José Estêvão

 
 

Biografia de José Estêvão

 

 

 

 

Baptismo e morte de José Estêvão

 

 

 

 

1º Centenário do nascimento de José Estêvão

 

 

 

 

1º Centenário da morte de José Estêvão

 

 

 

 

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Discursos de José Estêvão
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1º Centenário do nascimento de José Estêvão

Discurso de Luís de Magalhães

 

DISCURSO QUE O DR. LUÍS DE MAGALHÃES PROFERIU EM AVEIRO, POR OCASIÃO DO CENTENÁRIO DE JOSÉ ESTÊVÃO, A 26 DE DEZEMBRO DE 1909

 

«Sr. Presidente, Minhas Senhoras, Meus Senhores:

 

Há vinte anos já, aqui, neste mesmo lugar, eu tive a honra de vos exprimir, por mim e pelos meus, os sentimentos de gratidão indelével e de comovido enternecimento que o vosso ardente culto pela memória de meu Pai despertava nos nossos corações. Ao cabo do um longo e tenacíssimo esforço, em que todas as classes se uniram para o mesmo elevado fim, mas no qual, nem no entusiasmo, nem nos sacrifícios, foi menor a parte deste bom e laborioso povo - a cidade de Aveiro realizava, finalmente, o seu grande sonho, de orgulho cívico: ver erguida numa das suas praças, fundida no bronze imorredouro e glorificador, a imagem do seu filho mais querido, do seu filho mais ilustre.

Vinte anos vão passados sobre esse dia de apoteose! E alguns daqueles que a ela assistiram e de quem eu vos traduzi então o reconhecimento, alguns daqueles que foram das suas e das minhas mais idolatradas afeições (perdoai-me esta lembrança íntima que, neste momento, não posso apartar da intensa e complexa emoção que me domina! ... ) dormem já, a seu lado, o bom e sereno sono do túmulo, nessa modesta jazida fúnebre, onde amanhã iremos em devota romagem, e que, se é para vós como que o Panteon, onde repousa o vosso Santo e o vosso Herói, é para mim um relicário de amor, urna cinerária, que guarda o pó sagrado de tantos corações que eu adorei, adoro, e hei-de adorar até que o meu nela seja por sua vez encerrado, tão piedosamente como eles o foram!

Vinte anos vão passados, e estamos de novo aqui, unidos na mesma devoção, dominados pela mesma idolatria! É que, bons e queridos amigos, o vosso coração é desses corações raros - que não sabem esquecer! É que vós, com um nobre instinto moral, fizestes da sua personalidade como que o vosso padroeiro cívico, como que o vosso génio tutelar, e de geração em geração sabeis manter acendrado e vivo esse culto que, se é para a sua memória a suprema consagração, é para vós um titulo de honra, de que legitimamente vos podeis ufanar.

Mas, hoje, o nosso agradecimento não é apenas para vós, aveirenses! É para todo o pais, porque é de todo ele esta festa de que nós aqui realizamos uma das celebrações. Em face da memória ilustre, que é como o brasão moral da vossa terra, todas as bandeiras, todas as signas partidárias se inclinam com respeito, rendendo homenagem a duas coisas que não têm, que não podem ter partido: o génio e o carácter! A todos, pois, os que aqui, ou em qualquer outro ponto do país, se reunam hoje para aclamar, com sincero amor e sincero entusiasmo, esta memória para mim sagrada, deste lugar envio a saudação reconhecida que devemos aos que nos acompanham nos melhores e mais íntimos sentimentos do nosso coração.

E, ditas estas palavras, meus senhores, cumprida esta grata obrigação, eu deveria talvez calar-me e dar por finda a minha interferência nesta cerimónia comemorativa. Porque, bem o compreendeis, não me cumpria a mim, neste momento e nesta solenidade, dizer-vos da vida e feitos daquele de quem tão grandes e belos espíritos acabam de fazer surgir diante de vossos olhos, com o poder maravilhoso do talento e a magia da eloquência, o vulto grandioso e dominador. Tal intento, da minha parte, poderá, com razão, parecer indiscreto e descabido. E será, além disso, inútil, bem inútil, ir fazer de novo, medíocre, pálida e apagadamente o que outros fizeram já com tanto brilho, tanto relevo e tanta superioridade.

Mas, desde que a vossa indulgência para comigo me quis honrar com o encargo de unir, aqui, a minha pobre voz à dos homens ilustres que escolhestes para celebrarem a glória desse nome, que parece ser para a vossa adoração, como era para a dos antigos o da sua divindade tópica - eu não poderei eximir-me a dizer mais algumas palavras (muito breves, todavia), para corresponder, meus amigos, à vossa imerecida gentileza.

Para isso, porém, preciso de infligir uma grande violência ao meu espírito e ao meu coração. Preciso de esquecer os laços que me unem àquele que vós glorificais. Preciso de tornar-me surdo à voz do sangue, tão imperativa e soberana. Preciso de fazer com que a este nome: José Estêvão, não vibrem todas as fibras do meu ser, toda a minha carne, todos os meus nervos, toda a minha alma. Preciso de pôr-me fora de mim mesmo, subtrair-me à minha própria natureza, exilar por um momento do meu peito as minhas maiores afeições, dar ao meu cérebro uma plena independência de juízos, libertando-o da influência de todas as idolatrias, de todos os fanatismos da religião familiar.

Consegui-lo-ei? É o que se vai ver. Sobre vós, porém, meus amigos, descarrego desde já a responsabilidade do provável insucesso desta arriscada e temerária empresa.

 

Meus Senhores, quando eu medito nesta vida, de cujo primeiro dia hoje celebramos o centenário, quando eu medito nesta existência relativamente curta, porque pouco passou de meio século, mas tão intensamente vivida, toda uma série de visões desfila diante dos meus olhos, desde esse alegre Natal em que ele veio ao mundo, a dois passos daqui, na austera casa de sua Avó, entre a enternecida felicidade da Mãe e as primeiras esperanças, os primeiros sonhos de ambição e do orgulho paterno (tão completamente realizados depois!) do homem venerando, do boníssimo e santíssimo homem que foi seu Pai - até à hora do luto e dor, luto e dor de um país inteiro, em que uns poucos de milhares de cidadãos de todas as classes e condições, ricos e pobres, nobres e plebeus, ministros de Estado e simples operários, crentes e livres-pensadores, amigos e adversários políticos, numa multidão promíscua, em que todas as categorias se nivelaram e fundiram na unidade igualitária do mesmo sofrimento, levaram a braços, pelas ruas da cidade, melancólica e dorida, o esquife onde ia o seu cadáver, a relíquia do Cidadão exemplar, do Cidadão sans Peur et sans reproche, ungido das lágrimas mais saudosas, sagrado para a imortalidade pelo amor de todo um povo, pelo reconhecimento de toda uma nação!

Vejo a sua infância e a sua adolescência, passadas entre os carinhos do lar, desabrochando já numa eclosão de puros sentimentos e nobres aspirações sob a influência do espírito lucidíssimo e das virtudes incomparáveis do seu adorado Pai; sim, vejo-o aqui, menino e moço, recebendo das impressões desta admirável paisagem - da amplidão destas campinas verdejantes e planturosas, destes canais fugitivos na sua extensa perspectiva rectilínea e desta imensa laguna da Ria, de tão variados e cambiantes aspectos; destas lindas marinhas, onde a neve imaculada dos montes do sal - do sal, símbolo da graça ática que tão finamente temperou a sua eloquência! -, onde essa neve imaculada põe em redor não sei que tons de candidez e de virgínia frescura; desse perfil soberbo das cordilheiras da Beira, que de longe parecem encarar, por sobre estas planícies, a vastidão do Oceano, como duas majestades que com majestade se contemplam; desse mesmo Oceano, cuja grandeza revoltada, cuja beleza convulsiva, ele tão profundamente sentiu e exprimiu num dos mais vibrantes trechos dessa ode patriótica, que é o discurso de Charles et Georges vejo-o, digo, recebendo das impressões desta paisagem, essa transfusão espiritual de beleza, esse influxo estético e moral, que para sempre lhe vinculará aqui a sua alma de artista e de poeta; e recebendo ainda do nascente afecto dos seus patrícios, que foram meus amigos, os vossos pais e os vossos avós, essa atracção de humanidade, essa inclinação social, esse primeiro nó dos laços colectivos, que haviam de fazer dele o grande cidadão e o grande patriota, ante o qual a posteridade já dobra, reverente, o joelho.

Vejo-o, depois, em Coimbra, na atmosfera inflamada de entusiasmo de uma mocidade que via aproximar-se a hora de intervir nos destinos do país, deslumbrada pelo sonho radiante da liberdade, incitado pelos mais generosos estímulos cívicos, deixar os livros, agarrar arrebatadamente o pesado fuzil de pederneira, e, com os seus irmãos de armas, receber, aos dezoito anos, no primeiro revés e na primeira decepção, essa têmpera de estoicismo e de inflexível coragem, que só o infortúnio é capaz de dar ao carácter, tornando-o invulnerável como uma coiraça de bronze. Vejo-o na triste retirada para a Galiza e no áspero caminho do exílio, atravessar descalço, e os pés em sangue, a ingrata terra estrangeira! Vejo-o na sua desolação de desterrado, como o mármore genial do nosso grande e infeliz estatuário, os braços inertes, a alma corroída de saudades, o espírito perdido nas incertezas, cada vez maiores do seu destino, olhar com melancolia, do frio e nevoento refúgio de Plymouth, esse vasto mar, para além do qual lhe ficavam a pátria, a família, e todos os seus amores, e todos os seus sonhos, e todas as suas esperanças!

Vejo-o mais tarde, vindo do Arquipélago heróico, onde começara a Ilíada libertadora, avistar, numa radiante manhã de Julho, entre lágrimas de intensa emoção, as nossas verdejantes costas do Norte; vejo-o saltar nas areias dessa praia de Pampelido, que eu tantas vezes visito evocando este comovente episódio da sua vida, vejo-o a saltar ali, com o coração a bater de fé e de receios; vejo-o avançar sobre a cidade, arrastando, com os seus camaradas, os pesados canhões pelos velhos caminhos quase intransitáveis, e aí, em meio de uma praça, súbita, inesperadamente, descobrir entre a multidão o vulto querido e adorado de seu Pai, de quem, havia quatro anos, mal sabia, e, com o maior grito de alma estrangulado na garganta pela comoção, cair-lhe nos braços, face contra face, peito contra peito, lágrimas santas misturadas na mais patética, mais inexprimível, mais louca e delirante das felicidades!

E vejo-o agora na hora suprema da sua vida de soldado. Vejo-o na Serra, na lendária Serra, entre o sibilar das balas, o troar dos canhões, o estalar da metralha, o retinir das espadas e das baionetas, cruzando-se às vezes já sobre os peitoris das baterias; vejo-o aí haver-se com tal bravura e tal serenidade, que a Torre e Espada lhe desabrocha no peito como uma flor de glória, não já concedida pelo arbítrio justiceiro de um chefe, mas posta ali (suprema e inigualável honra!) pelas mãos dos próprios camaradas que, num voto unânime e por um acto colectivo e espontâneo, o proclamavam assim o bravo dos bravos! Vejo-o na Flecha dos Mortos, nesse terrível reduto, cujo nome só por si é um pregão de heroísmo, vejo-o impávido e audaz, entre os seus vinte soldados, caídos a seu lado, mortos ou feridos, esperar de morrão aceso, ao pé da sua peça, a esposa heróica do artilheiro nessas núpcias de morte e de glória, que são as batalhas! - esperar ao pé dela a entrada dos inimigos na bateria, que já não podia defender, queimar com o morrão, num gesto violento e provocador, as barbas do comandante da força, e retirar sob um chuveiro de balas, para logo voltar com reforços e reaver, à arma branca, numa carga furiosa, a posição um momento perdida!

Mas o cenário muda agora de repente. Já não são os campos de batalha, juncados de cadáveres, rubros de sangue, fumegantes de ruínas; já não são as muralhas das fortalezas, rasgando-se em brechas formidáveis sob as lufadas de ferro e fogo da metralha. Não. Agora é a sala de um Congresso, onde essa geração, que veio dos sofrimentos e misérias do exílio e dos triunfos de cinco anos de lutas gloriosas, vai tomar nas suas mãos o destino do regime que o seu valor e o seu civismo acabavam do fundar. E, então, não menos belo, não menos intrépido, não menos vibrante de entusiasmo, o seu vulto aparece a meus olhos, nobre, radiante, varonil, dominador, aureolado pelo halo divino do talento, em toda a majestade da grandeza tribunícia. Vejo fuzilar-lhe o olhar ardente na face pálida de iluminado; vejo os meneios nervosos da sua bela cabeça, o fulgor da sua larga fronte, o ofegar do peito, o palpitar das narinas, a imponência das atitudes, a empolgante fascinação do gesto. Oiço a sua voz, a sua bela voz, de tantas e tão variadas notas, como afirmam todos aqueles que o escutaram, ora vibrante e estrídula como um grito de águia real, ora cheia, profunda, sonora como um rugido de leão, ora arrebatada e impetuosa como uma rajada de vendaval, ora cantante e cristalina como um rumor de águas numa fresca levada...

E, assombrado, contemplo-o nessa tribuna como num pedestal de glória, a proclamar e a defender, com irresistível eloquência, todos os seus princípios, todos os artigos de fé do seu credo político. - A liberdade, primeiro, - a liberdade de que ele foi, entre nós, como face a face, no parlamento lhe disse PASSOS MANUEL, «o mais estrénuo defensor», a liberdade de que ele foi o paladino intemerato, o campeador invencível; essa pura liberdade, primeiro dos direitos morais do homem, que era na sua alma, não um sentimento faccioso e estreito, não uma cega e virulenta paixão sectária, mas uma nobre, uma generosa aspiração do espírito, reivindicando a sua plena independência em face de todos os problemas do Universo, da Consciência ou da Vida Social, e um largo e ardente sonho humanitário, um direito novo fraternal e justiceiro, cujos benefícios e regalias ele, na sua imensa tolerância, sempre afirmada em palavras e confirmada em actos, como na defesa do Portugal Velho, queria que, sem excepções, que seriam um ilogismo, uma contradição fundamental da doutrina, se estendesse a todas as convicções e a todas as crenças, a todos os princípios políticos e a todas as reservas confessionais! - A justiça, enlevo supremo das grandes almas, pedra de toque de todo o carácter, sentimento em que a serenidade austera da razão se funde maravilhosamente com a piedade humana, - a justiça, pedra angular de toda a vida social, timbre, honra e dever dos que guiam as sociedades, garantia e direito de todos os que a constituem, - a justiça, guarda vigilante da ordem, defensora dos fracos, libertadora dos oprimidos, demolidora dos privilégios, niveladora das classes, - a justiça, a bússola firme e segura desse norte de igualdade, para onde a civilização política avança na viagem da História, - a justiça que o inspirou em todos os seus actos, o guiou em toda a sua vida e foi para a sua alma aquela fome e sede bem-aventuradas, de que o Cristo, num profundo pensamento, só prometia aos homens a plena saciedade no seu reino idealmente perfeito! - O patriotismo, que, com a sua fé de cristão sincero e o seu amor da família, constituía os três grandes cultos do seu coração, o tríptico das suas devoções mais profundas; - o patriotismo, que era nele uma síntese de amores, de intensos e puros amores: o amor desta bela e boa terra portuguesa, a que o seu coração se sentia preso por tantas e tão fortes raízes, o amor dos seus concidadãos, a quem o uniam o seu poderoso sentimento cívico e todos os nexos ancestrais de sangue e de raça, o amor das nossas tradições históricas, do nosso assombroso passado, tão cheio do frémito heróico, com que mais de uma vez palpitara a sua alma de soldado; - o patriotismo, que na sua boca de oiro vibrava em verdadeiros cantos de epopeia, retumbante e ardente como um fragor de refrega, sonoros e triunfais como um hino de vitória! - O civismo, essa religião grandiosa do dever social, em cujas tábuas da lei se inscreveu, como mandamentos supremos, o altruísmo na sua forma colectiva, o sacrifício individual, a abnegação, o desinteresse, a honestidade inconcussa, o zelo da causa pública, código austero de que a sua vida de cidadão foi um exemplo de admirável cumprimento estrito, que o levou aos riscos da guerra, às misérias e às lágrimas da expatriação e o fez manter-se, até ao fim da sua carreira, tão isenta de honrarias e proventos como a começara, tendo apenas no peito o seu colar da Torre e Espada, no braço os seus galões de oficial e uma cadeira no magistério, conquistada também, como um trofeu de vitória, numa luta em que o seu talento ficara vencedor. - O progresso, o progresso material e moral, o progresso indicador da civilização dos povos, de que ele se constitui um dos mais fervorosos apóstolos, quando, após tantos anos de guerras civis, de querelas partidárias, de conflitos de doutrina, que imobilizaram toda a energia produtiva do país, e travaram a roda do seu desenvolvimento económico e social, se convenceu de que as fórmulas não tinham, só por si, o poder mágico de educar o povo, de fomentar o trabalho, de criar riqueza, de fazer circular produtos, de difundir a instrução em todos os seus ramos, de equilibrar os interesses das classes segundo os justos princípios da democracia social! ...

Vejo ainda...

Mas - basta! Esta evocação já vos parecerá longa de mais, atropelada e confusa. E eu temo bem que ela tenha sido mais nociva do que útil ao meu propósito, que era o de dar-vos, numa visão rápida, a síntese da sua grande vida, tal como eu a vejo e contemplo na minha pura admiração de homem, e fora do âmbito mais reservado da piedade filial.

Este quadro, porém, tão mal esboçado, tão impreciso de linhas, tão empastado de cores, este escorço, este resumo da sua vida, visava a um fim: o poder tirar dele uma conclusão de moralista. Lembro-me de, há vinte anos, vos ter dito, aqui mesmo, que, em política, eu era, sobretudo, um moralista. Sou-o ainda hoje: sou-o hoje mais do que nunca! Estes vinte anos, com a sua árdua experiência, as suas muitas lições dos homens e das coisas, os seus desenganos, as suas responsabilidades, arreigaram mais profundamente no meu espirito este critério. Já mal sei ver os homens de outra forma ou por outro prisma. Já mal distingo as extremas das suas classes, no retalhado campo social. Já mal enxergo os emblemas litúrgicos dos seus cultos e os guiões de combate das suas falanges políticas.

Quase que só vejo espíritos e só vejo almas!

Ora, através dessa vida, meus Senhores, o que eu descortino, o que eu sinto, o que eu palpo, numa espécie de misterioso contacto psíquico, é uma das maiores, das mais puras, das mais nobres, das mais generosas almas que palpitaram em peitos portugueses.

Porque, para mim, o génio e o heroísmo, quando os não divinizam a grandeza moral e um elevado sentimento de humanidade, são no homem altos, brilhantes, sublimes predicados, sim, mas elementos insuficientes, incompletos, para constituírem, integra, plena e global, deixem-me assim dizer, a personalidade humana. Em todas as figuras históricas, mesmo as mais grandiosas, há sempre um não sei quê de imperfeito, sente-se como que uma falha, semelhante à moeda que não dá, ao toque, o timbre característico do ouro de lei - quando nelas não achamos, distintas ou confundidas, a austeridade severa do carácter e esse doce leite da bondade humana, como lhe chama o ilustre pensador inglês, esse poder de emoção, de benevolência, de filantropia, de amor, enfim, que torna os grandes homens não só admirados, mas amados também.

Admiração, amor, - êxtase do espírito, êxtase do coração: eis a imortalidade! Mas na admiração pode deixar de haver amor; ao passo que o amor, esse, é já em si mesmo uma verdadeira admiração. E quem não amou os homens, poderá ter deles todas as consagrações, que uma alta individualidade impõe aos contemporâneos e aos vindouros, mas nunca terá esse amor, que lhes não soube dar!

Admiramos o Infante de Sagres, admiramos o Príncipe Perfeito, admiramos Vasco da Gama e o terribil Albuquerque. Mas o egoísmo do visionário, a duplicidade insidiosa do político, a dureza inclemente e a desumanidade truculenta dos conquistadores cerram-lhes os nossos corações. Deslumbra-nos a sua glória, assombram-nos o seu génio e a sua força, orgulhamo-nos dos seus grandes nomes; mas não os amamos, não os podemos amar!

Mas Nun'Álvares, no seu heroísmo cândido, na pureza mística da sua alma, na sua humildade, que o levou ao claustro, quando o seu braço já não era preciso à pátria; mas o Infante D. Pedro, o austero regente, o cavalheiresco vencido de Alfarrobeira, espelho de incomparáveis virtudes, maravilha de honra, de lealdade, de justiça, de valor; mas Camões, que, na sua agitada vida, iluminada pelo génio, coroada pelo heroísmo, sagrada pelo infortúnio e pela dor, pôs em tudo o seu grande e ardente coração amando com igual intensidade patética a Mulher, a Pátria e a glória - ah! estes, sim, estes têm em nós um culto perfeito, têm no altar das nossas almas uma plena e completa adoração!

Meus Senhores, é esta mesma adoração, íntegra e sem reservas, que em vós, que no País inteiro, tem a memória do homem de quem celebramos o centenário natalício. E é esse, entre os muitos sinais da sua grandeza, um dos maiores, dos mais irrecusáveis. Não lhe faltou o génio, não lhe faltou o valor - e os loiros, que cingem a fronte dos inspirados e dos bravos, ficam bem na sua, tão nobre e tão bela. Mas o que, tanto como esses títulos, enaltece o seu nome, avoluma o seu vulto, e é a magnanimidade do seu nobilíssimo coração: são as suas virtudes de homem e de cidadão, a sua bondade, a sua cordialidade, a sua lealdade, a sua inteireza, a sua honradez, a sua abnegação, a sinceridade das suas convicções, o ardor da sua fé política, a austeridade do seu intemerato civismo.

Sim, é tudo isto que, junto à eloquência fulgurante do tribuno e à valentia do soldado, torna enorme, avassaladora, empolgante e verdadeiramente adorável a sua figura - essa grande sombra de Além-túmulo, que parece ressuscitar à evocação do nosso amor e pairar agora aqui sobre nós, para que o seu coração sinta ainda uma vez, bem vivos e palpitantes, a doce carícia dos nossos afectos, a santa unção das nossas saudades, o calor do vosso entusiasmo, que em vida foram para ele incitamento para tanta luta, prémio de tantos esforços, alívio para as suas maiores dores!»

In:  «Arquivo do Distrito de Aveiro», vol. XXVIII, 1962.

 

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Dez.2000