Figuras da Região

Padre José Tavares Camelo

Travassô, berço de um orador sacro do séc. XIX

Américo Barata Figueira

Saiu o terceiro número do Boletim da ADERAV. Por imperativo da Direcção e exigência cultural, foi decidido que, dentro do possível, em todos os números, figuraria um trabalho onde se fizesse a análise de uma personalidade que, durante a vida, se tivesse imposto no panorama cultural do distrito de Aveiro.

Três números. Outros tantos trabalhos.

Coube a vez agora ao concelho de Águeda.

Do que conhecemos torna-se-nos difícil a escolha: um poeta? um prosador? um político? um historiador?

Seria bom que falássemos de todos, como seria de inteira justiça. Talvez que, se a nossa “criança” continuar a crescer sã e escorreita, chegue a vez a todos eles. Hoje, porém, vamos pelo desconhecido, a fim de fazermos chegar à luz do dia não só o homem que se distinguiu no campo da oratória, durante mais de três décadas, como também recordar alguns factos que o elevaram acima da vulgaridade do dia a dia.

O P.e JOSÉ TAVARES CAMELO, figura de quem pouca gente (ou ninguém!) se lembrará, foi um activo orador do distrito de Aveiro durante o período após a Regeneração, se bem que demasiado tradicionalista no campo das ideias. Talvez que a crise por que passou a diocese de Aveiro, que conduziu à sua extinção em 30 de Setembro de 1881 pela bula Gravissimum Christi Ecclesiarum regenti et gubernandi munus, do papa Leão XIII, tivesse tido reflexos na formação cultural do seu pensamento. Nascido em pleno Setembrismo, a sua formação cultural toda ela é feita num período bastante agitado, tanto no campo político como no campo social. Parece, no entanto, que se manteve sempre ligado ao tradicionalismo monárquico. “Em política — diz ele no seu sermão A Reacção —, todo o homem está no direito de pensar como quiser; e ainda até hoje se não decidiu de uma maneira peremptória que governo convém melhor a uma nação. Montesquieu, com todos os seus estudos, com todas as suas indagações, não pôde ainda fazer do seu livro um código, onde se bebam doutrinas certas e infalíveis.

Não se carregue portanto de ultrajes um homem, só porque segue uma política diversa; nem se lhe chame reaccionário, ligando a esta palavra um mau sentido.

O que mais me sensibiliza, porém, o que mais me revolta, é ouvir chamar reaccionário a todos aqueles que professam certas opiniões religiosas mais severas, e que não aprovam certas medidas do governo actual a respeito da Igreja. Chama-se reaccionário, hoje, a todo o padre que não presta ao governo uma obediência cega, e não adora as decisões do Estado”.

O mesmo sentimento vamos encontrar no Sermão das Exéquias de D. Miguel, o maior de todos quantos fez, onde ele faz uma exaltação da monarquia, embora seja um pouco prudente na abordagem do infausto acontecimento: “prometendo-vos circunscrever-me dentro dos limites que me prescrevem os deveres da religião, cumpre declarar-vos que falando de um homem que representou um papel importante na história contemporânea revele afeição ou desafeição partidária ofenda melindres ou susceptibilidades políticas, no meu discurso não apresentarei ideia alguma, que ofenda opiniões ou convicções adversas a uma causa decidida, e que o meu fim tudo é chamar as orações em favor de quem só hoje precisa de perdão e caridade”.

Outros pormenores de pensamento do Padre José Tavares Camelo poderíamos apontar tal como o seu conceito de família, sociedade, Estado, etc., mas não o vamos fazer neste momento.

A sua obra, cento e poucos sermões, merece um estudo bem mais profundo e até uma publicação integral. Estamos a pensar seriamente nisso e já demos os primeiros passos nesse sentido. Por ora, tão somente queremos alertar, de um modo geral, todas as pessoas e, de um modo particular, os responsáveis autárquicos pelo pelouro da cultura para a necessidade de salvaguardar estes e, porventura, outros tantos exemplos iguais ao que temos entre as mãos.

O Padre José Tavares Camelo iniciou o seu munus oratório muito cedo. O primeiro trabalho que temos datado é o Sermão de Nossa Senhora das Preces, pregado na Póvoa do Valado, povoação da freguesia do Requeixo, no dia 2 de Julho de 1860. Tinha então nessa altura apenas 23 anos, dado que ele nasceu no dia 14 de Julho de 1837, como reza o seu registo de nascimento: “José, filho de Manuel Tavares Camelo, e de Ana de Jesus do Lugar de Travassô. Neto paterno de Manuel Tavares Camelo e de Maria de Oliveira desta freguesia, e materno de Manuel Laranjeiro e de Rosa de Jesus do lugar de Frias, freguesia de Albergaria; nasceu no dia 14 de Julho de 1837. Foram padrinhos o Padre Domingos Tavares Camelo, e Francisca... Declaro que foi baptizado em casa pelo Padre João da Silva Morais e no dia 23 do mesmo mês veio à Igreja receber os Santos óleos, e mais cerimónias da Santa Igreja. Para constar fiz este assento que assinei.

Testemunhas: de Manuel Laranjeira uma cruz, e de José Francisco outra cruz. O Pároco Domingos Francisco Marques” (Livro dos Baptismos da Freguesia de Travassô, de 1807 a 1850, fl. 13) (1).

Teve uma actividade intensa, sendo a sua presença frequentemente solicitada para várias festividades do distrito de Aveiro. Num estádio mais avançado do estudo da sua obra, talvez seja possível reconstituir parte do seu itinerário oratório. Para já, sabemos que ele pregou em Póvoa do Valado, Alquerubim (Sermão de St.º António, em 11 de Junho de 1862), Oiã (sermão pregado a 3 de Março de 1862), Pinheiro (Sermão de S. Miguel, redigido no dia 19 de Setembro para ser pregado no dia 5 de Outubro seguinte), Horta (Sermão da Assunção de Nossa Senhora, pregado em 15 de Agosto de 1860) Travassô (Soledade, em 7 de Abril de 1868, S. Brás, em 1 de Fevereiro de 1862, Sermão do Natal, em Dezembro de 1863, Sermão de S. Pedro, em 25 de Junho de 1862...) e Aveiro (Sermão de S. Cecília, pregado em Aveiro no dia 20 de Novembro de 1864 e Sermão de Santa Joana Princesa).

Morreu no Lugar de Baixo (Travassô) aos oito dias do mês de Fevereiro de 1895, pelas sete horas da manhã, apenas com cinquenta e oito anos. Faleceu repentinamente e por isso não recebeu os sacramentos dos enfermos, sendo sepultado no cemitério público sem fazer qualquer testamento.

Hoje poucas pessoas se recordarão dele. Com quem falámos apenas duas o conheceram, a senhora Rosa do Adro e outra, ainda mais idosa, que vive próximo da casa onde morou o Padre José Tavares Camelo. Da sua lembrança só restam duas placas a assinalar uma rua com o seu nome — R. do P.e Camelo — 1837 - 1895. Pouca coisa, para quem tanto trabalhou!

Dos cento e tantos sermões que escreveu, aqui deixo, em primeira mão, o que ele proferiu em Aveiro na festa de Santa Joana Princesa:

 

“SANCTA JOANNA PRINCEZA

Qui reliquerit domum, vel frates, aut patrem aut matrem propter nome meum, centuplum accipiet. S. Math. cap. 19-29.

Senhores. Neste dia tão jubiloso, tão festival para os filhos de Aveiro, neste dia de tradicional e doce recordação para esta ilustre cidade, neste dia em que uma aurora de sorrisos parece vir dourar todos os semblantes, neste dia finalmente, em que os corações parecem pulsar em novas e mais gratas sensações, a festividade de Santa Joana Princesa é um facto tão popular, tão incarnado na esperança e ansiedade pública, é mesmo um facto tão essencial na vida religiosa e moral do povo aveirense que seria o mais triste, o mais lúgubre dos dias se as portas destes se não abrissem, se aqueles altares se não iluminassem, se as luzes daquele trono se não acendessem, e se nós, meus senhores, não pudéssemos aqui entrar hoje para honrar e festejar o nome daquela que é o mais glorioso padrão desta casa, daquela que aqui viveu e morreu nestes claustros, daquela que também fez ouvir deste coro suas vozes suavíssimas, daquela que também ali ajoelhou e ali orou ao Deus das misericórdias, daquela enfim que, entregando ao seu Deus o espírito iluminado dos esplendores da santidade, aqui mesmo deixou ainda seu corpo que, não falando já, ainda serve de defesa e salvaguarda eterna deste asilo sagrado, deste asilo da piedade e da virtude.

Sem dúvida, senhores, vós que ainda como eu amais alguma coisa do passado, vós que ainda prezais as glórias não só da religião mas também da prática, que sabeis respeitar o ascendente do mérito e vos deixais arrebatar nas asas de um certo ideal, sentireis no dia da Santa Princesa de Portugal emoções novas, gratíssimas, porque neste dia vossos corações se põem em contacto com ela; falam para ela, e lhe exprimem a devoção e o respeito entranhado por ela, protestando-lhe que o seu nome não morrerá para vós enquanto fordes cristãos e fordes portugueses, porque religião e pátria são empenhadas em perpetuar-lhe o culto, em reverenciar-lhe a memória.

E é exactamente isto o que nós temos hoje consolação de ver e testemunhar. Vemos e testemunhamos que a festividade da Santa Joana Princesa é um facto essencialmente ligado ao brio e à honra da cidade de Aveiro, e que entre seus filhos alguns há em quem a piedade tornou-se activa e empreendedora, promoveu estes festejos cujo esplendor ainda responde ao esplendor antigo, ao esplendor de outras eras, a esse esplendor que deslumbrava pelo aparato com que as grandezas da terra vinham honrar aquela que também foi grande na terra e maior ainda foi ser no céu.

Ah! Ao menos alegremo-nos com isto. Se já não ouvimos esses hinos maviosos com que Joana era outrora glorificada por suas irmãs, levantem-se os hinos entoados por aqueles a quem o nome da santa portuguesa também é caro e simpático; e é justo que não deixemos em olvido o dia outrora tão solenizado, tão festejado.

Mas, Senhores, para o brilhantismo da presente solenidade tudo foi perfeitamente disposto, tudo fala eloquentemente a linguagem da vossa devoção e piedade ilustrada, tudo é digno da grandeza do acto, menos o orador que, infelizmente, vem deslustrar-lhe o brilho. Este púlpito que tem sido ilustrado pelas mais distintas inteligências oratórias, que foi sempre a propriedade do talento, fica hoje com os seus créditos perdidos, eu bem o sei. Mas nem eu posso mais nem me foi dado tempo para mais. Chamado aqui quase de improviso, tenho alguma razão para temer, mas ao mesmo tempo direito à vossa indulgência e desculpa por não satisfazer. Já nada se poderá dizer de novo, quando tantas novidades daqui vos têm maravilhado; contudo anima-me a consoladora esperança de que sereis benévolos para mim e perdoareis a ousadia.

Também, ilustre Virgem, vos devo pedir perdão a vós de vir falar de vossas virtudes, eu o menos digno para isso. Bem sei que só o anjo pode falar dignamente do anjo; mas vós auxiliar-me-eis para que as minhas palavras possam significar os louvores que mereceis.

Senhores, tenho pena de ficar tão pequeno no meio de tanta magnificência; mas suprireis por vossa bondade o que falta à minha inteligência.

Senhoras...

 

Discurso

Senhores. A grandeza é ordinariamente a causa da decadência. A opulência das nações assim como dos indivíduos é, a maior parte das vezes, o princípio da sua ruína, da sua morte precoce, porque, abusando-se dessa opulência, cavou-se o abismo e caiu-se nele. Portugal foi grande, foi glorioso enquanto foi pobre, enquanto, como operário, precisou de trabalhar para viver; enquanto nossos guerreiros precisavam sempre de dormir no campo de batalha para defender-se dos inimigos, e enquanto precisávamos de afugentar para longe esses inimigos. Bem se diz que as nações têm todas uma missão providencial a exercer na sua vida política. Nascem para executarem algum pensamento da Providência; executado esse pensamento, finda a sua missão, e, como os indivíduos, envelhecem e morrem. Portugal nasceu para ser o apóstolo ocidental do Evangelho; e exerceu este apostolado com ardor e heroísmo. Bateu o Corão desde o Mondego até ao Ourique, e desde Ourique até Arzila e arvorou a cruz em Ceuta e Tânger, em Goa e Diu e foi levar o nome de Cristo aonde não tinha podido penetrar a espada de nenhum conquistador.

E nesse tempo, Senhores, em que Portugal trabalhava na sua missão evangelizadora, em que ele obedecia à inspiração da fé para aumentar o império de Cristo, as bênçãos do céu não lhe faltavam. Prodígios de graça choviam sobre os palácios dos nossos reis e aí, ao abrigo da púrpura e do trono, nascia a virtude, florescia a santidade, que era de tanto mais salutar influência quanto de mais alto despedia seus luminosos raios. Brilhava então a realeza com todo esse fulgor, que a fazia amar e adorar pelos povos, e era feliz um povo que tinha tais reis, como eram felizes os reis que tinham tal povo. E assim, Senhores, que se costuma assinalar em seu berço uma nação destinada a altos fins, O Eterno desce a beijá-la com o sopro da sua graça, e inspirando-lhe as virtudes dos grandes heróis, faz os ínclitos guerreiros que se imortalizam na tomada de Lisboa, na escalada de Santarém e de Évora, na batalha do Salado, e faz os grandes santos que honram e nobilitam a majestade, esses santos que se chamam Teresa e Sancha, filhas de Sancho 1º. Fernando, filho de João 1º., Isabel, esposa de D. Dinis, e Santa Joana, filha de Afonso 5º.

Ah! Sem dúvida, Senhores, a mais alta glória de um reino cristão esplende na história de Portugal que nos mostra essas filhas de reis renunciando às opulências da corte e trocando os arminhos pelo hábito grosseiro e humilde, com que a esposa de Cristo se adorna e prepara na terra para as núpcias dos céus. Joana foi esse monumento de santidade que o século XV levantou para eterna recordação da sua grande fé que ficará através de todas as eras atestando ao mundo a grandeza e a glória de Portugal, que se enobreceu não só pelas suas conquistas da espada mas também por essas conquistas pacificas em que Joana é a mais ilustre heroína combatendo o combate da fé, donde saiu coroada com a mais esplêndida auréola.

Para que, senhores, para que dizer-vos o dia, o mês e o ano em que a gloriosa princesa nasceu, se tão bem o sabeis e se tantas vezes o tendes já ouvido deste lugar? O dia 6 de Fevereiro de 1452 foi um dia de regozijo nacional, porque nascia então uma herdeira do trono, na qual reviviam as esperanças da perpetuidade da dinastia Joanina. Todos os corações palpitaram então de uma nova alegria, e todos saudaram com entusiasmo aquela que vinha ser uma nova estrela a brilhar no horizonte da pátria.

Dizer-vos que a educação de Joana foi digna da sua alta jerarquia, dizer-vos que ela absorvia todos os afectos de seus pais, dizer-vos que ela desabrochava bela ao sopro desta educação e destes afectos como a flor mimosa ao sopro da brisa primaveril, dizer-vos isto é tudo inútil porque a corte de nossos reis era então o foco de grandes virtudes e que as nossas princesas e infantas eram sempre escolhidas de preferência pelos reis estrangeiros para suas esposas, para rainhas que iam reinar sobre seu coração por esse ascendente que é o característico e a glorificação da mulher, especialmente da mulher portuguesa. A filha de Afonso 5º viu a Europa inteira a render-lhe oculto e o cortejo devido ao mérito transcendente, e a fama de sua formosura era igual à fama dos altos dotes do seu espírito, admirando-se tantas virtudes, tantas perfeições cristãs em idade tão infantil. Era o astro que ao nascer brilhava já com todo o seu imenso fulgor, e que mais tarde, depois de ter iluminado tão abundantemente os horizontes sociais, havia de ter o seu ocaso neste convento, onde se lhe apagaram os últimos raios.

Joana foi pedida para fazer a felicidade de muitos e poderosos monarcas; mas ela tinha lido aquelas palavras do Evangelho que diziam: — aquele que deixar sua casa, seus irmãos, seu pai, sua mãe, aquele que renunciar ao mundo e me seguir, receberá cento por um e alcançará a vida eterna — qui reliquerit domi, vel fratres, aut patrem, centuplum accipiet et vitam aeternam possidebit. Estas palavras, ela as soletrava, as sabia, as meditava a cada instante, e ao lê-las sentia que o seu coração se lhe abrasava em um fogo misterioso e que uma inspiração sublime a chamava para longe de todo esse ruído que restruge em volta dos tronos das majestades da terra, Viu que, debaixo da púrpura da realeza se aninha muitas vezes, os maiores perigos para a virtude e para a inocência; viu que em volta do sólio gira quase sempre uma atmosfera de intrigas, de perfídias, porque é aí que vão cruzar-se e debater-se as ambições de todos os parasitas, de todos os sicofantes, de todos os que comem e não trabalham, de todos os que consomem e não produzem. Para fugir a todos esses perigos que podiam comprometer-lhe a sua inocência para escapar-se ao contacto dessa atmosfera viciada que podia crestar-lhe a flor de sua alma cândida, a virtuosa princesa olha um dia com desprezo para todo esse fausto que a rodela, e diz ao Pai que a estremecia: senhor, se como filha ouço a voz da natureza a dizer-me que esteja, que viva junto de vós, como cristã, como filha do Evangelho, sinto a inspiração que me chama a separar-me do mundo pelo véu do templo: não que o meu coração deixe de abrigar todo esse amor que me merece um pai; mas há uma força em mim que me arrebata de vossos braços, força irresistível, força que me vem do céu, e à qual, senhor, eu vos peço vos dignais ceder, porque resistir a ele seria resistir ao próprio Deus que me fala e me oferece as mais inefáveis delícias na solidão do claustro. Suspiro de há muito por estas delícias, vós, senhor, não querereis ser inimigo de vossa filha obstando-lhe à sua felicidade, Deixai-me, Senhor, deixai-me cingir a coroa da virgindade, coroa para mim mais gloriosa do que todas as coroas que podeis oferecer-me, e eu, feliz da mais alta felicidade, chamarei por vós as bênçãos do céu, e o Deus a quem me deixais consagrar-me, derramará sobre vás o orvalho da sua protecção fazendo glorioso o vosso reinado.

Afonso V treme ao ouvir esta linguagem de uma filha idolatrada. Um abismo parece separá-los neste momento; era a graça em luta com a natureza. O choque foi violento para um coração de pai; mas em fim triunfou a graça, e a santa princesa tem licença régia para entrar no convento dominico de Aveiro que ela agora vem ilustrar, vem abrilhantar, e donde faz jorrar todas essas torrentes de luz que lhe dourou todo o céu da existência. Ah! É o anjo que entra no seu império, e vem com os Outros anjos cantar as glórias do Altíssimo. As pompas, o luxo, a sumptuosidade, em que fora embalada no berço, tudo lhe ficou lá de fora, e aqui ela vem ostentar só o brilho da sua candura, da sua humildade e mansidão cristã, vem resplandecer com esse fulgor da virtude obscura, da virtude que só tem a Deus por testemunha e pede para ser ignorada pelos homens.

Ah! Se as paredes e os tectos destes claustros falassem, o que nos diriam do que foi a vida da ilustre e gloriosa princesa! Quantas vezes ela, de noite prostrada diante do seu crucifixo, mandava ao céu esses suspiros da oração, em que pedia pelo infeliz, pelo desgraçado! Quantas lágrimas ela daqui enxugava ao aflito e ao desvalido, mandando-lhe secretamente a esmola da caridade! Quantas vezes ela, descendo do alto pedestal do seu nascimento se fazia a mais humilde serva de suas companheiras e irmãs, confundindo-as com incríveis rasgos de afecto e dedicação?

Sem dúvida, Senhores, Joana não foi só uma santa, foi um prodígio de santidade; foi, se assim se pode dizer, o heroísmo da santidade. O céu pareceu formar nela o ramalhete composto de todas as flores, das flores de todas as virtudes. A doçura de anjo, a ternura do arcanjo, a meiga suavidade do querubim, o encanto do serafim; tudo nela estava incarnada, tudo nela tinha a mais brilhante personificação. Por isso ela ficou como padrão morredouro para o povo que ela tanto amou, sobre quem ela derramou tantas torrentes de benefícios Aveiro foi a terra que ela escolheu para lhe legar a honra e a riqueza do seu nome. Aqui ela deixou a fama de suas virtudes na vida e as suas relíquias depois da morte; e quando esta cidade não possuísse outros títulos de glória se não o de ser depositária do corpo de uma princesa e de uma santa, este seria bastante para ela se ufanar muito, por muito prezar tão grande honra.

Ah! Sem dúvida, Senhores, a memória dos grandes vultos, das grandes personagens que passaram no meio de um povo, faz parte da vida desse povo, reflecte eternamente sobre ele raios de glória, constitui a sua riqueza mais apreciável, e nós saudamos, nós cortejamos instintivamente esses nomes que representam e simbolizam nossa grandeza, nossa glória. Sendo assim, o nome da Santa Princesa não pode esquecer ao povo aveirense sem grande vergonha, sem grande desonra para ele. Comemorar solenemente o dia em que esta ilustre santa, tendo rejeitado as coroas da realeza da terra, foi receber a coroa da realeza do céu, comemorar religiosamente o dia da sua morte, o dia em que ela lançou sobre esta cidade o último olhar de saudade, é um dever sagrado para aqueles a quem ela fez herdeiros do legado precioso do seu nome, e pelos quais ela não cessa de pedir na eternidade.

Ah! Bem doloroso nos é sem dúvida recordar o que foi outrora este convento, venerando pelas virtudes que abrigou, e especialmente venerando por ter a morada de uma santa de tão alta nobreza, — doloroso nos é recordar o que ele foi e ver o que ele é hoje. Mas se o fogo sagrado das vestais cristãs se apagou já ou está quase a extinguir-se diante dos altares de Deus vivo, se os louvores da imortalidade já são entoados pelas vozes daquelas que dali faziam jorrar ondas de deliciosa harmonia, venha a piedade pública, a piedade de um povo essencialmente religioso e cristão, alimentar e perpetuar este fogo, entoar esses louvores de que é digna a santa portuguesa e a santa de Aveiro. É esta uma dívida sagrada que tendes a pagar-lhe; porque se ela foi o mais ilustre brasão desta terra, bem vos merece o culto afectuoso de filhos dedicados, de cristãos para quem o seu nome é a mais alta honra.

Eu me alegro pois ainda convosco neste dia, que é um dia de júbilo é de regozijo público, e hoje aqui prostrados diante do altar da santa, far-lhe-ei um protesto de que, de ano a ano, vireis aqui saudá-la, de que lhe conservareis o esplendor do culto com que ela foi sempre honrada por vossos pais, para que ela em recompensa da vossa piedade vos mande as suas bênçãos do céu”.

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(1) O presente documento encontra-se no Arquivo do Registo Civil de Águeda.


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