Prefácio
É sob a vasta tela da memória que o
autor de Dili, a cidade que não era se transforma num arquiteto de
imagens e nos apresenta cronologicamente o nascer da cidade que teimava
em sê-lo.
Díli é uma topofilia. É o espaço feliz
e louvado, a pátria geométrica de um Timor que se deixa regressar à sua
ancestralidade, através de repercussões e ressonâncias de personalidades
que, em diversos momentos da sua vida, contribuíram para a ereção e
desenvolvimento da cidade de Díli, na expectativa de que essas mesmas
reverberações possam convidar os leitores, concretamente, os timorenses,
a um aprofundamento da sua própria existência.
É preciso amar o espaço para o
descrever tão minuciosamente. É esta a sensação que D. Carlos Filipe
Ximenes Belo sugere ao construir a narrativa história da cidade berço
timorense, como se nesse espaço houvesse moléculas de mundo responsáveis
por subtrair grandeza à miniatura natural.
Contudo, e ab initio, que a
prolixidade das impressões dadas pelas figuras que se atraíam a Díli,
por esta ou por aquela razão, testemunharam uma isotopia de negação, de
miserabilismo, atestadas, inclusive, pelo subtítulo da obra, parecendo o
autor querer inaugurar o tópico medieval, "o mundo ao contrário",
espreitando o ridículo, o diminutivo, o tom depreciativo de uma extensão
que nada tinha. Mas esse fluxo de contrários é o resultado da opinião do
outro, do estrangeiro, do forasteiro, do visitador, da aparência das
coisas que, ao jeito de Parménides, está em constante mudança, pois a
realidade, o verdadeiro ser, é imutável. Daí ser necessário ultrapassar
a lógica para viver o que há de grande no pequeno.
Todas as coisas pequenas exigem vagar.
A causalidade do pequeno agita todos os sentidos, tal como as "aldeias
perdidas no horizonte se tornam então pátrias do olhar" É nesta
dialética do pequeno e do grande sob os signos da miniatura e da
imensidão que D. Ximenes Belo se move e dá a conhecer a cronologia
daquela imensidão local. Da insalubridade e do miserabilismo
civilizacional iniciais, referências que, na primavera de 1861,
ilustravam aquele território, pôde nascer a modernidade, devido aos
contributos inegáveis de todas aquelas figuras destacadas pelo autor que
pertencem à galeria de personalidades históricas responsáveis pela
arquitetura histórica de Timor. Parecia até que "a palavra miséria foi
inventada para definir tudo quanto de português tem o nome de Timor",
dizia um autor, nos anos 70 do século XIX, a propósito de Díli que era
"inferior absolutamente a qualquer aldeia das que conhecemos em
Portugal".
Díli era, nos anos 40 do século XX,
"uma cidade do silêncio, a cidade das ruínas, a cidade da morte".
Todavia, o autor da impressão esquecia-se que o silêncio é um prelúdio
de abertura à revelação, abre uma passagem, envolve os grandes
acontecimentos, marca o progresso, tal como rezam as tradições, à
semelhança da morte que é revelação e introdução.
É este o tom regenerador que Díli, a cidade que não era por altura das
comemorações da sua elevação a cidade, quer trazer à contemporaneidade
timorense. D. Ximenes Belo dá mais um contributo para que se descubra
nos gestos daquela gente edificadora o valor humano dos espaços de
posse. O tom laudatório com que o faz é um exemplo, ao jeito da mensagem
pessoana "É a Hora!", para que os cidadãos timorenses homenageiem a sua
história, a sua independência e vejam em cada gesto edificador uma
possibilidade de construção de mundos novos que contenham os atributos
da grandeza.
É oportuno invocar os versos de
Baudelaire, "as nações ... vastos animais, cuja organização é adequada
ao seu meio. ( ... ) As nações, vastos seres coletivos", que atestam o
flutuar da alma por essa pátria geométrica, de uma forma necessária,
justa e proporcional.
Dili, a cidade que não era é mais um
contributo para a memória coletiva de um jovem país independente, para a
criação de referências culturais relativas ao património arquitetónico
da cidade de Díli, para o reforço da identidade e entendimento da
idiossincrasia timorenses e estabelecimento de normas protetoras da
diversificação cultural nacional, salvaguardando sempre o património
intangível edificado.
Quanto a mim, só sei meditar as coisas
da minha terra.
Marco
Dias da Silva |