SESSÃO DE 23 DE MAIO
DE 1862
O cansaço obrigou-me
naturalmente a contrair-me, pedindo por isso vénia à
câmara para continuar no curso das minhas ideias, que
não pude expor todas ontem, atendendo ao abatimento
das minhas forças.
Ouvimos que o artigo 2.º
do projecto, sem necessidade e com estranheza, repete
o preceito de que ao corpo legislativo pertence
conceder autorização para serem admitidas no país
as ordens religiosas.
Era necessário para obviar as dúvidas que se
tinham apresentado sobre este assunto.
Disse-se: «Foram
admitidas ordens religiosas neste país por alvarás e
sem dependência de lei. Daqui é que vêm estas pendências;
esta é a origem de todas as inquietações. E para de
uma vez lhes pormos cobro, declaramos o direito que
aliás estava declarado; mas com boa intenção, com o
desejo de o estabelecer é que se inseriu este artigo
para acabar com todas essas razões de dúvidas, para
estabelecer o preceito legal, para pôr termo a todos
os embaraços e a todas as questões, e ficar por uma
vez assente a legislação de 1833, para que essa
legislação seja revalidada, confirmada e declarada
por um modo explícito e terminante.»
É o que faz o projecto
do governo. E portanto o projecto do governo está
sustentado pelos argumentos com que a comissão
sustentou o artigo 2.º.
Se havia necessidade de
clareza para escrever o artigo 2.º, essa mesma
necessidade de clareza havia-a para o governo
apresentar o projecto e, sobretudo, o artigo 1.º. E
essa necessidade devia levar os ilustres deputados a
adoptarem o artigo 1.º, porque ele era indispensável,
porque ele corta as dúvidas, aquieta as consciências,
desembaraça os governos, deixado-os marchar
desafogadamente, e livra a administração do país,
permita-se-me a frase, deste trambolho. (Riso.)
Mas no projecto da
comissão há um artigo estranho, incongruente e inesperado: é o artigo
que declara incompetentes para ensinar nos
estabelecimentos do Estado os membros das ordens
religiosas. Digo que é incongruente, estranho e
inesperado, depois dos encómios, depois das recordações
históricas, depois das inculcas que se fizeram da
proficiência dessas ordens. É estranho que os seus
membros se deixem soltos e livres no ensino
particular, e sejam exceptuados, sejam expulsos, do
ensino oficial; porque é uma excepção que ataca e
fere os princípios da liberdade, tão invocada pelos
membros da maioria da comissão.
O Sr. relator da comissão
achou-se em gravíssimo apuro. E é estranha e
inaudita a folestria lógica com que ele saiu
deste apuro, sustentando uma doutrina absurda na
jurisprudência civil e na jurisprudência canónica,
cometendo um atentado contra todas as doutrinas
liberais, só para não deixar sair da sua boca
ortodoxa, e contemporizadora com as opiniões suas
amigas e afectas, uma só frase que as ofendesse, um só
estigma de incapacidade para as corporações
religiosas.
O natural era dizer: «Pois
porque não hão de ensinar os membros das corporações
religiosas nos estabelecimentos do governo? Não podia
ser senão por um só motivo - o de suspeição.» (Apoiados.)
Mas a boca do ilustre deputado estava fechada para
pronunciar esta palavra! Ele não podia pronunciá-la,
e sobretudo estava inspirado por este santo princípio
da transacção, que era preciso manter. E por
isso disse: «Ensinem só nos estabelecimentos
particulares!»
Isto, Sr. relator da
comissão, é inaudito, é revoltante em doutrina, e
sobretudo em referência à sua pessoa, porque é um
contracenso. E eu vou reclamar em nome dessas pobres
ordens religiosas, em nome do decoro deste país, em
nome da liberdade e da boa razão.
O Sr. relator da comissão
declarou-nos que um português que pertencesse a uma
ordem religiosa, sujeita a prelado estrangeiro, ficava
por isso privado dos seus direitos de português, da
mesma maneira que um capitalista, que pertencesse a
uma companhia que tivesse a direcção estrangeira,
ficava privado dos seus direitos. Isto é incrível! O
ilustre deputado desnacionaliza os membros das ordens
religiosas para não poderem ensinar nos institutos do
governo: mas, se os achamos desnacionalizados para os
institutos do governo, também não os podemos
nacionalizar para ensinarem nos estabelecimentos
particulares. São bons, são excelentes; mas estão
desnacionalizados, não são portugueses. E o ilustre
deputado fez este raciocínio. Em França, os
estrangeiros são excluídos de ensinar, mas são os
estrangeiros, os que não são franceses; logo os
portugueses que pertencem a uma congregação
religiosa estrangeira, por esse facto ficam
estrangeiros, e portanto são excluídos de ensinar.
Era melhor dizer outra qualquer coisa. Que respeito à
consciência! Que respeito às opiniões religiosas!
Que respeito à liberdade! Desnacionalizar um homem
que, no foro da sua consciência, e segundo os princípios
do seu culto, julga que pode satisfazer os seus
deveres de cidadão, e contudo obedecer
espiritualmente ao chefe da sua congregação! E não
há invasão
na liberdade de consciência! Isto é flagrante,
flagrantíssimo, e é-o sobretudo pelo espírito de
vastidão que o Sr. relator lhe dá para acudir a si,
para se livrar de um embaraço. (Apoiados.) As
irmãs da caridade saltaram por cima do instituto; o
Sr. Casal Ribeiro saltou por cima da lógica, por cima
do bom senso, da tradição, da razão, de tudo. (Apoiados.)
Eu leio isto trinta
vezes, e não o posso crer.
Sou obrigado a recorrer
à nossa jurisprudência antiga contra esta barbaríssima
sentença. Vou a 1600 buscar, com orgulho e com
satisfação, argumentos aos homens doutos, aos
jurisconsultos, aos reinícolas desta terra, contra
essa absurda doutrina, que vem agora apresentar-se
aqui com aparências da última expressão da
liberdade. (Apoiados.)
Nada mais, nada menos,
é um caso semelhante, semelhantíssimo, e julgado no
desembargo do paço.
Se as opiniões
liberais não servem por serem modernas; se a minha
boca, por ser suspeita de ímpia, não pode ter
autoridade em semelhante assunto, venham os homens
tementes a Deus, piedosos e zelosos do real serviço,
a cujo voto o Sr. relator da comissão se socorreu
para nos dar uma bula de sanação pelo acto atroz e
anti-religioso, que
há vinte
anos tínhamos praticado, proscrevendo as ordens
religiosas que obedecessem a prelado estrangeiro.
É o parecer do
procurador da coroa contra a pretensão do bispo da
Guarda, para serem desnacionalizados alguns padres que
se ordenaram fora do reino.
O bispo da Guarda
requereu que se desnacionalizassem alguns padres seus
diocesanos, que tinham ido ordenar-se a Espanha,
obedecendo assim a prelado estrangeiro, porque para
tomar ordens no estrangeiro era preciso obedecer a
prelado estrangeiro. Já se vê que a questão não é
dessemelhante, o bispo pediu a desnacionalização
desses padres, e o desembargo do paço negou-a, pelo
parecer que vou ler. Se o Sr. Casal Ribeiro fosse
desembargo do paço, estava concedida. (Riso.)
Parecer do procurador
da coroa sobre uma petição do
bispo do Guarda, poro serem desnaturalizados
os que se ordenarem fora do reino.
Se bem se advertir nas
leis do reino, em que aos eclesiásticos se põe pena
de desnaturalização, se achará que não é mais que
um de dois casos. Primeiro, quando eles ofendem alguma
constituição civil, ordenada pelo príncipe secular
para bom governo do seu reino e sossego público de
seus vassalos, a qual não tenha penas de direito canónico,
e por isso não possa ser castigado pelos ministros da
igreja. Segundo, quando as pessoas eclesiásticas, que
atrozmente e com escândalo público delinquiram, não
foram pelos ditos ministros condignamente punidos, em
cujos termos entra então o poder político e económico
dos principais, para purgarem a república dos
delinquentes que a ofendem e escandalizam. Fora destes
casos não sei que se possa proceder a pena de
desnaturalização, a qual é gravíssima, e se
tem por igual à antiga deportação, e por isso não
se podem defender as leis que a impõem contra pessoas
do foro eclesiástico, senão no concurso das
referidas circunstâncias.
Intenta agora o bispo
da Guarda que esta se imponha aos seus súbditos, que
se foram ordenar fora daquele bispado, e já pelo que
referi se mostra que não se lhe deve deferir, porque
se eles levarem reverendas não podem incorrer em pena
alguma; e sem elas, ou com falsidade, se ordenarem, é
crime meramente eclesiástico, contra o qual o direito
canónico, santos concílios e as constituições
sinodais têm constituído penas, que aos pontífices,
aos padres e aos prelados pareceram correspondentes à
culpa, e destas mesmas é o bispo executor em seu
bispado. E se todavia em Deus e em sua consciência
entender que as pode acrescentar, lá se avenha, que
eu me persuado que sem escrúpulo da de sua majestade,
não pode o dito senhor entrar nesta matéria; pelo
menos que deve usar da espada do desnaturalizamento, a
qual para defensão somente de regalia, e não para
castigo dos crimes eclesiásticos, se deve
desembainhar.
Lisboa, 29 de março de
1689. - O secretário, Manuel Lopes de Oliveira.
À margem deste parecer
está a seguinte cota:
Em consulta do
desembargo do paço se conformou sua majestade com
este parecer, pela resolução de 10 de Setembro de
1685.»
Aqui temos que a espada
da desnaturalização não se podia desembainhar senão
em casos desta ordem; o Sr. Casal Ribeiro
desembainha-a arbitrariamente em defesa da sua ordem!
Não pode ser.
«Mas na questão de
que se trata, a desnaturalização é só para o
ensino público.» O princípio é o mesmo. Ou vá-se
embora o princípio, ou não se invoque. E não se
deve invocar; eu acho absurdo também que não se
sustente em todas as suas aplicações. Eu não o
aproveito, mas o Sr. Casal Ribeiro há de permitir que
seja aproveitado, declarando-se que os padres
desnacionalizados para o ensino público estão também
desnaturalizados para o ensino particular.
O Sr. José Luciano de
Castro tinha tocado este assunto, mas eu entendi que não
estavam tiradas todas as consequências.
Esta garantia - se
obedece a prelado estrangeiro, ou se não obedece a
prelado estrangeiro, - é uma garantia mesquinha e
humilhante. Neste caso as medidas decisivas não são
as mais profícuas, são as mais honestas. Como se
há de
adquirir a certeza civil, a certeza política, a
certeza governativa de que um indivíduo pertence ou não
pertence a qualquer congregação estrangeira?
Há de
inquirir-se a sua consciência obrigando-o a
juramentos, obrigando-o a revelar o sigilo,
obrigando-o também, para não resistir aos interesses
temporais, ou mesmo para melhor servir os interesses
da religião, a admitir talvez, e a aceder a uma
composição política a que todas as leis devem por
cobro? (Apoiados.)
Mesmo depois da revogação
do edicto de Nantes, a que se referiu o Sr. Fontes, nós
sabemos e conhecemos perfeitamente o que aconteceu, e
qual foi o procedimento que houve muitas vezes para os
conversos à força, a quem se não concediam certos
direitos, porque os não mereciam, e a quem se
obrigava na hora suprema (e isto no interesse da própria
religião, mas no que se cometia ou praticava um
grande sacrilégio) a quem se obrigava, digo, a dar um
testemunho de reverência, embora em forma externa, à
religião do Estado, não obstante eles declararem que
não estavam convertidos à fé católica. E este
testemunho assim dado por um acto externo, em oposição
com o foro inumo do converso, recebia-se e fazia-se
acreditar no interesse dessa religião. Este princípio
está formigando no projecto da comissão, projecto
que tem liberdades imensas, mas tem também a
liberdade da hipocrisia. (Apoiados repetidos.)
Cá está o mesmo princípio
no relatório. Aqui não havia desnacionalização
para fugir ao rigor lógico. Cá estão no relatório
os mesmos ataques à dignidade e à consciência
humana, as mesmas provas piedosas, a mesma fraude e o
mesmo desejo de impor os actos externos. (Apoiados.)
No parecer lêem-se as
seguintes palavras:
«Congratulemo-nos
antes de que os reaccionários sejam obrigados a
invocar a liberdade, a acolher-se ao nosso templo político,
prostrar-se ante o nosso altar e confessar a santidade
do nosso dogma. Se o culto que prestam não vem do
coração, os actos externos que praticam são sempre
uma eloquente homenagem à verdade; a conversão
completa será obra do tempo.»
Eu não quero tal
liberdade; renego-a e detesto-a! (Apoiados.) E
não é em nome da religião, nem em nome do
catolicismo, que vem apresentar-se semelhante fraude
piedosa e semelhantes arremedos de liberdade, que são
absurdos. (Apoiados.)
Se eu tiver tempo,
direi porque discordo do parecer da maioria da comissão.
E visto que se trata de conciliação, eu também
quero estar conciliado. Tomem na mão uma balança,
pesem a oiro e fio todas as liberdades - a da religião,
a do ensino, a de escrever, a de prestar culto a Deus
como entenderem, pesem a oiro e fio todas estas
liberdades, façam uma lei pondo um preceito conforme
o que der esta balança, e dêem-me o resultado desta
operação, que eu estou conciliado. Façam uma lei
para todos e para tudo, até ao ponto de se conservar
a ordem pública aí estou eu.
Laçam-na, e teremos
muita glória se a fizermos primeiro que outros países
da Europa, que têm de a fazer se quiserem paz,
sinceridade e ordem, sinceridade nos actos internos, e
ordem nos actos externos; se quiserem ter cidadãos e
religião. (Apoiados.)
A liberdade de
ensino... Cabe aqui uma citação de Sr. Guizot. Em
1836 dizia ele o seguinte:
Nas nossas vicissitudes
políticas os partidos têm-se esforçado por mais de
uma vez para invadir a instrução pública, dominá-la
e afeiçoá-la a seu gosto. Eles exploram a liberdade
do ensino com o mesmo desígnio. Apenas a tiverem
conquistado, vereis as opiniões as mais contrarias,
umas fanáticas e anti-racionais, outras irreligiosas
e anti-sociais, competirem em actividade para se
apoderarem das gerações nascentes. Apelarão para
todos os preconceitos, para todas as pretensões, para
todas as cegueiras, para todas as quimeras. Invocarão
agora o espírito de inovação, logo o espírito de
imobilidade. A magnificência das promessas, a
novidade dos métodos, a prontidão dos resultados, o
abatimento dos preços, serão incessantemente
alegados. Lisonjearão umas vezes a ambição, outras
a economia dos pais. O charlatanismo mercantil e a
paixão política porão em obsessão as famílias, e
nem todas terão as luzes e a prudência necessárias
para resistirem a estas solicitações.»
Se a hora estivesse
mais adiantada, se eu pudesse subtrair-me ao desejo
que tenho de exprimir as minhas ideais, sentava-me,
deixando os ilustres deputados em contestação com
Mr. Guizot. (Apoiados.)
Pergunto ao Sr. relator
da comissão: quer ele a liberdade do ensino com todas
estas consequências? Acha-se homem forte e robusto,
para com o poder clerical na mão por em ordem todos
estes elementos? Oferece-se a conter todas estas
liberdades dentro da ordem? Responde por todas as
consequências lógicas destas ideais? Não creio
isso. Já o meu amigo, o profeta Sr. Marques, fez um
discurso no Terreiro do Paço, e só por isso os
poderes do Estado julgaram que a ordem estava
perturbada, e esta câmara assim o julgou também...
Ora, de constituição tão fraca e tão débil, que
estremece de tão pouco, não creio que se possam
conseguir os resultados que nos são indicados.
Permita-me a comissão
que lhe diga que ela não dividiu bem os assuntos do
ensino: não dividiu o ensino por províncias literárias,
religiosas, administrativas e civis, dando a cada uma
das entidades respectivas o direito de educar, vigiar
e dirigir as províncias que lhe pertencem. Têm-se
suprindo no campo do ensino todas as estremas; ficou
assim o campo todo aberto sem ninguém determinar que
se especializassem os terrenos de que se compunha este
grande tracto de terra. Em vez de dizer ao Estado: «Ensina
as disciplinas civis» à ciência: «Ensina a ciência»;
ao pai: «Ensina a moralidade da família, conforme as
crenças religiosas de cada uma», - a comissão não
disse nada disso, não dividiu o ensino pelas suas
especialidades, como devera dividir. (Apoiados.)
Disse unicamente ao Estado e à religião: «Vamos
ensinar; ensinem tudo que é ensinável.» Mas que
havemos nós de ensinar? Assim como o clero não pode
admitir que o secular ensine a teologia divina, também
o Estado não pode admitir que o clero esteja
exclusivamente a ensinar a teologia política, o nosso
dogma, a nossa crença Deus, pátria e liberdade. Não
queremos que este dogma seja ensinado fora das inspirações
da religião, nem da essência dela; porque pátria e
Deus não são a mesma coisa; mas confundem-se no coração
do homem, sem ofensa à lei divina. Queremos que o
ensino civil do padre seja dado fora da influência
religiosa; mas não que lhe seja atribuída ou por
vontade da lei, ou contra vontade dela, por abuso
manifesto, reconhecido e já anunciado.
Nós não tratamos das
leis preventivas, porque as leis preventivas são para
os casos que não estão determinados. E estes estão
previstos. Logo o que há a fazer são
leis proibitivas: é proibir o legislar-se sobre o
ensino, que sistematicamente e desde séculos tem tido
uma certa direcção, um certo um, e que se confessa
agora que se quer nacionalizar para o mesmo fim. (Apoiados.)
Então não poderemos vigiar e prevenir? Creio que
sim, e a polícia preventiva vai, e vigia para que se
não perturbe a ordem pública. Se um homem disser: «Venho
aqui para matar o Sr. Fulano, ou para o roubar»,
creio que se tornam medidas sobre cada um destes casos
mas faz-se mais do que prevenir, reprime-se, visto que
há uma
intenção declarada de faltar às leis e às conveniências
do Estado. É a tentativa dum acto criminoso, que o
governo deve reprimir, depois que se declara que se
vai praticar esse acto. A solução lógica, social e
religiosa da questão da instrução pública, é
tomar as entidades, umas que Deus criou, e outras que
a lei fez, umas em virtude da lei natural, outras em
virtude da lei escrita, e encarregá-las, debaixo da
superintendência e acção legítimas, de educar as
gerações, transmitir a boa doutrina de umas para
outras, e fazer das gerações grémios de homens
civilizados, que pratiquem as virtudes cívicas e
mantenham a liberdade.
O projecto da comissão,
sem ofensa das suas piedosas intenções, não é mais
do que um leilão de almas. Vemos um ajuntamento de
crianças, transluzindo em todas elas a imagem da inocência,
que é também a imagem de Deus; mas ouvimos em volta
deste grupo respeitável a voz de empresas religiosas,
tratando afanosamente da caridade em proveito dos seus
próprios interesses. (Apoiados.) De um lado
quer-se que se vigie com todo o cuidado a praça numa
arrematação normal, num lanço de dinheiro, para que
não haja conluios, para que a lei se observe
religiosamente, e de outro estabelecem-se empresas
religiosas, companhias de exploração, para que a praça
seja vedada ao pai, ao Estado, à religião
verdadeira. (Vozes: - Muito bem.) Busca-se que
sejam arrematadas as almas em benefício da caridade.
ou do zelo dos especuladores, quando a verdadeira
caridade só se pode expandir fora de semelhantes leilões.
Em nome de que virtude
a criança nos seus mais tenros anos, e cercada dos
mais insondáveis mistérios da existência, há de
ser entregue a estranhos? (Apoiados.) Querem
isto? O pai já não existe, está anulada a família,
desconhecida a natureza, porque a companhia empresaria
já tem consubstanciado em si interesses e direitos,
que eram prerrogativas do pai e da família!
Isto envergonha! Mas não
fui eu, graças a Deus, não fui eu quem trouxe esta
comparação tão material para uma questão das mais
altas e mais transcendentes. O exemplo, porém, é
contagioso. Se eu ouvi da boca de um sacerdote a
declaração de que o ensino devia ser livre nos
estabelecimentos particulares, porque era uma indústria
como outra qualquer que o mestre era por consequência
um obreiro, e que o empresário do colégio de educação
tinha direito de ir buscar o melhor obreiro de
doutrina, como uma empresa industrial o melhor
pedreiro, o melhor serralheiro ou o melhor
carpinteiro! Isto disse-se, e disse-se pela falta de
sentimentos em questões desta ordem!
Sr. presidente, se não
fosse a inoportunidade e o inconveniente destas
comparações mal trazidas, quem poderia obrigar o
homem bem educado, cavaleiro, civil, atencioso,
elegante, a vir aqui dizer: «Vós não quereis as irmãs
da caridade francesas, e injuriais mesmo as senhoras
portuguesas, porque temeis a concorrência.» Fora
concorrência! Fora indústria! Fora todos estes símiles,
que desnaturam a questão!
Se não bastassem todas
estas declarações e todo o meu ânimo inofensivo,
acumularia ainda palavras sobre palavras a respeito de
um certo zelo e dedicação que não vejo. Não quero
considerar nenhum interesse mundano; considero as
instituições e as ideais; mas para os homens que se
colocam em posição um tanto critica, que forrageiam
em todos os campos, que combatem só com o pretexto de
que se vai ofender um princípio que todos acatam, e
que estão em risco de um mau resultado - todos os
meus argumentos são inúteis.
Mas o ateísmo! Oh! o
ateísmo, é preciso acudir-lhe; e preparar o ensino
da religião é matar o ateísmo. O parecer da comissão
é um reforço indispensável para os sentimentos
religiosos.» E que seria de Deus e da religião sem o
parecer da comissão? (Riso.) O ateísmo! Isto
é um tema velho e ridículo. Era um tema das
academias antigas, saber se poderia haver uma
sociedade de ateus, e como se poderia viver nela, o
que era o mesmo que discutir se podia haver sociedade
sem homens.
Deus formou o homem com
todos os instintos benévolos, e vinculou os
sentimentos generosos ao seu coração, de modo que a
verdade santa não fosse a fraude e a mentira. O
sentimento religioso não se analisa; não se lhe faz
síntese, nem análise; conhece-se e respeita-se. (Apoiados.)
E portanto não se pode chamar ímpio a ninguém;
chamar ímpio a alguém, é dizer: «Vi a tua consciência,
entrei nela, estive com ela, e conversei com ela.» Se
isso fosse possível, era para emudecer a boca e só
sentir o coração, porque, se os segredos de homem
para homem se não podem dizer, os segredos de consciência
para consciência estão selados com a honra. Herege e
ímpio! É herege e ímpio o homem que, na sua ambição
intelectual de conhecer tudo, pergunta a si mesmo
porque vive, porque
há de
morrer, quem é que o faz estremecer de horror, quem o
faz expandir de contentamento, quem modera os seus ímpetos,
quem sofreria os seus desejos? É ímpio quando,
elevando a sua imaginação às maravilhas que o
cercam, aos fenómenos da natureza que o deslumbram,
e, desgraçado mortal! querendo erguer-se ate à
imensidade, pára, não podendo mais, para depois,
conhecedor da sua pequenez, da sua ignorância, descer
à terra, humilhado e confundido diante da grandeza de
Deus?! (Vozes. - Muito bem.)
Nesse momento,
prostrado de cansaço, abatido por não poder devassar
os recônditos segredos da natureza; nesse momento,
vem um raio de infinita graça iluminar a sua alma, -
e essa luz é a luz da religião. Nesse instante ele
crê e espera; nesse instante prostra-se, como nós
todos, diante das maravilhas de Deus.
Sr. presidente, eu sou
religioso, católico, apostólico, romano. O homem
vive da faculdade de pensar e de sentir. Não o
estorvemos a cada passo, não o caluniemos, não o
suponhamos tão indigno que não possa elevar-se nas
azas do seu espírito, e librando-se na imensidade
procurar por eflúvios místicos e inexplicáveis as
relações que existem entre ele e a divindade.
Qual é o sábio, ou o
filósofo, ou o governo, que pode ter nas mãos o
facho da religião, da crença e da verdade, como cada
um o entende?
Sr. presidente, eu sou
católico, repito, segundo os princípios em que fui
educado; creio em Deus, e ele me deixa crer e esperar
também que este seja o melhor de todos os cultos,
porque satisfaz as necessidades do meu espírito, os
desejos do meu coração, e não diz à minha razão
nada que repugne às minhas aspirações.
Gosto do catolicismo
puro, e não gosto deste catolicismo filosofado,
destes enxertos de filosofia; gosto da doutrina pura
dos bons doutores; gosto da fé viva, da virtude sã,
de mais moral e menos formas. Não quero portanto o
catolicismo filosofado (sempre assim fui), nem o
catolicismo almiscarado; (riso) quero o
catolicismo puro, puríssimo, em todas as suas
manifestações; quero-o em toda a parte, fora da
igreja, como na igreja, sem distinção de lugar; numa
palavra, gosto do catolicismo que generaliza a ideia
religiosa, manifestada em todas as formas, quer
doutrinais quer morais. Agora não sei se sou ímpio...
Para o ilustre deputado (voltando-se para o Sr.
Pinto Coelho) parece-me que o sou. Mas, enfim,
seja o que quiserem, ímpio ou não ímpio, é isto o
que eu sou.
Estamos em tais
circunstâncias, cegámos a tal Estado, que nem a
Carta nos serve, nem os serviços de D. Pedro, nem o
sangue derramado, - nada absolutamente. Desembargo do
paço, acudi-nos! Monarquia antiga, valei-nos, que
estamos perdidos!
No entretanto sabem
todos que há uma universidade em Portugal, onde se ensina direito canónico
e civil, e onde há
um livro de um jurisconsulto chamado Pascoal
José de Melo, cujas obras, creio eu, estão no índice
expurgatório. Pois neste livro, por onde eu e o Sr.
Pinto Coelho estudamos, há esta rubrica
sacrílega: De jure imperanti circa sacra: do
direito do imperante acerca das coisas sagradas. Não
são clericais nem religiosas são sagradas - sacra,
porque a língua latina pode compreender num adjectivo
todos estes casos.
Nesta terra tudo é
liberdade, e a grande preguiça política, que
há no
nosso país, favorece esta chuva de liberdade. Se se
trata de ensino, diz-se - liberdade de ensino; se se
trata de comércio, diz-se - liberdade de comércio;
se se trata de discutir, diz-se - liberdade de discussão;
se se trata de religião, diz-se - liberdade de religião.
Disse eu que Napoleão,
que o imperador Napoleão, que o grande estadista
francês, (porque suponho que ele se gloria mais deste
nome, que se refere às suas qualidades pessoais, do
que daquele que lhe designa a sua posição) disse eu
que o imperador era histórico. É histórico na sua
maneira de reger. É histórico em sustentar com
coragem decidida, posto que com prudência os direitos
do poder civil, e em fazer barreira às invasões
clericais. É histórico, porque a sua política tem
sido a política tradicional da França, e a única do
chefe da sua dinastia, levantada gloriosamente pela
espada, e sustentada em parte por um grande tacto político.
Este tacto político
tem consistido em se não deixar cegar pela grandeza
da sua fortuna, pondo a sua posição acima do seu século:
tem consistido em conhecer o tempo em que nasceu, em
saber distinguir, entre as ideias que germinam na
sociedade, aquelas que podem dar paz, ordem e
prosperidade aos povos.
Debaixo deste ponto de
vista o imperador Napoleão tem feito serviços
relevantíssimos, não só à França, não só à
Europa, mas ao mundo inteiro, porque, se tem sido
liberal há
sua política interna, - na externa, sendo
chefe de uma nação entusiasta pela gloria das armas
e da conquista, podendo aproveitar o espírito
guerreiro dessa nação, e levar a guerra a toda a
parte, mergulhando a Europa em sangue, e intervindo na
sua forma de governo, tem-se abstido de o fazer.
Em 7 de Maio deste ano,
na sessão do senado francês, dizia: Mr. Billault «Considerando entretanto que os sentimentos religiosos são
a base da ordem social, o Estado favorece o seu
desenvolvimento, e todas as vezes que os membros do
clero se aplicam a acalmar as paixões, a formar as
populações para o bem. podem contar com o apoio do
governo. Mas quando se dão circunstâncias em que
eles não intervêm senão para perturbar o poder no
exercício de seus direitos e para excitar a agitação
nos espíritos, o dever do governo é por a mão por
cima desta agitação para a sufocar.»
Tanto não peço eu nem
nós temos poder para isso. Mas para fazer reconhecer
o direito comum, e circunscrevê-lo aos seus
verdadeiros limites, quem o nega?
Já se comparou aqui o
direito de ensinar ao direito de escrever, mostrando
que, se um é amplo, o outro não pode ser restrito.
Diz-se: «As lições são
os artigos de fundo, os redactores do jornal os
mestres, o redactor principal o director do colégio,
e o administrador o ecónomo.»
Estas comparações,
quanto ao fim, são procedentes; mas a ideia é
diversa, e estabelece a diferença entre as minhas
teorias e as dos ilustres deputados.
Na imprensa,
discute-se; no ensino, evangeliza-se. Na imprensa,
fala-se a adultos; no ensino, a crianças. Na
imprensa, há
contradição,
há luta
entre os adversários,
há divergência
entre ideias e doutrinas; no ensino, não a pode
haver. A imprensa tem como correctivo a razão pública;
o ensino não pode ter como correctivo a razão da
criança, que se está a formar. A imprensa tem,
finalmente, como moderador dos seus efeitos, como
censura universal, a consciência pública, que
assiste a todos os debates e os julga, separando o
joio do trigo; e, no ensino, a consciência da criança
não é crivo por onde se faça esta operação. (Repetidos
apoiados.)
Eu estou cansado. Tinha
que considerar o projecto debaixo de muitos outros
aspectos, mas não posso.
Vamos à questão. Não
pode haver liberdade de ensino sem liberdade de
cultos; proposição
demonstrada.
A Carta não permite a
liberdade de religião, e o código penal traz artigos
horrorosos a este respeito, que nós votamos sem saber
o que votávamos!
Não pode haver, pois,
essa liberdade. E logo não pode haver também hipótese
política e moral em que esta lei caiba.
Pedem-nos a liberdade
de cultos. Nós dizemos que não podemos, porque nos
dizem que as nações grandes vivem da justiça, e as
nações pequenas vivem da justiça das grandes, e
devem respeitar a sua iniciativa. Nós, povo pequeno,
não podemos empreender uma revolução desta ordem, e
portanto não fazemos semelhante proposta; mas, como não
nos cumpre inovar, acomodamos as leis ao que está. (Muitos
apoiados.)
Vejam, no entretanto, a
posição em que se colocam. Reconhecem que a
liberdade de cultos é indispensável para a liberdade
de ensino, e não propõem a liberdade de cultos! Não
compreendo. Aqui não
há senão
uma religião, e ninguém quer outra, nem reclama
contra ela; ainda bem. Aqui não
há protestantes;
ainda bem que não existe uma lei que deixe exercer o
seu culto completamente. Mas quem é que requer essa
lei? Nós não havemos de dar a liberdade a quem não
a quer! Isto é uma teoria de tal maneira pequena,
anti-histórica, anti-liberal, que é uma miséria
pronunciá-la. (Apoiados.) Esta teoria,
aplicada em rigor, dava a escravidão universal;
condenava todo o pensamento iniciador, todas as ideias
grandiosas, todos os espíritos arrojados. Esta teoria
de liberdade condenava a liberdade.
Se houvesse um
cataclismo universal em que se perdessem todas as
ideias da estrutura do mundo, e aparecessem, no meio
desse cataclismo, vestígios que pudessem suscitar a
ideia do homem, ainda então seria reconhecido, visto
e sentido por quem examinasse esses vestígios, que a
liberdade não é uma indústria, mas uma filha das
nossas condições naturais!
Aborreço as comparações
industriais para assuntos desta ordem, mas já que me
fizeram uma, forneceram-me os meios de a tornar
saliente.
Falou-se na liberdade e
no monopólio do contracto do tabaco; os contratadores
têm um grande numero de máquinas, têm um grande número
de pessoas que sabem manipular este produto, e a
liberdade para eles é o monopólio criado em virtude
de leis anteriores. É o mesmo que vos digo a respeito
do ensino. Vós ides decretar a liberdade do ensino;
mas, antes disso, tínheis criado o monopólio em
benefício de certas e determinadas opiniões. (Muitos
apoiados.)
Eu vou concluir. Eu
considero o projecto da comissão como uma jangada,
uma verdadeira jangada feita à pressa, para a qual
cada um dos navegadores ou empresários deu uma peça
de madeira; mas, passando deste para aquele lado do
rio, desmancharam a jangada, e entregaram a cada um a
madeira com que havia concorrido, e que lhe serviria
de arma de guerra para se defender dos outros. (Apoiados.)
Este projecto na minha
opinião não tem alcance algum; é um risco arquitectónico
arranjado pela oposição para certos fins; é um
expediente político, e não é mais nada. (Apoiados.)
E felizmente que é isso, porque se fosse outra coisa,
seria uma desgraça.
Sr. presidente, estas
leis de 1833, que defendemos e por que propugnamos, não
foram arrancadas aos poderes do Estado à custa de
cenas tumultuosas, ou à vista de sangue e debaixo do
terror; não foram argúcias políticas para debilitar
as forças do inimigo em uma guerra fratricida; não
foram meios de enganar a consciência de ninguém, nem
de levantar partidários debaixo de falsas promessas;
foram medidas tomadas por um príncipe, que era mais
que príncipe, que era um guerreiro distinto (apoiados),
por um príncipe liberal (apoiados), que era um
homem que jogou a sua vida com a valentia e resignação
com que o soldado raso pode jogar a sua em defesa do
posto que lhe foi confiado! (Apoiados.) Estas
leis foram todas sancionadas e proclamadas no remanso
da paz (apoiados) pelos poderes do Estado,
juntos e reunidos, tratando de resolver os problemas
económicos e políticos que a fortuna das armas lhes
pusera nas mãos. Foi assim que se proclamaram. Estas
leis são leis honradas pela sua origem, pelo modo
como foram promulgadas, pelas firmas com que foram
seladas; estão livres de toda a poeira e de todo o
sangue revolucionário; são leis de que devem ser
primeiros zeladores os que se chamam partido
conservador. E se não querem conservar isto, não têm
nada que. conservar! (Apoiados. - Vozes: - Muito
bem.)
Eu voto por estas leis,
e voto por elas como conservador, porque o ser
conservador não é o contrário de ser progressista.
Eu sou progressista, porque quero que se conservem
estas leis e estorvo a destruição delas; sou
progressista, porque conservo.
Voto, portanto, pelo
projecto do governo com exclusão do parecer da
maioria da comissão, porque o projecto da maioria da
comissão e o do governo são heterogéneos; um exclui
o outro, as suas tendências são diversas; um é uma
lei clara, terminante e corajosa: outro é uma lei
cheia de portas falsas, de incertezas, só com uma
porta larga, de grandes batentes, que é o artigo 4.º,
para entrarem por ali, não irmãs da caridade
portuguesas, mas irmãs de todas as caridades: (riso)
para o ensino ser assumido pelos representantes de
todas as seitas religiosas; para se entregar a instrução
pública à anarquia e à desordem, levantando-se
agora uma obra que tem forçosamente de ser destruída
pelas próprias mãos daqueles que a erigiram; (apoiados)
e que se a não destruírem, porque se pejem de o
fazer, hão de erguer as mãos ao céu, fazendo preces
a Deus para que alguém a deite abaixo.
Voto por consequência
pelo parecer do governo, com exclusão absoluta do
parecer da maioria da comissão. (Apoiados. -
Vozes: - Muito bem, muito bem. O orador foi
cumprimentado por grande número de Srs. deputados.)
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