HOJE,
todos nós que estamos aqui e quantos por esse Portugal fora nos
acompanham, podemos dizer que somos pessoas felizes. Nós não deixamos
morrer os nossos mortos, pois eles permanecem intactos no alongamento do
nosso futuro.
Vivemos numa época onde há quem continue vivo e já esteja defunto. Há
quem respire e já nada tenha para dar ou para tirar aos outros homens.
Há quem encha dias e, no entanto, sofra já a pior das mortes ou a morte
verdadeira: o esquecimento.
Nós, pelo contrário, estamos aqui para falar de um amigo, para visitá-lo
e para
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confirmarmos velhos laços não desatados nunca. As razões de aqui
estarmos variam por cada um de nós. Cada um de nós o recorda à sua
maneira, cada um de nós lhe deve qualquer coisa. Quer dizer: em cada um
encontrará Mário Sacramento justificação para continuar vivo.
Mário Sacramento: homem de tipo novo que ultrapassa as limitações de um
tempo, de uma conjuntura, para nos oferecer a visão do homem de amanhã.
O homem de amanhã: eis aqui uma expressão em que não quero deter-me. Com
ela se corre o perigo de impor uma visão facciosa, unilateral da
personalidade de Mário Sacramento. Muito mais grato seria antes lembrar
o que nele havia de pertencente ao património geral, independentemente
da visão dos acontecimentos ou do matiz das atitudes. Ou seja: o
antiprovincianismo de Mário Sacramento.
Entenda-se aqui por provincianismo não a mera oposição ao citadino. A
cidade também possui o seu provincianismo que pode assumir as formas de
cosmopolitismo «snob», de desconhecimento de tudo quanto não se passe
nas «baixas», de supervalorização dos seus méritos e da ambição de
penetrar em
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outros ambientes mais sofisticados, mais... citadinos.
Se não quero principalmente falar aqui de provincianismo como simples
característica dos meios afastados dos centros de cultura ou de
informação, das terras segregadas pelo cinto asfixiante do quotidiano
sem história, também não quero esquecer que o primeiro sinal do
antiprovincianismo de Mário Sacramento foi a sua luta contra a
província, contra a tacanhez, contra o deserto dos dias e das noites.
Deve notar-se que esta luta «contra a província» se processava nos
territórios da província ela própria. Mário Sacramento não pretendeu
jamais escapar-se da província e ainda nisso deu provas do seu
antiprovincianismo.
Há duas formas de provinciano nas nossas relações diárias com D.
Sebastião: aquele que se queda imóvel no seu palmo de chão à espera que
ele venha, e o outro que abandona o palmo de chão para ir ao encontro
dele. No primeiro caso, o palmo de terra acaba por alargar-se até se
transformar em cinco palmos e nele caber um caixão; no segundo caso, a
aventura poderá soçobrar no indefinido da distância, na imprecisão dos
gestos,
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na incorrecta visão dos contornos roídos pela névoa. Porque D. Sebastião
morreu, porque D. Sebastião já não há: só há nevoeiro que o trespassou e
o engoliu e com o qual o próprio D. Sebastião se identifica.
Mário Sacramento não ficou à espera nem partiu ao encontro. Não fugiu
cego pelas perspectivas, pelas possibilidades dos outros meios. Não se
iludiu na suposição de que em Lisboa é que sim. Por outro lado, não se
resignou ao vácuo, à estagnação do meio. Não transportou consigo a
província para a cidade; transportou consigo o mundo para a terra
pequena. Porque só existe um processo de suportar o meio onde se vive: é
procurar transformá-lo, é fazer dele um terreno de combate. Se não
enfrentamos o mundo, o mundo nos destruirá. Isto é verdade na escola, na
fábrica, na empresa, no jornal, na igreja, na nossa própria casa. Numa
sociedade onde se normaliza a exploração do homem pelo homem, a
defraudação do humano pelo desumano, onde se elege a capacidade de
matar, (numa luta que é de matar ou de morrer) como uma qualidade
merecedora de elogio e prémio, numa tal sociedade não existem portos de
abrigo, não
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há para onde fugir, para onde quer que vamos o perigo mortal nos
acompanha.
Mário Sacramento lutou contra a província dentro da província. Estudante
ainda, recordo-o em Ílhavo entregue a uma actividade exemplar. Em vez de
se queixar de que em Ílhavo não havia nada, em vez de sonhar com lugares
onde houvesse tudo, Mário Sacramento lutava, ele próprio, pela
existência do indispensável. Organizou grupos juvenis – e assim nascia o
convívio; criou uma biblioteca volante – e assim nascia o amor pela
cultura; elaborava sessões de estudo – e assim nasciam horizontes;
dirigiu cursos para adultos, com inclusão de português, francês, inglês
e esperanto, que ele próprio ministrava – e assim nascia o apetite de
novas aventuras; publicava boletins culturais copiografados – e assim
nascia a cultura em acção.
A lição frutuosa da sua juventude fica a iluminar todo um processo que,
hoje mais do que nunca, não se deve perder de vista: é preciso combater
o provincianismo lá onde exista, na cidade ou na província, mas lá. E
estando lá, não acreditar que só lá é que é, não fechar
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as portas a tudo o mais, em resumo: não ficar entre as quatro paredes
como quem vive enclausurado.
Durante muitos anos, durante algumas décadas, enalteceu-se, até à classe
da glorificação, a ascese pelo isolamento. Grande era quem vivia
encerrado na cela mona cal da repartição, quem nunca saía da casca de
noz, quem desprezava os contactos, os pareceres, as críticas, a
discussão, o fermento. O mito do homem encerrado no seu gabinete em
holocausto à comunidade dá-nos a visão de um provincianismo de que tanto
viemos a sofrer.
Mário Sacramento manteve-se fiel ao antiprovincianismo da sua juventude,
sem se confinar brutamente às paredes da província. Como profissional,
frequentou centros científicos fora do país; como cidadão, buscou a
informação lá onde a houvesse; como escritor, projectou uma acção lá
onde se tornasse indispensável.
Início da romagem, no
Cemitério Central, à campa onde se encontra o corpo de Mário Sacramento.
Nestes últimos 20 anos é praticamente impossível não
encontrar o nome de Mário Sacramento quando está em equação qualquer
grande problema, fosse ele literário, político, social. Para além da sua
actividade como escritor, Mário Sacramento exercia uma contínua
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acção pedagógica através de colóquios, debates,
sessões públicas, a que não sabia, a que não podia recusar-se. A
inteireza de carácter, a firmeza de princípios, a persistência numa
sábia acção convivente, a tolerância, a presença lá onde a sua mão podia
dar uma ajuda (como costumava dizer), eis alguns traços que definem o
antiprovincianismo do seu carácter.
Isto é tanto mais admirável quanto é certo que tudo o
empurrava para o metro quadrado do provincianismo que se define pela
importantização.
Segundo a cartilha do provinciano, é preciso ser
importante. É preciso ter aparência. É preciso ser-se «extra» e «super»
como nos detergentes. O provinciano joga tudo na sua importância de
pessoa. O pequeno provinciano moverá pequenas influências, pequenas
simonias, pequenos truques para ser conhecido na rua, no bairro, na
vila; o grande provinciano gastará milhares de contos, utilizará
escritores e agências de informações internacionais, servir-se-á de
imprensa própria ou alheia, de rádio, televisão, etc., para engrandecer
pequenas qualidades e inventar outras.
Mário Sacramento não montou nunca a
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sua máquina publicitária. A glória em grande escala, ou a pequena glória
dia a dia perdida, dia a dia conquistada, nunca o interessaram.
Interessava-lhe o diálogo, o fio directo, a presença viva no tempo que
corre. Nenhuma vocação para múmia. O povo chamava-lhe «o doutor Mário» –
e esta expressão define o seu horror pela vaidade do intelectual balofo,
miúdo, importante – provinciano.
O seu antiprovincianismo manifestava-se pela recusa das
fórmulas vazias que negam à juventude capacidade ordenadora. O
provinciano tem a alergia das inovações. As suas expressões favoritas
são de elogio ao bom senso, ao equilíbrio, à visão de poltrona e
chinelos que a idade favorece. É frequente ouvi-los dizer: «Trabalho
nisto há uma data de anos e vem agora este novato dizer-me como é». Ou
então: «caladinho, rapaz, a política é para os mais velhos». Ou ainda:
«os novos sofrem do desvairamento próprio da idade, mas quero que saibam
que estão muito enganados se pensam que a nossa paciência não tem
limites...». Etc.
Mário Sacramento, pelo contrário, continuamente se
aproximava, se apoiava e se fortalecia com a juventude. Nada que à
juventude
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dissesse respeito lhe era estranho. Ele soube sempre ter os olhos
voltados para onde o Sol nasce.
O egoísmo é outra característica do provincianismo que
Mário Sacramento não cultivou nunca. Refiro-me, particularmente, ao
egoísmo que muitas vezes se disfarça de patriotismo.
Para alguns provincianos, o amor da Pátria é exclusivo
deles. Esses são os senhores feudais dos grandes territórios das
palavras que se escrevem com maiúscula.
Amar a Pátria é isto e aquilo – e o que não for isto e
aquilo não é amar a Pátria. Esses consideram que o amor da Pátria é um
objecto de que se apossaram e a que mais ninguém tem o direito de
aceder. O provinciano diz: «A pátria sou eu; só eu tenho direitos,
privilégios, razões».
Mário Sacramento aboliu totalmente tamanho pecado
provinciano. Na sua constante actividade de cidadão nunca delimitou o
direito ou o usufruto do patriotismo. Sempre quis que todos os
portugueses livremente se reunissem e se associassem; que todos
exprimissem livremente o seu pensamento; que ninguém fosse preso ou
sofresse por motivos
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políticos; que todos tivessem direito à habitação decente, à instrução,
à cultura, a justas condições de trabalho; que o desenvolvimento
económico redundasse em benefício para todos. Para Mário Sacramento
antiprovinciano, todos os portugueses tinham acesso a Portugal.
É evidente que não se é antiprovinciano impunemente, e em
particular naquelas épocas onde impera toda a classe de provincianismo:
o económico, o social, o político, o religioso. Mário Sacramento pagou
um forte tributo pelo seu antiprovincianismo, mas é este
antiprovincianismo que lhe garante a permanência, entre nós, para além
da morte. Por diversas razões o amamos ou o recordamos. Alguns de nós
que estamos aqui se terão encontrado com ele em campos bem diferentes,
antagónicos, até. A lição que todos lhe devemos, todos, incluindo os
seus opositores, é a necessidade de desprovincianizar a vida e o
convívio entre todos os portugueses. Quem se mantiver alheio a esta
urgente necessidade nacional, ou quem a contrariar, assume pesada
responsabilidade. A História não é provinciana. Será, para todos os
provincianos, implacável.
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O nosso país não pode caminhar nas calhas do
provincianismo. Tem, cada vez mais, de ser da Europa e do mundo.
Eis por que o antiprovincianismo de Mário Sacramento é a
herança mais preciosa que nos deixou. Por isso o recordamos. Por isso o
amamos.
Mário Castrim
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