José Estêvão

 
 
 

Discursos de José Estêvão

 

14 - Sobre a liberdade do ensino - 23/5/1862

 

 

SESSÃO DE 23 DE MAIO DE 1862

 

O cansaço obrigou-me naturalmente a contrair-me, pedindo por isso vénia à câmara para continuar no curso das minhas ideias, que não pude expor todas ontem, atendendo ao abatimento das minhas forças.

Ouvimos que o artigo 2.º do projecto, sem necessidade e com estranheza, repete o preceito de que ao corpo legislativo pertence conceder autorização para serem admitidas no país as ordens religiosas.  Era necessário para obviar as dúvidas que se tinham apresentado sobre este assunto.

Disse-se: «Foram admitidas ordens religiosas neste país por alvarás e sem dependência de lei. Daqui é que vêm estas pendências; esta é a origem de todas as inquietações. E para de uma vez lhes pormos cobro, declaramos o direito que aliás estava declarado; mas com boa intenção, com o desejo de o estabelecer é que se inseriu este artigo para acabar com todas essas razões de dúvidas, para estabelecer o preceito legal, para pôr termo a todos os embaraços e a todas as questões, e ficar por uma vez assente a legislação de 1833, para que essa legislação seja revalidada, confirmada e declarada por um modo explícito e terminante.»

É o que faz o projecto do governo. E portanto o projecto do governo está sustentado pelos argumentos com que a comissão sustentou o artigo 2.º.

Se havia necessidade de clareza para escrever o artigo 2.º, essa mesma necessidade de clareza havia-a para o governo apresentar o projecto e, sobretudo, o artigo 1.º. E essa necessidade devia levar os ilustres deputados a adoptarem o artigo 1.º, porque ele era indispensável, porque ele corta as dúvidas, aquieta as consciências, desembaraça os governos, deixado-os marchar desafogadamente, e livra a administração do país, permita-se-me a frase, deste trambolho. (Riso.)

Mas no projecto da comissão    um artigo estranho, incongruente e inesperado: é o artigo que declara incompetentes para ensinar nos estabelecimentos do Estado os membros das ordens religiosas. Digo que é incongruente, estranho e inesperado, depois dos encómios, depois das recordações históricas, depois das inculcas que se fizeram da proficiência dessas ordens. É estranho que os seus membros se deixem soltos e livres no ensino particular, e sejam exceptuados, sejam expulsos, do ensino oficial; porque é uma excepção que ataca e fere os princípios da liberdade, tão invocada pelos membros da maioria da comissão.

O Sr. relator da comissão achou-se em gravíssimo apuro. E é estranha e inaudita a folestria lógica com que ele saiu deste apuro, sustentando uma doutrina absurda na jurisprudência civil e na jurisprudência canónica, cometendo um atentado contra todas as doutrinas liberais, só para não deixar sair da sua boca ortodoxa, e contemporizadora com as opiniões suas amigas e afectas, uma só frase que as ofendesse, um só estigma de incapacidade para as corporações religiosas.

O natural era dizer: «Pois porque não hão de ensinar os membros das corporações religiosas nos estabelecimentos do governo? Não podia ser senão por um só motivo - o de suspeição.» (Apoiados.) Mas a boca do ilustre deputado estava fechada para pronunciar esta palavra! Ele não podia pronunciá-la, e sobretudo estava inspirado por este santo princípio da transacção, que era preciso manter. E por isso disse: «Ensinem só nos estabelecimentos particulares!»

Isto, Sr. relator da comissão, é inaudito, é revoltante em doutrina, e sobretudo em referência à sua pessoa, porque é um contracenso. E eu vou reclamar em nome dessas pobres ordens religiosas, em nome do decoro deste país, em nome da liberdade e da boa razão.

O Sr. relator da comissão declarou-nos que um português que pertencesse a uma ordem religiosa, sujeita a prelado estrangeiro, ficava por isso privado dos seus direitos de português, da mesma maneira que um capitalista, que pertencesse a uma companhia que tivesse a direcção estrangeira, ficava privado dos seus direitos. Isto é incrível! O ilustre deputado desnacionaliza os membros das ordens religiosas para não poderem ensinar nos institutos do governo: mas, se os achamos desnacionalizados para os institutos do governo, também não os podemos nacionalizar para ensinarem nos estabelecimentos particulares. São bons, são excelentes; mas estão desnacionalizados, não são portugueses. E o ilustre deputado fez este raciocínio. Em França, os estrangeiros são excluídos de ensinar, mas são os estrangeiros, os que não são franceses; logo os portugueses que pertencem a uma congregação religiosa estrangeira, por esse facto ficam estrangeiros, e portanto são excluídos de ensinar. Era melhor dizer outra qualquer coisa. Que respeito à consciência! Que respeito às opiniões religiosas! Que respeito à liberdade! Desnacionalizar um homem que, no foro da sua consciência, e segundo os princípios do seu culto, julga que pode satisfazer os seus deveres de cidadão, e contudo obedecer espiritualmente ao chefe da sua congregação! E não   invasão na liberdade de consciência! Isto é flagrante, flagrantíssimo, e é-o sobretudo pelo espírito de vastidão que o Sr. relator lhe dá para acudir a si, para se livrar de um embaraço. (Apoiados.) As irmãs da caridade saltaram por cima do instituto; o Sr. Casal Ribeiro saltou por cima da lógica, por cima do bom senso, da tradição, da razão, de tudo. (Apoiados.)

Eu leio isto trinta vezes, e não o posso crer.

Sou obrigado a recorrer à nossa jurisprudência antiga contra esta barbaríssima sentença. Vou a 1600 buscar, com orgulho e com satisfação, argumentos aos homens doutos, aos jurisconsultos, aos reinícolas desta terra, contra essa absurda doutrina, que vem agora apresentar-se aqui com aparências da última expressão da liberdade. (Apoiados.)

Nada mais, nada menos, é um caso semelhante, semelhantíssimo, e julgado no desembargo do paço.

Se as opiniões liberais não servem por serem modernas; se a minha boca, por ser suspeita de ímpia, não pode ter autoridade em semelhante assunto, venham os homens tementes a Deus, piedosos e zelosos do real serviço, a cujo voto o Sr. relator da comissão se socorreu para nos dar uma bula de sanação pelo acto atroz e anti-religioso, que    vinte anos tínhamos praticado, proscrevendo as ordens religiosas que obedecessem a prelado estrangeiro.

É o parecer do procurador da coroa contra a pretensão do bispo da Guarda, para serem desnacionalizados alguns padres que se ordenaram fora do reino.

O bispo da Guarda requereu que se desnacionalizassem alguns padres seus diocesanos, que tinham ido ordenar-se a Espanha, obedecendo assim a prelado estrangeiro, porque para tomar ordens no estrangeiro era preciso obedecer a prelado estrangeiro. Já se vê que a questão não é dessemelhante, o bispo pediu a desnacionalização desses padres, e o desembargo do paço negou-a, pelo parecer que vou ler. Se o Sr. Casal Ribeiro fosse desembargo do paço, estava concedida. (Riso.)

 

Parecer do procurador da coroa sobre uma petição do bispo do Guarda, poro serem desnaturalizados os que se ordenarem fora do reino. Se bem se advertir nas leis do reino, em que aos eclesiásticos se põe pena de desnaturalização, se achará que não é mais que um de dois casos. Primeiro, quando eles ofendem alguma constituição civil, ordenada pelo príncipe secular para bom governo do seu reino e sossego público de seus vassalos, a qual não tenha penas de direito canónico, e por isso não possa ser castigado pelos ministros da igreja. Segundo, quando as pessoas eclesiásticas, que atrozmente e com escândalo público delinquiram, não foram pelos ditos ministros condignamente punidos, em cujos termos entra então o poder político e económico dos principais, para purgarem a república dos delinquentes que a ofendem e escandalizam. Fora destes casos não sei que se possa proceder a pena de desnaturalização, a qual é gravíssima, e se tem por igual à antiga deportação, e por isso não se podem defender as leis que a impõem contra pessoas do foro eclesiástico, senão no concurso das referidas circunstâncias.

Intenta agora o bispo da Guarda que esta se imponha aos seus súbditos, que se foram ordenar fora daquele bispado, e já pelo que referi se mostra que não se lhe deve deferir, porque se eles levarem reverendas não podem incorrer em pena alguma; e sem elas, ou com falsidade, se ordenarem, é crime meramente eclesiástico, contra o qual o direito canónico, santos concílios e as constituições sinodais têm constituído penas, que aos pontífices, aos padres e aos prelados pareceram correspondentes à culpa, e destas mesmas é o bispo executor em seu bispado. E se todavia em Deus e em sua consciência entender que as pode acrescentar, lá se avenha, que eu me persuado que sem escrúpulo da de sua majestade, não pode o dito senhor entrar nesta matéria; pelo menos que deve usar da espada do desnaturalizamento, a qual para defensão somente de regalia, e não para castigo dos crimes eclesiásticos, se deve desembainhar.

Lisboa, 29 de março de 1689. - O secretário, Manuel Lopes de Oliveira.

À margem deste parecer está a seguinte cota:

Em consulta do desembargo do paço se conformou sua majestade com este parecer, pela resolução de 10 de Setembro de 1685.»

Aqui temos que a espada da desnaturalização não se podia desembainhar senão em casos desta ordem; o Sr. Casal Ribeiro desembainha-a arbitrariamente em defesa da sua ordem! Não pode ser.

«Mas na questão de que se trata, a desnaturalização é só para o ensino público.» O princípio é o mesmo. Ou vá-se embora o princípio, ou não se invoque. E não se deve invocar; eu acho absurdo também que não se sustente em todas as suas aplicações. Eu não o aproveito, mas o Sr. Casal Ribeiro há de permitir que seja aproveitado, declarando-se que os padres desnacionalizados para o ensino público estão também desnaturalizados para o ensino particular.

O Sr. José Luciano de Castro tinha tocado este assunto, mas eu entendi que não estavam tiradas todas as consequências.

Esta garantia - se obedece a prelado estrangeiro, ou se não obedece a prelado estrangeiro, - é uma garantia mesquinha e humilhante. Neste caso as medidas decisivas não são as mais profícuas, são as mais honestas. Como se    de adquirir a certeza civil, a certeza política, a certeza governativa de que um indivíduo pertence ou não pertence a qualquer congregação estrangeira?   de inquirir-se a sua consciência obrigando-o a juramentos, obrigando-o a revelar o sigilo, obrigando-o também, para não resistir aos interesses temporais, ou mesmo para melhor servir os interesses da religião, a admitir talvez, e a aceder a uma composição política a que todas as leis devem por cobro? (Apoiados.)

Mesmo depois da revogação do edicto de Nantes, a que se referiu o Sr. Fontes, nós sabemos e conhecemos perfeitamente o que aconteceu, e qual foi o procedimento que houve muitas vezes para os conversos à força, a quem se não concediam certos direitos, porque os não mereciam, e a quem se obrigava na hora suprema (e isto no interesse da própria religião, mas no que se cometia ou praticava um grande sacrilégio) a quem se obrigava, digo, a dar um testemunho de reverência, embora em forma externa, à religião do Estado, não obstante eles declararem que não estavam convertidos à fé católica. E este testemunho assim dado por um acto externo, em oposição com o foro inumo do converso, recebia-se e fazia-se acreditar no interesse dessa religião. Este princípio está formigando no projecto da comissão, projecto que tem liberdades imensas, mas tem também a liberdade da hipocrisia. (Apoiados repetidos.)

Cá está o mesmo princípio no relatório. Aqui não havia desnacionalização para fugir ao rigor lógico. Cá estão no relatório os mesmos ataques à dignidade e à consciência humana, as mesmas provas piedosas, a mesma fraude e o mesmo desejo de impor os actos externos. (Apoiados.)

No parecer lêem-se as seguintes palavras:

«Congratulemo-nos antes de que os reaccionários sejam obrigados a invocar a liberdade, a acolher-se ao nosso templo político, prostrar-se ante o nosso altar e confessar a santidade do nosso dogma. Se o culto que prestam não vem do coração, os actos externos que praticam são sempre uma eloquente homenagem à verdade; a conversão completa será obra do tempo.»

Eu não quero tal liberdade; renego-a e detesto-a! (Apoiados.) E não é em nome da religião, nem em nome do catolicismo, que vem apresentar-se semelhante fraude piedosa e semelhantes arremedos de liberdade, que são absurdos. (Apoiados.)

Se eu tiver tempo, direi porque discordo do parecer da maioria da comissão. E visto que se trata de conciliação, eu também quero estar conciliado. Tomem na mão uma balança, pesem a oiro e fio todas as liberdades - a da religião, a do ensino, a de escrever, a de prestar culto a Deus como entenderem, pesem a oiro e fio todas estas liberdades, façam uma lei pondo um preceito conforme o que der esta balança, e dêem-me o resultado desta operação, que eu estou conciliado. Façam uma lei para todos e para tudo, até ao ponto de se conservar a ordem pública aí estou eu.

Laçam-na, e teremos muita glória se a fizermos primeiro que outros países da Europa, que têm de a fazer se quiserem paz, sinceridade e ordem, sinceridade nos actos internos, e ordem nos actos externos; se quiserem ter cidadãos e religião. (Apoiados.)

A liberdade de ensino... Cabe aqui uma citação de Sr. Guizot. Em 1836 dizia ele o seguinte:

Nas nossas vicissitudes políticas os partidos têm-se esforçado por mais de uma vez para invadir a instrução pública, dominá-la e afeiçoá-la a seu gosto. Eles exploram a liberdade do ensino com o mesmo desígnio. Apenas a tiverem conquistado, vereis as opiniões as mais contrarias, umas fanáticas e anti-racionais, outras irreligiosas e anti-sociais, competirem em actividade para se apoderarem das gerações nascentes. Apelarão para todos os preconceitos, para todas as pretensões, para todas as cegueiras, para todas as quimeras. Invocarão agora o espírito de inovação, logo o espírito de imobilidade. A magnificência das promessas, a novidade dos métodos, a prontidão dos resultados, o abatimento dos preços, serão incessantemente alegados. Lisonjearão umas vezes a ambição, outras a economia dos pais. O charlatanismo mercantil e a paixão política porão em obsessão as famílias, e nem todas terão as luzes e a prudência necessárias para resistirem a estas solicitações.»

Se a hora estivesse mais adiantada, se eu pudesse subtrair-me ao desejo que tenho de exprimir as minhas ideais, sentava-me, deixando os ilustres deputados em contestação com Mr. Guizot. (Apoiados.)

Pergunto ao Sr. relator da comissão: quer ele a liberdade do ensino com todas estas consequências? Acha-se homem forte e robusto, para com o poder clerical na mão por em ordem todos estes elementos? Oferece-se a conter todas estas liberdades dentro da ordem? Responde por todas as consequências lógicas destas ideais? Não creio isso. Já o meu amigo, o profeta Sr. Marques, fez um discurso no Terreiro do Paço, e só por isso os poderes do Estado julgaram que a ordem estava perturbada, e esta câmara assim o julgou também... Ora, de constituição tão fraca e tão débil, que estremece de tão pouco, não creio que se possam conseguir os resultados que nos são indicados.

Permita-me a comissão que lhe diga que ela não dividiu bem os assuntos do ensino: não dividiu o ensino por províncias literárias, religiosas, administrativas e civis, dando a cada uma das entidades respectivas o direito de educar, vigiar e dirigir as províncias que lhe pertencem. Têm-se suprindo no campo do ensino todas as estremas; ficou assim o campo todo aberto sem ninguém determinar que se especializassem os terrenos de que se compunha este grande tracto de terra. Em vez de dizer ao Estado: «Ensina as disciplinas civis» à ciência: «Ensina a ciência»; ao pai: «Ensina a moralidade da família, conforme as crenças religiosas de cada uma», - a comissão não disse nada disso, não dividiu o ensino pelas suas especialidades, como devera dividir. (Apoiados.) Disse unicamente ao Estado e à religião: «Vamos ensinar; ensinem tudo que é ensinável.» Mas que havemos nós de ensinar? Assim como o clero não pode admitir que o secular ensine a teologia divina, também o Estado não pode admitir que o clero esteja exclusivamente a ensinar a teologia política, o nosso dogma, a nossa crença Deus, pátria e liberdade. Não queremos que este dogma seja ensinado fora das inspirações da religião, nem da essência dela; porque pátria e Deus não são a mesma coisa; mas confundem-se no coração do homem, sem ofensa à lei divina. Queremos que o ensino civil do padre seja dado fora da influência religiosa; mas não que lhe seja atribuída ou por vontade da lei, ou contra vontade dela, por abuso manifesto, reconhecido e já anunciado.

Nós não tratamos das leis preventivas, porque as leis preventivas são para os casos que não estão determinados. E estes estão previstos. Logo o que    a fazer são leis proibitivas: é proibir o legislar-se sobre o ensino, que sistematicamente e desde séculos tem tido uma certa direcção, um certo um, e que se confessa agora que se quer nacionalizar para o mesmo fim. (Apoiados.) Então não poderemos vigiar e prevenir? Creio que sim, e a polícia preventiva vai, e vigia para que se não perturbe a ordem pública. Se um homem disser: «Venho aqui para matar o Sr. Fulano, ou para o roubar», creio que se tornam medidas sobre cada um destes casos mas faz-se mais do que prevenir, reprime-se, visto que    uma intenção declarada de faltar às leis e às conveniências do Estado. É a tentativa dum acto criminoso, que o governo deve reprimir, depois que se declara que se vai praticar esse acto. A solução lógica, social e religiosa da questão da instrução pública, é tomar as entidades, umas que Deus criou, e outras que a lei fez, umas em virtude da lei natural, outras em virtude da lei escrita, e encarregá-las, debaixo da superintendência e acção legítimas, de educar as gerações, transmitir a boa doutrina de umas para outras, e fazer das gerações grémios de homens civilizados, que pratiquem as virtudes cívicas e mantenham a liberdade.

O projecto da comissão, sem ofensa das suas piedosas intenções, não é mais do que um leilão de almas. Vemos um ajuntamento de crianças, transluzindo em todas elas a imagem da inocência, que é também a imagem de Deus; mas ouvimos em volta deste grupo respeitável a voz de empresas religiosas, tratando afanosamente da caridade em proveito dos seus próprios interesses. (Apoiados.) De um lado quer-se que se vigie com todo o cuidado a praça numa arrematação normal, num lanço de dinheiro, para que não haja conluios, para que a lei se observe religiosamente, e de outro estabelecem-se empresas religiosas, companhias de exploração, para que a praça seja vedada ao pai, ao Estado, à religião verdadeira. (Vozes: - Muito bem.) Busca-se que sejam arrematadas as almas em benefício da caridade. ou do zelo dos especuladores, quando a verdadeira caridade só se pode expandir fora de semelhantes leilões.

Em nome de que virtude a criança nos seus mais tenros anos, e cercada dos mais insondáveis mistérios da existência, há de ser entregue a estranhos? (Apoiados.) Querem isto? O pai já não existe, está anulada a família, desconhecida a natureza, porque a companhia empresaria já tem consubstanciado em si interesses e direitos, que eram prerrogativas do pai e da família!

Isto envergonha! Mas não fui eu, graças a Deus, não fui eu quem trouxe esta comparação tão material para uma questão das mais altas e mais transcendentes. O exemplo, porém, é contagioso. Se eu ouvi da boca de um sacerdote a declaração de que o ensino devia ser livre nos estabelecimentos particulares, porque era uma indústria como outra qualquer que o mestre era por consequência um obreiro, e que o empresário do colégio de educação tinha direito de ir buscar o melhor obreiro de doutrina, como uma empresa industrial o melhor pedreiro, o melhor serralheiro ou o melhor carpinteiro! Isto disse-se, e disse-se pela falta de sentimentos em questões desta ordem!

Sr. presidente, se não fosse a inoportunidade e o inconveniente destas comparações mal trazidas, quem poderia obrigar o homem bem educado, cavaleiro, civil, atencioso, elegante, a vir aqui dizer: «Vós não quereis as irmãs da caridade francesas, e injuriais mesmo as senhoras portuguesas, porque temeis a concorrência.» Fora concorrência! Fora indústria! Fora todos estes símiles, que desnaturam a questão!

Se não bastassem todas estas declarações e todo o meu ânimo inofensivo, acumularia ainda palavras sobre palavras a respeito de um certo zelo e dedicação que não vejo. Não quero considerar nenhum interesse mundano; considero as instituições e as ideais; mas para os homens que se colocam em posição um tanto critica, que forrageiam em todos os campos, que combatem só com o pretexto de que se vai ofender um princípio que todos acatam, e que estão em risco de um mau resultado - todos os meus argumentos são inúteis.

Mas o ateísmo! Oh! o ateísmo, é preciso acudir-lhe; e preparar o ensino da religião é matar o ateísmo. O parecer da comissão é um reforço indispensável para os sentimentos religiosos.» E que seria de Deus e da religião sem o parecer da comissão? (Riso.) O ateísmo! Isto é um tema velho e ridículo. Era um tema das academias antigas, saber se poderia haver uma sociedade de ateus, e como se poderia viver nela, o que era o mesmo que discutir se podia haver sociedade sem homens.

Deus formou o homem com todos os instintos benévolos, e vinculou os sentimentos generosos ao seu coração, de modo que a verdade santa não fosse a fraude e a mentira. O sentimento religioso não se analisa; não se lhe faz síntese, nem análise; conhece-se e respeita-se. (Apoiados.) E portanto não se pode chamar ímpio a ninguém; chamar ímpio a alguém, é dizer: «Vi a tua consciência, entrei nela, estive com ela, e conversei com ela.» Se isso fosse possível, era para emudecer a boca e só sentir o coração, porque, se os segredos de homem para homem se não podem dizer, os segredos de consciência para consciência estão selados com a honra. Herege e ímpio! É herege e ímpio o homem que, na sua ambição intelectual de conhecer tudo, pergunta a si mesmo porque vive, porque    de morrer, quem é que o faz estremecer de horror, quem o faz expandir de contentamento, quem modera os seus ímpetos, quem sofreria os seus desejos? É ímpio quando, elevando a sua imaginação às maravilhas que o cercam, aos fenómenos da natureza que o deslumbram, e, desgraçado mortal! querendo erguer-se ate à imensidade, pára, não podendo mais, para depois, conhecedor da sua pequenez, da sua ignorância, descer à terra, humilhado e confundido diante da grandeza de Deus?! (Vozes. - Muito bem.)

Nesse momento, prostrado de cansaço, abatido por não poder devassar os recônditos segredos da natureza; nesse momento, vem um raio de infinita graça iluminar a sua alma, - e essa luz é a luz da religião. Nesse instante ele crê e espera; nesse instante prostra-se, como nós todos, diante das maravilhas de Deus.

Sr. presidente, eu sou religioso, católico, apostólico, romano. O homem vive da faculdade de pensar e de sentir. Não o estorvemos a cada passo, não o caluniemos, não o suponhamos tão indigno que não possa elevar-se nas azas do seu espírito, e librando-se na imensidade procurar por eflúvios místicos e inexplicáveis as relações que existem entre ele e a divindade.

Qual é o sábio, ou o filósofo, ou o governo, que pode ter nas mãos o facho da religião, da crença e da verdade, como cada um o entende?

Sr. presidente, eu sou católico, repito, segundo os princípios em que fui educado; creio em Deus, e ele me deixa crer e esperar também que este seja o melhor de todos os cultos, porque satisfaz as necessidades do meu espírito, os desejos do meu coração, e não diz à minha razão nada que repugne às minhas aspirações.

Gosto do catolicismo puro, e não gosto deste catolicismo filosofado, destes enxertos de filosofia; gosto da doutrina pura dos bons doutores; gosto da fé viva, da virtude sã, de mais moral e menos formas. Não quero portanto o catolicismo filosofado (sempre assim fui), nem o catolicismo almiscarado; (riso) quero o catolicismo puro, puríssimo, em todas as suas manifestações; quero-o em toda a parte, fora da igreja, como na igreja, sem distinção de lugar; numa palavra, gosto do catolicismo que generaliza a ideia religiosa, manifestada em todas as formas, quer doutrinais quer morais. Agora não sei se sou ímpio... Para o ilustre deputado (voltando-se para o Sr. Pinto Coelho) parece-me que o sou. Mas, enfim, seja o que quiserem, ímpio ou não ímpio, é isto o que eu sou.

Estamos em tais circunstâncias, cegámos a tal Estado, que nem a Carta nos serve, nem os serviços de D. Pedro, nem o sangue derramado, - nada absolutamente. Desembargo do paço, acudi-nos! Monarquia antiga, valei-nos, que estamos perdidos!

No entretanto sabem todos que    uma universidade em Portugal, onde se ensina direito canónico e civil, e onde    um livro de um jurisconsulto chamado Pascoal José de Melo, cujas obras, creio eu, estão no índice expurgatório. Pois neste livro, por onde eu e o Sr. Pinto Coelho estudamos,    esta rubrica sacrílega: De jure imperanti circa sacra: do direito do imperante acerca das coisas sagradas. Não são clericais nem religiosas são sagradas - sacra, porque a língua latina pode compreender num adjectivo todos estes casos.

Nesta terra tudo é liberdade, e a grande preguiça política, que    no nosso país, favorece esta chuva de liberdade. Se se trata de ensino, diz-se - liberdade de ensino; se se trata de comércio, diz-se - liberdade de comércio; se se trata de discutir, diz-se - liberdade de discussão; se se trata de religião, diz-se - liberdade de religião.

Disse eu que Napoleão, que o imperador Napoleão, que o grande estadista francês, (porque suponho que ele se gloria mais deste nome, que se refere às suas qualidades pessoais, do que daquele que lhe designa a sua posição) disse eu que o imperador era histórico. É histórico na sua maneira de reger. É histórico em sustentar com coragem decidida, posto que com prudência os direitos do poder civil, e em fazer barreira às invasões clericais. É histórico, porque a sua política tem sido a política tradicional da França, e a única do chefe da sua dinastia, levantada gloriosamente pela espada, e sustentada em parte por um grande tacto político.

Este tacto político tem consistido em se não deixar cegar pela grandeza da sua fortuna, pondo a sua posição acima do seu século: tem consistido em conhecer o tempo em que nasceu, em saber distinguir, entre as ideias que germinam na sociedade, aquelas que podem dar paz, ordem e prosperidade aos povos.

Debaixo deste ponto de vista o imperador Napoleão tem feito serviços relevantíssimos, não só à França, não só à Europa, mas ao mundo inteiro, porque, se tem sido liberal    sua política interna, - na externa, sendo chefe de uma nação entusiasta pela gloria das armas e da conquista, podendo aproveitar o espírito guerreiro dessa nação, e levar a guerra a toda a parte, mergulhando a Europa em sangue, e intervindo na sua forma de governo, tem-se abstido de o fazer.

Em 7 de Maio deste ano, na sessão do senado francês, dizia: Mr. Billault  «Considerando entretanto que os sentimentos religiosos são a base da ordem social, o Estado favorece o seu desenvolvimento, e todas as vezes que os membros do clero se aplicam a acalmar as paixões, a formar as populações para o bem. podem contar com o apoio do governo. Mas quando se dão circunstâncias em que eles não intervêm senão para perturbar o poder no exercício de seus direitos e para excitar a agitação nos espíritos, o dever do governo é por a mão por cima desta agitação para a sufocar.»

Tanto não peço eu nem nós temos poder para isso. Mas para fazer reconhecer o direito comum, e circunscrevê-lo aos seus verdadeiros limites, quem o nega?

Já se comparou aqui o direito de ensinar ao direito de escrever, mostrando que, se um é amplo, o outro não pode ser restrito.

Diz-se: «As lições são os artigos de fundo, os redactores do jornal os mestres, o redactor principal o director do colégio, e o administrador o ecónomo.»

Estas comparações, quanto ao fim, são procedentes; mas a ideia é diversa, e estabelece a diferença entre as minhas teorias e as dos ilustres deputados.

Na imprensa, discute-se; no ensino, evangeliza-se. Na imprensa, fala-se a adultos; no ensino, a crianças. Na imprensa,    contradição,    luta entre os adversários,    divergência entre ideias e doutrinas; no ensino, não a pode haver. A imprensa tem como correctivo a razão pública; o ensino não pode ter como correctivo a razão da criança, que se está a formar. A imprensa tem, finalmente, como moderador dos seus efeitos, como censura universal, a consciência pública, que assiste a todos os debates e os julga, separando o joio do trigo; e, no ensino, a consciência da criança não é crivo por onde se faça esta operação. (Repetidos apoiados.)

Eu estou cansado. Tinha que considerar o projecto debaixo de muitos outros aspectos, mas não posso.

Vamos à questão. Não pode haver liberdade de ensino sem liberdade de cultos;   proposição demonstrada.

A Carta não permite a liberdade de religião, e o código penal traz artigos horrorosos a este respeito, que nós votamos sem saber o que votávamos!

Não pode haver, pois, essa liberdade. E logo não pode haver também hipótese política e moral em que esta lei caiba.

Pedem-nos a liberdade de cultos. Nós dizemos que não podemos, porque nos dizem que as nações grandes vivem da justiça, e as nações pequenas vivem da justiça das grandes, e devem respeitar a sua iniciativa. Nós, povo pequeno, não podemos empreender uma revolução desta ordem, e portanto não fazemos semelhante proposta; mas, como não nos cumpre inovar, acomodamos as leis ao que está. (Muitos apoiados.)

Vejam, no entretanto, a posição em que se colocam. Reconhecem que a liberdade de cultos é indispensável para a liberdade de ensino, e não propõem a liberdade de cultos! Não compreendo. Aqui não    senão uma religião, e ninguém quer outra, nem reclama contra ela; ainda bem. Aqui não    protestantes; ainda bem que não existe uma lei que deixe exercer o seu culto completamente. Mas quem é que requer essa lei? Nós não havemos de dar a liberdade a quem não a quer! Isto é uma teoria de tal maneira pequena, anti-histórica, anti-liberal, que é uma miséria pronunciá-la. (Apoiados.) Esta teoria, aplicada em rigor, dava a escravidão universal; condenava todo o pensamento iniciador, todas as ideias grandiosas, todos os espíritos arrojados. Esta teoria de liberdade condenava a liberdade.

Se houvesse um cataclismo universal em que se perdessem todas as ideias da estrutura do mundo, e aparecessem, no meio desse cataclismo, vestígios que pudessem suscitar a ideia do homem, ainda então seria reconhecido, visto e sentido por quem examinasse esses vestígios, que a liberdade não é uma indústria, mas uma filha das nossas condições naturais!

Aborreço as comparações industriais para assuntos desta ordem, mas já que me fizeram uma, forneceram-me os meios de a tornar saliente.

Falou-se na liberdade e no monopólio do contracto do tabaco; os contratadores têm um grande numero de máquinas, têm um grande número de pessoas que sabem manipular este produto, e a liberdade para eles é o monopólio criado em virtude de leis anteriores. É o mesmo que vos digo a respeito do ensino. Vós ides decretar a liberdade do ensino; mas, antes disso, tínheis criado o monopólio em benefício de certas e determinadas opiniões. (Muitos apoiados.)

Eu vou concluir. Eu considero o projecto da comissão como uma jangada, uma verdadeira jangada feita à pressa, para a qual cada um dos navegadores ou empresários deu uma peça de madeira; mas, passando deste para aquele lado do rio, desmancharam a jangada, e entregaram a cada um a madeira com que havia concorrido, e que lhe serviria de arma de guerra para se defender dos outros. (Apoiados.)

Este projecto na minha opinião não tem alcance algum; é um risco arquitectónico arranjado pela oposição para certos fins; é um expediente político, e não é mais nada. (Apoiados.) E felizmente que é isso, porque se fosse outra coisa, seria uma desgraça.

Sr. presidente, estas leis de 1833, que defendemos e por que propugnamos, não foram arrancadas aos poderes do Estado à custa de cenas tumultuosas, ou à vista de sangue e debaixo do terror; não foram argúcias políticas para debilitar as forças do inimigo em uma guerra fratricida; não foram meios de enganar a consciência de ninguém, nem de levantar partidários debaixo de falsas promessas; foram medidas tomadas por um príncipe, que era mais que príncipe, que era um guerreiro distinto (apoiados), por um príncipe liberal (apoiados), que era um homem que jogou a sua vida com a valentia e resignação com que o soldado raso pode jogar a sua em defesa do posto que lhe foi confiado! (Apoiados.) Estas leis foram todas sancionadas e proclamadas no remanso da paz (apoiados) pelos poderes do Estado, juntos e reunidos, tratando de resolver os problemas económicos e políticos que a fortuna das armas lhes pusera nas mãos. Foi assim que se proclamaram. Estas leis são leis honradas pela sua origem, pelo modo como foram promulgadas, pelas firmas com que foram seladas; estão livres de toda a poeira e de todo o sangue revolucionário; são leis de que devem ser primeiros zeladores os que se chamam partido conservador. E se não querem conservar isto, não têm nada que. conservar! (Apoiados. - Vozes: - Muito bem.)

Eu voto por estas leis, e voto por elas como conservador, porque o ser conservador não é o contrário de ser progressista. Eu sou progressista, porque quero que se conservem estas leis e estorvo a destruição delas; sou progressista, porque conservo.

Voto, portanto, pelo projecto do governo com exclusão do parecer da maioria da comissão, porque o projecto da maioria da comissão e o do governo são heterogéneos; um exclui o outro, as suas tendências são diversas; um é uma lei clara, terminante e corajosa: outro é uma lei cheia de portas falsas, de incertezas, só com uma porta larga, de grandes batentes, que é o artigo 4.º, para entrarem por ali, não irmãs da caridade portuguesas, mas irmãs de todas as caridades: (riso) para o ensino ser assumido pelos representantes de todas as seitas religiosas; para se entregar a instrução pública à anarquia e à desordem, levantando-se agora uma obra que tem forçosamente de ser destruída pelas próprias mãos daqueles que a erigiram; (apoiados) e que se a não destruírem, porque se pejem de o fazer, hão de erguer as mãos ao céu, fazendo preces a Deus para que alguém a deite abaixo.

Voto por consequência pelo parecer do governo, com exclusão absoluta do parecer da maioria da comissão. (Apoiados. - Vozes: - Muito bem, muito bem. O orador foi cumprimentado por grande número de Srs. deputados.)

 

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Dez.2000