Na messe e no gabinete do comandante

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No dia seguinte, dia vinte e nove de Maio, arranquei para Sanza Pombo, a seguir ao almoço, com o furriel vagomestre e uma secção. Encontrei a messe de oficiais numa enorme desordem: as salas quase vazias, com as mesas e as cadeiras empilhadas e cobertas de jornais. Marcas de tinta no chão e a conversa despreocupada de soldados, numa sala ao lado do bar, conduziram-me até eles.

— Olá, pessoal. Boa tarde a quem trabalha. — disse, cumprimentando os soldados que andavam de balde e pincel a renovar as cores das salas e a dar-lhes um aspecto mais airoso e novo. — Isto aqui está uma grande revolução. Onde param os oficiais?

Fui cumprimentado e esclarecido.

— Desde segunda-feira que a messe anda num grande reboliço, meu alferes. O nosso comandante decidiu mandar pintar de novo toda a messe.

— E quem é que orienta o trabalho? Não vos deixam andar aqui sozinhos, certamente, a fazerem este serviço...

— Não, meu alferes. É o nosso capitão Glória Dias. É ele que orienta os trabalhos.

— Ah! Logo vi! Tinha de ser alguém com sentido estético. Onde é que ele está? E o nosso comandante?

— O nosso capitão deve andar por aí, alferes. Não deve tardar muito a aparecer-nos aqui a dar ordens.

— E o nosso comandante?

— Deve estar no gabinete dele, alferes. A esta hora já lá deve estar.

— Onde é que os oficiais estão a dormir? Com isto numa desordem, certamente que não é aqui...

— Não, alferes. Isto é só por dois ou três dias. Agora, enquanto está assim, alferes, agora vão lá dormir ao quartel, alferes. Mas só alguns, alferes...

— Só alguns?! Só alguns porquê?

— O alferes não sabe? Alguns têm cá as mulheres e os filhos. Alugaram casas aos civis. Esses só cá vêm comer. Só cá vêm aqui para comer, alferes. E ao bar, alferes, ao bar e aqui na sala de convívio, alferes. O alferes nunca cá veio?

— Já. Mas nunca dormi aqui. Fico sempre no quartel. Costumo ficar com o nosso capelão, quando ele cá está. Está cá?

— Não sabemos, alferes. Não o temos visto. Deve andar por fora com o sacrista.

— Com quem?

— Com o sacrista. Com o camarada que o acompanha, alferes. É um camarada nosso que faz de sacristão.

— Bom, já estou informado. Obrigado. Bom trabalho. Vou ver se encontro o nosso comandante Soares Coelho.

— Adeus, alferes. E boa sorte!

— Boa sorte?! Boa sorte porquê?

— O nosso comandante costuma andar com os azeites.

— O quê?!

— O nosso comandante anda sempre com cara de poucos amigos, alferes.

— Ah! Isso? Isso é normal. É o nosso comandante!... Adeus, rapazes. Boa tarde e bom trabalho. Já vou prevenido para o que der e vier.

Saí da messe de oficiais e dirigi-me ao edifício do comando, mesmo ao lado. À entrada, o impedido informou-me que o nosso comandante já está no gabinete, alferes. E deve-lhe ter corrido mal o almoço, alferes

— Correu-lhe mal o almoço? Por que dizes isso?

— É o alferes que veio de Quimbele?

— Sou. Sou eu mesmo. Porquê?

— É que o nosso comandante deu ordens para que o mandasse ir ao gabinete assim que chegasse.

— Ele disse isso?

— Não foi com o alferes que ele ontem falou?

— Foi. Como é que sabes?

— Estava aqui, alferes, e ouvi-o berrar com o alferes. Estava chateado. Parece que o alferes o fez esperar no posto de rádio. Nunca mais chegava.

— Não me pareceu. Pareceu-me falar normalmente comigo. Pelo menos, enquanto falou comigo pela rádio, pareceu-me normal. Não dei que tivesse berrado comigo. Falou-me, é certo, num tom seco. Seco e curto. Seco e curto, para poupar as palavras. Mas isso é normal. É típico dele. Mas talvez tenhas razão! De qualquer modo obrigado. Já vou prevenido e a contar com tudo.

— O gabinete do nosso comandante é já aí...

— Podes deixar-te ficar por aqui. Sei bem onde é! Obrigado.

— Um momento, alferes. É melhor esperar que eu anuncie o alferes. É mais seguro...

— Está certo. Avisa lá, então, o nosso comandante que eu estou aqui, tal como ele mandou, para sabermos se me pode receber.

Ouviu-se uma voz seca:

— Entre. Sente-se aqui.

Passei o vão da porta. Dei dois passos e fiz a devida continência, pedindo licença para entrar.

Sem quaisquer preâmbulos, o comandante Soares Coelho entrou directamente no assunto.

— O nosso alferes tem a noção da gravidade da situação? — Ainda não tinha respondido à pergunta e já outras me estavam a ser colocadas em rajada, de forma seca e rápida. — O nosso alferes acha que nós aqui ignoramos o que se passa nas sedes das Companhias? O nosso alferes não teve, em tempos, a companhia do segundo-comandante em Quimbele? Não estiveram também consigo o nosso capitão Glória Dias e o tenente Oliveira? Não se apercebeu que a presença destes oficiais foi uma inspecção de rotina à Terceira Companhia?

— Calculei precisamente que sim, meu comandante. Nunca pensei que fossem para me fazerem companhia, meu comandante.

— Então, a que propósito manda para aqui uma participação, dando conta das irregularidades que detectou? Acha-nos incompetentes para detectarmos irregularidades?

— De modo nenhum, meu comandante. Nunca tal me passou pela cabeça, meu comandante, mas...

— Mas o quê? Como é que justifica o seu procedimento?

— Não é isto que mandam as normas, meu comandante?

— As irregularidades detectamo-las nós.

— Sim, meu comandante. Mas há uma coisa que não entendo.

— Não entende o quê, nosso alferes?

— Se estavam a efectuar uma inspecção...

— Estavam quem, nosso alferes?

— Se as contas da Companhia estavam a ser inspeccionadas, meu comandante, não entendo por que razão isso não me foi dito, quando decidi efectuar a participação dos factos que eu averiguei, meu comandante. Se já tinham detectado, escusava eu de estar com o trabalho, meu comandante.

— De qualquer modo, a sua participação veio confirmar aquilo que já sabíamos a seu respeito.

— O quê, meu comandante?

— Que não tem nada a ver com isto. Que foi envolvido na situação. Que aqui em Sanza Pombo nunca nos enganámos a seu respeito.

— Nunca se enganaram comigo, meu comandante? Não estou a perceber.

— Conhecemo-lo bem. Sabemos bem que o nosso alferes é pessoa de confiança. Há quem o conheça bem. E têm-no em boa conta.

— Como assim, meu comandante?

— Há aqui quem goste de estar frequentemente na sua companhia. Até o nosso capitão Glória Dias acabou de o confirmar. Pelos vistos, andaram sempre juntos, em Quimbele.

— Fico satisfeito por saber isso, meu comandante. Aliás, só procurei receber os meus superiores como lhes é devido e tal como gosto também de ser tratado, meu comandante.

— Sei muito bem que o nosso alferes foi um excelente anfitrião. Deixou uma excelente impressão no nosso major e restantes oficiais. E, já agora, aproveito para lhe participar que o nosso alferes foi destacado para um cargo de responsabilidade.

— Como, meu comandante? Que espécie de cargo, meu comandante?

— A seu devido tempo saberá.

— O meu comandante está a deixar-me curioso, intrigado e, ao mesmo tempo, receoso.

— Receoso? Porquê? Pensamos que aquilo que irá fazer está de acordo com as suas competências. É o único elemento da sua Companhia, tirando o médico, que tem um curso superior.

— Meu comandante, se me permite falar, posso dizer-lhe que há outros oficiais que, não tendo ainda um curso superior, não estão longe de o concluir e têm tão boas competências como eu. Estou a lembrar-me de que alguns têm o curso quase completo. Por exemplo, há um camarada que, para médico, pouco lhe falta.

— Conheço perfeitamente as habilitações de todos os oficiais que pertencem ao meu Batalhão, nosso alferes. Não é preciso recordar-mo.

— Peço desculpa, meu comandante. Sei bem que o meu comandante está sempre a par de tudo.

— O nosso alferes é o que apresenta melhor perfil para o cargo que irá desempenhar na sua Companhia.

— O meu comandante não poderia esclarecer-me um pouco mais? Deixa-me receoso com um cargo que não conheço. E não tenho gostado dos cargos que me têm atribuído sem meu conhecimento, meu comandante. Vai-me deixar preocupado, meu comandante. Vai-me deixar mergulhado em conjecturas que só irão perturbar a minha actuação nesta altura enquanto o nosso capitão não retoma o comando da Companhia.

— O nosso alferes tem de ter paciência. A seu tempo saberá. Posso apenas adiantar-lhe que, no decurso deste mês, lá mais para diante, irá ausentar-se temporariamente de Quimbele, para frequentar um curso de formação. E, por agora, é tudo o que tenho para lhe dizer. Ainda nos veremos.

— Ainda, meu comandante?

— Sim! Certamente não quer ir já para Quimbele, a meio da tarde. Não vai querer ir sem esperar pelos outros oficiais.

— Outros oficiais, meu comandante?

— Sim, outros oficiais. O nosso alferes veio cá para poder escoltar, amanhã de manhã, os oficiais que irão consigo para Quimbele. Vai levar consigo o nosso major, o segundo-comandante do Batalhão, e o tenente Sena. Foi para os escoltar que o mandei vir a Sanza Pombo. E por agora é tudo, nosso alferes. Pode retirar-se.

Saudei devidamente o comandante e saí apreensivo do gabinete, a pensar em tudo o que acabara de suceder. O que é que os oficiais vão fazer para Quimbele? Será por causa da participação? E para onde é que vou durante o resto do mês? E por quanto tempo? Para fazer o quê? E as minhas férias? Quando é que vou poder gozá-las e rever os meus pais?

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