depois de uma renhida disputa de ténis, admirem agora as pernas desta magnífica brasa a veranear em Espinho...»

Na noite combinada, obtida a autorização do dono do café, os nossos amadores de cinema montam as máquinas no meio da ampla sala. A enorme parede branca do fundo serve perfeitamente de tela de projecção. O café está a abarrotar de clientes. Não há uma única mesa livre. As pessoas amontoam-se à volta, em pé, cheias de curiosidade.

Às dez horas em ponto, apagam-se as luzes. Inicia-se a projecção colectiva. Durante mais de meia hora, sucedem-se as cenas sem qualquer imprevisto. As exclamações e os comentários abafam por vezes a locução, quando surgem caras conhecidas e vários locais de Espinho. Nem a legenda «FIM» falta no fim da projecção.

Os aplausos são muitos e o desejo de repetir a sessão é manifestado por todos. Perante tamanha insistência, a solução é rebobinar tudo: a película e a fita magnética das duas máquinas que se encontram acopladas por uma correia a um dispositivo de sincronização.

Cerca de um quarto de hora depois, voltam a apagar-se as luzes. Reinicia-se a segunda projecção, não havendo sequer tempo de efectuar um teste prévio, para verificar se as duas bobinas, de imagem e de som, estão nos sítios correctos.

A certa altura da projecção, lá volta a surgir a cena de ténis. E volta-se a ver o conhecido engenheiro, de calções curtos e pernas peludas a fazer frente ao adversário. A sincronização não bate rigorosamente nas mesmas cenas. Nas anteriores, o desfasamento passa quase despercebido. A grande maioria das pessoas nem dá pelo sucedido. Mas nesta, o erro é flagrante. Quando surge o engenheiro, no preciso momento em que é mostrado num grande plano, com aquelas pernas cheias de pelos, ouve-se nos altifalantes a voz do meu pai: «Depois de uma renhida disputa de ténis, admirem agora as pernas desta magnífica brasa a veranear em Espinho...»

Gargalhada geral! O riso é tal que as cenas seguintes nem são devidamente apreciadas. E o caricato episódio tornou-se o tema das conversas durante  as horas e os dias seguintes.

Nas semanas posteriores, na impossibilidade de se efectuarem filmagens, as sessões públicas, de acesso livre e gratuito naquele café da Avenida 8, decorrem com filmes de animação alugados no Porto, em casas da especialidade. As sessões sucedem-se sempre com grande sucesso, sempre com grandes enchentes do café, até ao dia em que, subitamente,  tudo finda abruptamente. E porquê abruptamente se as sessões eram  gratuitas e sem qualquer interesse comercial? Muito simplesmente porque as noites em que havia sessões coincidiam com o dia em que havia cinema no S. Pedro.  Este ficava completamente às moscas, dando à empresa um enorme prejuízo. E como os donos eram amigos dos amadores de cinema e, além disso, estes apenas queriam o prazer da magia do cinema sem prejuízo para ninguém, tudo findou.

Findaram as sessões e findou o cinema de 8 milímetros, o super 8, que depois lhe sucedeu, e também o de 16 milímetros, no dia em que surgiram formas mais económicas de registar as imagens em movimento.

         

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