Uma justificação

Quimbele, 21 de Maio de 1973

 

Queridos Pais,

 

Hoje começo o convívio convosco de uma forma pouco habitual na minha correspondência. Como seguramente já repararam, há muito aboli a fórmula tradicional com que a maioria começa a correspondência para os familiares. Quer a inicie com ou sem fórmula inicial, escusado será dizer que nunca haverá ninguém que seja tão importante para mim como os pais. E é precisamente quando estamos ausentes que a necessidade da vossa presença mais se faz sentir. Só damos verdadeiramente valor ao que possuímos quando estamos longe da família ou esta nos falta. E a prova da necessidade que sinto de vós está nas minhas «chatérrimas» cartas, longas, compridas, enormes, com maços de muitos aerogramas com que vos encho a caixa do correio, se é que elas não vos são entregues directamente em mão, porque creio mesmo que não deve ser fácil enfiar em abertura tão estreita tamanhos maços de correspondência. Tenho vindo a cumprir, escrupulosamente, quase religiosamente, a promessa que vos fiz naquela primeira carta, escrita no meio do Atlântico, a grande altitude, durante a nossa viagem de Lisboa para Luanda.

Se há muito aboli as fórmulas tradicionais com que se começam as cartas para a família, como explicar esta excepção?

Certamente que irão estranhar a colecção que hoje meti no saco do correio e que deverão receber dentro de três ou quatro dias. Acabei a carta de maneira abrupta, após o final do episódio de uma caçada inglória, sem as habituais despedidas. Foi isto intencional. A carta seguiu incompleta. Alonguei-me demasiado com um episódio caricato de uma caçada às rolas, deixando todos os tópicos sumariados por abordar. Entendi que era melhor assim, porque há já vários dias que estáveis sem receber correspondência minha. Tive receio que a mãe começasse a magicar, a pensar que me teria acontecido alguma coisa que me impedisse de dar notícias. Graças a Deus, tirando as preocupações normais, há algum tempo agravadas por estar à frente da Terceira Companhia de Caçadores, tudo vai correndo mais ou menos nos trilhos da normalidade.

Continuo sozinho na companhia do médico. Os oficiais da CCS estiveram pouco tempo entre nós: oito dias apenas, entre sete e quinze do corrente mês. Por isso, aproveito as noites, que são longas, em que não há cinema em Quimbele, para estar na vossa companhia.

Acabei há pouco um aerograma para um camarada que está na Guiné. Foi um brevíssimo aerograma. Nada que se compare com as minhas escritas habituais. Apenas umas vinte linhas, em que lhe lembrei que só já nos faltam 526 dias para acabarmos a nossa comissão em terras africanas e em que lhe disse também que conto estar convosco, aí nesse cantinho da Europa, lá para finais de Junho, se não me surgirem imprevistos.

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